Mauricio Portugal Ribeiro*1
Enquanto mostramos ao novo governo federal a conveniência de manter regras importantes do novo Marco Legal do Saneamento, particularmente após a publicação de decretos que emitiram sinais confusos sobre o que pretende fazer com essas normas, há outras ameaças à integridade do novo Marco Legal do Saneamento igualmente preocupantes e que precisam ser coibidas.
Refiro-me aos descumprimentos em massa do novo Marco Legal do Saneamento perpetrados sem alarde desde meados de 2021 pelo processo de regionalização do estado da Paraíba, que pretende evitar licitações para contratação de novas concessões do serviço por meio da institucionalização da Cagepa (Companhia de Água e Esgotos da Paraíba), a companhia estadual de saneamento do Estado, como única prestadora dos serviços de saneamento em 223 municípios do estado até o ano de 2055.
Trata-se de um superlativo descumprimento do novo Marco Legal do Saneamento e, provavelmente, o maior descumprimento já patrocinado por ente da federação da exigência constitucional de prévia licitação, prevista nos artigos 37, XXI e 175, da Constituição Federal.
O processo de regionalização dos serviços de saneamento está previsto no novo Marco Legal de Saneamento, na Constituição Federal e em diversas outras leis. O seu objetivo é usar os ganhos decorrentes de escala na prestação do serviço e subsídios cruzados tarifários para acelerar a universalização dos serviços. Além disso, a regionalização é um instrumento de coordenação entre os entes governamentais do exercício das atividades necessárias à regular prestação dos serviços de saneamento em áreas em que a atuação conjunta é indispensável.
O processo de regionalização nada tem a ver com escolha da identidade do prestador dos serviços, que, pelas regras atuais, deve ser sempre feita mediante prévia licitação, de modo a se obter a melhor proposta para os usuários e para o poder público.
No caso do estado da Paraíba, usou-se ilicitamente a regionalização para institucionalizar, sem contratação precedida de licitação, a Cagepa como prestadora dos serviços de saneamento nos 223 municípios. Essa regionalização ainda está em curso e há esperanças de que, à vista da dimensão única das ilicitudes já praticadas, as instituições encarregadas do cumprimento da Constituição e das leis classifiquem-na como ilícita e cessem os efeitos dos atos já praticados, que podem ser resumidos da seguinte forma:
(a) institucionalização ilícita (sem prévia licitação) da Cagepa como prestadora dos serviços em 39 municípios até o ano de 2055. Pelas regras atuais, seria necessária prévia licitação para contratação de concessionários de saneamento em todos esses 39 municípios.
(b) prorrogação de 48 contratos de programa da Cagepa até 2055. Não há base legal para essas prorrogações.
O estado da Paraíba já logrou, portanto, atribuir à Cagepa irregularmente o direito de atuar até 2055 em 87 municípios. Esses números já devem representar um recorde no descumprimento da exigência constitucional de prévia licitação.
Mas a situação é ainda mais grave. Se esse processo de regionalização não for interrompido, em futuro próximo, a Cagepa será instituída ilicitamente como prestadora de serviço em mais 136 municípios. Ao final, a regionalização do estado da Paraíba evitará a realização de licitações para a contratação de prestadores de serviço de saneamento em 175 municípios até 2055, ou seja, por 34 anos desde a sua realização, além de estender ilicitamente até 2055 o prazo dos 48 contratos de programa válidos. São descumprimentos de obrigações constitucionais e do novo Marco Legal de Saneamento com números nunca vistos.
Os fundamentos jurídicos usados pelo estado da Paraíba para promover esses atos ilícitos são pífios.
A justificativa utilizada para a institucionalização da Cagepa como prestadora dos serviços sem licitação nos 39 municípios com os quais ela não tem contrato válido se baseia na ideia de que o estado da Paraíba compartilha a titularidade dos serviços com os municípios e, por isso, poderia descentralizar a prestação dos serviços para a Cagepa. O problema é que o Supremo Tribunal Federal já decidiu na ADI 1842/RJ que a titularidade dos serviços é da entidade regional nos casos de interesse comum, ou dos municípios, na hipótese de interesse local. O estado da Paraíba não é, portanto, titular ou cotitular dos serviços, de maneira que não é viável a prestação dos serviços pela Cagepa sem licitação.
Em relação à prorrogação dos 48 contratos de programa da Cagepa até 2055, basta dizer que a prorrogação de contratos de programa pode ser realizada pelo prazo máximo de três anos e apenas nas situações em que seja necessária a uniformização do prazo de diversos contratos de programa para que eles sejam substituídos por contratos de concessão regionais. Os órgãos administrativos que atuaram na regionalização do estado da Paraíba usaram o falso pretexto da necessidade de uniformidade tarifária para prorrogar esses contratos. Mas, em primeiro lugar, já há uniformidade tarifária na área da Cagepa. Além disso, a uniformidade de prazo dos contratos nada tem a ver com a uniformidade tarifária. E, por fim, a uniformidade tarifária buscada pelo novo marco legal é a intrarregional, e não a inter-regional, e esses 48 contratos estão distribuídos em quatro microrregiões diferentes.
Há várias maneiras de o novo Marco Legal de Saneamento ser vilipendiado e do esforço realizado até aqui pela sociedade brasileira para viabilizar a universalização dos serviços ser sabotado, particularmente por pautas corporativistas. Se a regionalização colocada em curso pelo estado da Paraíba prosperar, ela alvejará o novo Marco Legal do Saneamento, ameaçando a sua sobrevivência e efetividade. Com a palavra as instituições deste país: governos, órgãos de controle e tribunais.