Mauricio Portugal Ribeiro*
Pesquisas recentes mostram a possibilidade de Lula se eleger Presidente do Brasil já no primeiro turno e isso me fez refletir sobre o que seria importante ter em mente para um processo político de transição seguro, que não deixe pelo caminho iniciativas cuja preservação é importante para assegurar a realização de investimentos em infraestrutura no curto prazo, com seus impactos benéficos de melhoria de serviços à população, geração e distribuição de renda.
Nesse sentido, a primeira pauta que me parece importante é dar continuidade ao fluxo de projetos de concessão e PPP (Parcerias Público-Privadas) desenvolvidos por mecanismos de estado criados para a sua estruturação. Atualmente, o BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social) e a Caixa Econômica Federal têm áreas com capacidade para a estruturação desses projetos em diversos setores e um largo conjunto de projetos em fase avançada de desenvolvimento não apenas no setor de transportes (portos, aeroportos, rodovias), mas também no setor de saneamento (água, esgoto e resíduos sólidos) e ambiental (concessões de florestas e parques).
Um eventual Governo do PT herdará uma série de projetos cuja estruturação está em diferentes estágios de andamento, conforme pode se ver no próprio website do PPI (Programa de Parcerias de Investimentos). Vários desses projetos estarão prontos para ir à licitação já no primeiro semestre de 2023, de maneira que os investimentos dos concessionários poderão ser iniciados já no primeiro ano do próximo governo. Olhando o planejamento do PPI, estão previstos para irem a leilão, entre outubro de 2022 e dezembro de 2023, 58 projetos, em setores tão diversos quanto portos, aeroportos, ferrovias, hidrovias, infraestrutura hídrica, mobilidade urbana, petróleo e gás, parques e florestas, transmissão de energia, entre outros. Vários desses projetos ainda não tem valores de investimentos estimados. Mas se somarmos os valores de investimento dos que já tem chegamos ao montante de 97,33 bilhões de reais. Eu fiz o levantamento começando em outubro de 2022 porque os projetos que estão programados para ir a leilão entre outubro e dezembro de 2022 certamente terão seus leilões adiados para o ano seguinte1.
Para isso, é preciso superar a já ultrapassada ideia de que concessões e PPPs só geram investimentos em prazos superiores a 1 ano e priorizar a colocação em licitação dos projetos de concessão e PPP que já estão estruturados. A vantagem das concessões e PPPs é que, uma vez celebrados os contratos, as obras são geralmente realizadas no prazo e pelo custo estimado. É verdade que houve no Brasil casos em que obras previstas em contratos de concessão e PPP não foram realizadas, particularmente nos contratos celebrados no momento de crescimento acelerado do país e que foram alvejados pela maior crise econômica da história do país, combinada com a impossibilidade de realizar os necessários reequilíbrios e renegociações desses contratos, trazida pelo clima de caça às bruxas aos agentes públicos e privados dos setores de infraestrutura decorrente do lava-jatismo que tomou conta deste país. Mas, à parte esses contratos, concessões e PPPs no Brasil e no mundo são muito mais eficientes do que contratos de obra pública para entregar obras no prazo e no custo estimado. Basta lembrarmos que ao final de 2019 tínhamos 14 mil obras públicas paradas no Brasil. É verdade que uma parte delas estava parada por restrições fiscais, isto é, por falta de dinheiro para pagar pelo andamento das obras. Mas uma grande parte delas estava parada por outros problemas. Não faltam exemplos de obras públicas que demoram até 30 anos para serem concluídas. Vejam os casos da Ferrovia Norte-Sul, da Usina Nuclear de Angra 3 ou da Transposição do Rio São Francisco, tudo feito a conta gotas, seja por problemas de planejamento público, seja por problemas nas contratações e nos contratos, seja pela errática disponibilidade de recursos para pagamento desses contratos.
Por outro lado, não há dúvida de que, ao lado do investimento em infraestrutura por meio de concessões e PPPs, o país precisará retomar os investimentos públicos em infraestrutura. O nível atual de investimento em infraestrutura não tem sido suficiente sequer para manter o estoque de infraestrutura do país. Nos últimos dois anos não estamos sequer repondo a depreciação da nossa infraestrutura, o que tira do nosso país competitividade e cria obstáculos para um novo processo de crescimento e distribuição de renda.
