Mauricio Portugal Ribeiro* e Eduardo Jordão**
Há cerca de quatro anos, os autores deste texto escreveram um pequeno manual intitulado “Como Desestruturar uma Agência Reguladora em Passos Simples”. Seu objetivo era mapear e denunciar as condutas adotadas pelo poder concedente, pelos órgãos de controle e pelas próprias agências que contribuíam para o enfraquecimento institucional das agências reguladoras no país.
Mas as ameaças ao modelo institucional do Estado Regulador brasileiro não pararam por aí, e aqui nos vemos adicionando elementos àquele já vasto repositório anterior.
Por todo o Brasil, encontram-se hipóteses de submissão – por lei, ou normatização infralegal – da procuradoria das agências reguladoras às regras e aos entendimentos jurídicos da advocacia ou procuradoria do poder concedente (AGU ou procuradorias dos estados ou dos municípios). Às vezes, a submissão não decorre diretamente da lei ou da normatização infralegal, mas apenas de uma específica interpretação dela.
Seja como for, essa submissão é dificilmente compatível com o modelo institucional de Estado Regulador brasileiro. As procuradorias das agências assessoram juridicamente as agências na sua posição de árbitro neutro e imparcial na esfera administrativa, responsável por julgar os litígios entre poder concedente, usuários e concessionário. Sendo assim, não deveriam se subordinar a entendimentos jurídicos das instituições que têm como missão institucional defender os interesses do poder concedente. Admitir isso equivaleria a admitir que o assessor de um juiz seja subordinado ao advogado de uma das partes.
Para acentuar esse problema, é comum que membros da carreira da advocacia-geral ou da procuradoria-geral ocupem posições de procurador das agências reguladoras. Por exemplo, vários entre os atuais procuradores gerais das agências reguladoras federais são membros da carreira da AGU (Advocacia-Geral da União). Também no estado de São Paulo todos os consultores jurídicos das agências reguladoras (cargo equivalente ao de procurador-geral da agência) integram a carreira da PGE-SP (Procuradoria Geral do Estado de São Paulo).
Não se trata aqui de questionar a isenção ou independência de nenhum procurador, individualmente considerado. Trata-se de observar que o modelo tende a criar incentivos inadequados – tanto os relacionados ao prosseguimento da carreira do procurador, como aqueles relacionados aos vieses próprios decorrentes de um específico enquadramento profissional.
A submissão da procuradoria das agências à procuradoria do poder concedente tem dupla origem. A primeira resulta do enquadramento das agências como autarquias, que eram entidades subordinadas funcionalmente à administração direta. Havia, por isso, todo um conjunto de normas e uma tradição de subordinação jurídica das autarquias a entendimentos adotados pela administração direta, o que, pela própria força da tradição, terminou sendo estendido indevidamente às agências reguladoras.
A outra origem são as pressões corporativas. Alguns membros da advocacia pública militam pelo monopólio da assessoria jurídica à administração pública. Posicionam-se contra a possibilidade de haver qualquer elemento estranho à carreira responsável por funções jurídicas. Todavia, a própria pertinência à carreira de procurador do poder concedente deveria ser, neste caso, considerada impedimento para exercer o cargo de procurador da agência, particularmente o de procurador-geral, por incompatibilidade com a independência que se espera dessa posição, notadamente em face do poder concedente.
É essencial que a procuradoria-geral das agências seja independente da advocacia ou procuradoria-geral do poder concedente, tanto nas suas posições jurídicas, quanto funcionalmente. A solução mais compatível com o modelo de Estado Regulador seria simplesmente proibir a ocupação do cargo de procurador da agência, particularmente o de procurador-geral, por um membro da carreira de procurador ou advogado do poder concedente.
O ideal seria cogitar de uma carreira específica para os procuradores da agência. Alguns entendem que, para isso, seria necessário o STF (Supremo Tribunal Federal) superar a posição adotada no julgamento da ADI 145/CE e em outros precedentes nos quais entendeu que a existência de órgãos jurídicos no âmbito das autarquias e fundações distintos da procuradoria-geral afronta o artigo 132 da Constituição Federal. Contudo, o STF já excepcionou essa regra na ADI 5215, que admitiu a criação de carreira jurídica separada da da procuradoria-geral no caso de universidades. No entendimento do STF, a carreira separada nesse caso seria por um lado uma decorrência da autonomia universitária e por outro lado um instrumento indispensável para defendê-la. Com ainda mais razão, essa exceção deveria ser aplicada às agências reguladoras, em vista da essencialidade da preservação da independência para o bom desempenho da missão dessas entidades.