iNFRADebate: Diretrizes para o saneamento básico – O Supremo e as normas de referência da ANA

Gabriel Dantas Maia*, Flávio Marques Prol** e Vinicius Marques de Carvalho***

O Supremo Tribunal Federal começou na quarta-feira (24) o julgamento de quatro ações diretas de inconstitucionalidade que questionam o novo marco legal do saneamento básico (Lei nº 14.026/2020) e podem definir o futuro do setor. Até o momento, apenas o voto do Ministro relator, Luiz Fux, foi apresentado. O julgamento reaviva discussões travadas quando da tramitação da lei e invariavelmente a Corte analisará – como já fez o ministro Fux – a constitucionalidade da atribuição de competência para a ANA (Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico) editar normas de referência sobre o assunto, um dos seus pontos mais polêmicos.

A controvérsia constitucional aborda os limites da competência da ANA para editar essas normas – ou diretrizes, nos termos da nova lei – que podem dispor sobre treze temas, passando por padrões de qualidade e de eficiência na prestação do serviço, regulação tarifária e padronização de instrumentos negociais e metas e sistemas de avaliação para a universalização dos serviços de saneamento. As normas de referência formuladas pela ANA se destinam às autoridades regulatórias de saneamento a nível subnacional – estas sim responsáveis por dar concretude aos temas das diretrizes nos respectivos contratos de concessão. Dessa forma, a ANA estabelece contornos gerais, cabendo às demais autoridades regulatórias de saneamento esgotar o tema no exercício de suas competências regulatórias. Ainda assim, segundo os autores de três das ações propostas, essa nova prerrogativa da agência configuraria usurpação de competência pela União de outros entes da federação, substancialmente os municípios, em afronta à Constituição Federal e ao entendimento de que o saneamento básico é prioritariamente de “interesse local”.

Segundo esse argumento, a inconstitucionalidade das normas de referência não reside no rol de temas que poderiam ser tratados, mas no mecanismo por meio do qual elas deixariam de ser meramente “de referência” e passariam a manifestar alguma espécie de obrigação. A cogência decorreria do condicionamento do acesso a recursos públicos federais ou a contratação de financiamento com recursos da União ao respeito a essas normas. Em outras palavras, por meio de influência orçamentária, a União exerceria competência normativa pormenorizada, impondo normas que, constitucionalmente, deveriam ser facultativas e de caráter geral.

Acontece que a competência da União para tratar do tema de saneamento também está assegurada em bases constitucionais. Cabe à União instituir diretrizes de saneamento básico e é competência comum de União, estados e municípios a promoção de programas de saneamento básico. Desse modo, a temática do saneamento não é estranha à alçada da União, e é com fundamento nessas balizas constitucionais que se estrutura a Lei 14.026/2020, que passa a ter como guia a ANA e suas “normas de referência”. 

Além disso, é preciso destacar que o condicionamento de recursos federais ao seguimento de determinadas condutas – direcionando ao fim e ao cabo o exercício de competência de outros entes federados – não é novidade do novo marco do saneamento. A lei que institui a Política Nacional de Resíduos Sólidos, por exemplo, condiciona o acesso a recursos federais à adoção de determinados comportamentos por parte dos municípios. Da mesma forma, a lei de responsabilidade fiscal condiciona a realização de transferências voluntárias ao exercício de competência tributária por parte dos demais entes da federação. Sobre esse último caso, inclusive, o STF já concluiu por unanimidade na ADI nº 2238 que o condicionamento dos recursos pela União era constitucional.

Por fim, a própria lei do saneamento básico de 2007 já previa o condicionamento de recursos da União ao seguimento de determinados requisitos por parte de estados e municípios. A nova lei apenas incluiu no rol de requisitos as normas de referência da ANA. Por conseguinte, no setor de saneamento, as diretrizes estipuladas pela União já usufruíam de considerável influência sobre o comportamento de estados e municípios, de forma que a alegada “cogência” trazida pelas normas de referência não é criação inovadora, ainda que o rol das normas de referência configure, sim, inovação relevante. 

Nesse sentido, pode-se perceber que há certa receptividade pelo Supremo com a constitucionalidade das normas de referência. No julgamento da medida cautelar em sede de uma das ADIs (6492), o ministro Luiz Fux pontuou que o suposto conflito federativo não pode ter como base uma ideia de federação que permita que parte da população permaneça privada de serviços essenciais. Segundo o ministro, a superação desse cenário exigiria “uma atuação imediata, concertada e eficiente do poder público”, o que iria em linha com os objetivos das normas de referência, que anseiam por uniformidade regulatória para viabilizar uma prestação mais eficaz e universal do serviço de saneamento. Em seu voto proferido na última quinta (25), o Ministro manteve o posicionamento do julgamento da medida cautelar, asseverando a constitucionalidade das normas de referência e de seu mecanismo de compliance regulatório. Segundo o ministro, o condicionamento de transferências provenientes da União à obediência de determinados requisitos poderia ser feito inclusive por meios contratuais, sendo a previsão em lei formal uma deferência à segurança jurídica – valor caro à regulação de qualquer setor da economia que demande vultosos investimentos.

É evidente que a declaração de constitucionalidade de normas de referência pela União não retira de municípios e estados suas competências e interesses em tratar do saneamento. Uma forma bem-vinda de se conciliar essas pretensões é viabilizar um processo verdadeiramente participativo de construção das normas de referência, envolvendo entes federados e sociedade civil, como, de fato, já vem sendo feito pela ANA. Nas duas normas de referência já expedidas nesse ano pela agência, houve elevada participação social, batendo os recordes de participação dentro da agência – a primeira norma de referência contou com 462 contribuições, de 50 participantes diferentes, e a segunda norma de referência contou com 252 contribuições, de 21 participantes diferentes. Esses exemplos ilustram modelagens que viabilizam uma uniformização regulatória com a escuta e respeito aos interesses, expectativas e experiências dos demais atores do segmento de saneamento básico no Brasil. 

O que definitivamente precisa mudar é a falta de acesso de mais de cem milhões de brasileiros à coleta de esgoto e quase 35 milhões ao abastecimento de água, como mostram os autores das ações propostas. As normas de referência podem ser caminho para contornarmos essa situação, fazendo com que o sistema de saneamento esteja coordenado rumo à universalização. O julgamento retorna nesta quarta-feira (1º) e resta torcer para que a Corte chegue a um consenso.

*Gabriel Dantas Maia é mestre em Direito e Desenvolvimento pela FGV (Fundação Getulio Vargas), com graduação em Direito pela USP. Advogado no VMCA.
**Flávio Marques Prol é doutor, mestre e bacharel em Direito pela Universidade de São Paulo. Foi Fox Fellow no MacMillan Center for International and Area Studies da Universidade de Yale e visiting scholar no Institute for Global Law and Policy na Harvard Law School. Sócio no VMCA.
***Vinicius Marques de Carvalho é professor da USP. Foi presidente do Cade (Conselho Administrativo de Defesa Econômica), secretário de Direito Econômico e Yale Greenberg Fellow. Sócio no VMCA.
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