Mas, ao contrário do que se pensa, retomar o investimento público em infraestrutura desta vez vai demorar mais do que realizar investimentos por meio de concessões e PPPs. Isso porque nos últimos anos as restrições fiscais comprometeram a capacidade de planejamento e investimento em desenvolvimento de projetos dos órgãos públicos setoriais. Para realizar obras, será preciso reiniciar o processo de contratação de projetos básicos e retomar as licitações de obra pública, o que, na prática, significa que os investimentos públicos em infraestrutura só ocorrerão a partir de 2024, no segundo ano do próximo governo. Por isso, não faz sentido interromper o fluxo de licitações de concessões e PPPs em curso, não apenas porque eles são mais eficientes na realização de investimentos, geração de empregos e distribuição de renda, mas também porque, no presente momento, isso significaria adiar pelo menos para 2024 investimentos que poderiam iniciar já em 2023.
Em relação a esse tema, é importante notar que dar continuidade ao fluxo de projetos de concessão e PPP é também uma medida de coerência política. O PT não deve esquecer que foi em seu governo, em 2004, que foi criada a lei federal de PPP e que foi em 2005, nas gestões Guido Mantega e Demian Fiocca, que foi recriada a área de estudos e projetos do BNDES, que atualmente é a responsável pela estruturação da grande maioria dos projetos de concessão e PPP relevantes para o país.
Mantida a continuidade e a prioridade do programa de concessões e PPPs para investimento em infraestrutura, não há dúvida que será preciso refocar os esforços em torno desses programas tanto nos setores econômicos quanto nos sociais para atender às demandas sociais que devem ser a prioridade em vista do aumento nos últimos anos da insegurança alimentar e da miséria em nosso país. Nesse sentido, eu creio que um Governo do PT poderia aumentar os esforços na direção das PPPs sociais, nas áreas de saúde, educação, habitação popular e estruturas para acolhimento de moradores de rua, setores nos quais já há exemplos de sucesso, vários deles com origens nos Governos do PT. Vale a pena lembrar que a primeira PPP no setor de saúde, a do Hospital do Subúrbio, foi criada, desenvolvida e implantada no Governo de Jacques Wagner, no Estado da Bahia, sob a coordenação do então Secretário de Saúde Jorge Solla. Já no setor de educação é unanimidade o sucesso da PPP de escolas do Município de Belo Horizonte, que foi desenvolvida na Secretaria de Educação, do Governo de Marcio Lacerda, quando esse cargo era ocupado pela secretária Macaé Evaristo, um quadro histórico do PT em Minas Gerais. Esses setores são de competência estadual ou municipal, mas o foco e a continuidade do apoio do BNDES e Caixa é essencial para que esses projetos saiam do papel.
No setor de água e esgoto, o novo marco legal de saneamento impulsionou o investimento por meio de concessões para a universalização dos serviços. Há sem dúvida correções de curso a serem feitas para chegarmos de fato à universalização em 2033, meta estabelecida pelo novo marco legal. Mas seria um erro refrear o impulso nos investimentos gerado pelo marco legal e pelas suas premissas. A situação é comparável à continuidade pelos Governos Lula e Dilma dos programas de universalização do acesso à rede de energia, que já estavam em curso no Governo Fernando Henrique, e que foram rebatizados como “Luz para Todos”. Em virtude da decisão correta dos Governos Lula e Dilma de dar continuidade a esses programas e das correções de curso que implementaram, o Brasil atingiu em 2013 a universalização do acesso à rede de energia elétrica. Precisamos fazer o mesmo no setor de saneamento. Dar continuidade ao programa iniciado com algumas correções de curso.
Em relação ao meio ambiente, será essencial pôr em prática políticas na direção da preservação da mata amazônica em pé, criando por um lado atividades econômicas para as populações locais que permitam a exploração sustentável da mata e um choque de tratamento do tema do desmatamento com consequências na imagem do país no exterior. As concessões de florestas para manejo sustentável serão certamente a melhor opção para isso. O BNDES está modelando atualmente mais de 60 projetos de concessões verdes (florestas e parques). São 8 florestas atualmente em modelagem com área total maior que 2 milhões de hectares e o PAOF (Plano Anual de Outorga Florestal), que está atualmente em consulta pública, prevê para o ano de 2023 a outorga de concessões de aproximadamente 5 milhões de hectares. Uma parte dessas modelagens estarão prontas para ir a leilão no primeiro semestre de 2023. É preciso assegurar a continuidade desse trabalho e a realização dessas licitações. Nisso também o PT estaria dando continuidade a políticas iniciadas em seu governo. Note-se que a lei sobre concessões de florestas foi aprovada em 2006, no primeiro Governo Lula, e as primeiras concessões de florestas na Amazônia para manejo sustentável foram feitas também no Governo do PT, quando o SFB (Serviço Florestal Brasileiro), autarquia federal vinculada na época ao Ministério do Meio Ambiente, era dirigido por Antonio Carlos Hummel e Natalino Silva, todos integrantes da gestão de Marina Silva no Ministério do Meio Ambiente.
Parece-me também necessário criar um programa para investimento em mobilidade elétrica, sobre trilhos e sobre pneus. Apesar de o tema ser de competência estadual e municipal, está claro que, se não houver uma política nacional de apoio técnico e financeiro a esses projetos, eles dificilmente vão sair do papel. Aliás, vale notar que, com exceção do Estado de São Paulo, que tem capacidade financeira para fazer investimentos nessa área independentemente de qualquer apoio federal, a última vez que o país fez investimentos relevantes nesse setor foi nos Governos do PT. Além de aumentar a eficiência e o conforto nas cidades, esse tipo de programa tem o mérito de reduzir o fluxo de veículos particulares de passageiros, reduzir emissoes de carbono e ruídos, algo absolutamente necessário para que as nossas cidades recuperem condições de competitividade.
Nessa linha, também é central desenvolver um programa de descarbonização dos setores de infraestrutura e das respectivas cadeias de produção. Isso porque, em primeiro lugar, as pessoas de baixa renda são as mais afetadas pelos desastres decorrentes das mudanças climáticas. Contribuir para evitar esses desastres deveria ser uma pauta central do Governo do PT, assim como o é atualmente em todos os governos de esquerda mundo afora. Além disso, como a busca da meta zero de carbono se tornou impositiva – em vista de terem sido superadas as dúvidas sobre a necessidade de se chegar à meta zero – os países que sairem na frente no desenvolvimento de meios para atingir essa meta terão vantagens competitivas e poderão exportar tecnologia e serviços. Esse tema é central também para devolver ao nosso país a reputação de compromisso e liderança em temas ambientais, coisa que foi lamentavelmente perdida no último governo.
É preciso, além disso, acabar com as milhares de mortes anuais que ocorrem no Brasil com desabamentos de encostas, enchentes e outros desastres naturais, como os recentes de Petrópolis, do interior da Bahia, de Angra dos Reis ou Recife. Apesar de também nesse tema a competência ser em regra municipal, é preciso verter recursos técnicos e financeiros da União para a remoção permanente das populações das areas de risco, instalação e manutenção de instrumentos para monitoramento pluviométrico detalhado, além da realização de investimentos para implantação e manutenção das estruturas de drenagem e contenção de encostas. Tudo isso poderia ser feito por meio de contratos de PPP. Mas como ainda não há estudos de viabilidade para fazê-lo por meio de PPP é preciso usar os contratos tradicionais de obra pública e prestação de servicos para dar respostas rápidas e evitar novas vítimas.
Nos últimos meses, houve declarações de Lula ou de pessoas que lhe são próximas falando em reverter privatizações eventualmente realizadas nesse último ano do Governo Bolsonaro. É preciso entender que a postura de cumprimento de contratos é essencial para assegurar a estabilidade do setor de infraestrutura, atrair novos investidores (coisa que o governo atual tem sido incapaz de fazer) e baratear as tarifas. Isso faz parte do conjunto de medidas que é preciso adotar para tirar o Brasil do ostracismo internacional, da posição de pária que o atual governo colocou o país. Continuaremos a não ser destino de investimentos se o próximo governo chegar com a expectativa de ruptura de contratos. Nesse sentido, a postura do primeiro Governo Lula, que evitou realizar qualquer processo de nacionalização e de quebra de contratos celebrados pelo seu antecessor, deve ser simplesmente copiada.Por fim, é preciso dar uma palavra sobre as agências reguladoras. Os Governos do PT não as trataram bem. Durante todo o Governo Lula pairava a ameaça de criação de um “controle social sobre as agências” que nada mais era que a tentativa do Poder Concedente de limitar a sua independência. E no Governo Dilma a coisa foi ainda pior com a criação da figura do “Diretor Interino” das agências, sem mandato e demissível ad nutum por decreto presidencial. A independência política, a capacidade técnica e a autonomia financeira das agências foram abaladas, coisa que documentei particularmente em artigo publicado em coautoria com Eduardo Jordão em 20182.
As agências agora sofrem particularmente com o exercício do TCU (Tribunal de Contas da União) de poder de controle incidente sobre a sua atividade regulatória, coisa também que se iniciou nos Governos do PT. É preciso liderar um movimento para pôr limites ao TCU e recuperar o espaço para uma regulação independente pelas agências reguladoras. Além disso, nos últimos anos, o Governo Federal aumentou o número de projetos de concessões sem crescer a capacidade das agências de acompanhá-los e fiscalizá-los. O próximo governo precisa fortalecer e fazer crescer as agências reguladoras para darem cabo da sua missão institucional.