iNFRADebate: Prestação direta por companhias estaduais de saneamento básico

Ana Tereza Marques Parente* e Douglas Estevam**

Tramita no STF (Supremo Tribunal Federal) a Ação Direta de Inconstitucionalidade 7335/PB que, sob o pano de fundo jurídico, discute a possibilidade de prestação direta dos serviços públicos pela companhia estadual de saneamento básico nas microrregiões criadas pelo Estado da Paraíba, por meio da Lei Complementar 168/2021[1].

Os incisos VIII e XI do art. 7.º da lei complementar estadual[2] foram impugnados pela ABCON SIDCON (Associação e Sindicato Nacional das Concessionárias Privadas de Serviços Públicos de Água e Esgoto) por supostamente permitirem à CAGEPA (Companhia de Água e Esgotos da Paraíba) prestar serviços nas unidades territoriais urbanas sem a necessidade de licitação.

Em sua manifestação do dia 24 de fevereiro de 2023, a AGU (Advocacia-Geral da União) defendeu a legalidade das normas em questão, sustentando que as atividades de uma empresa estatal de quaisquer dos entes metropolitanos configurariam uma prestação direta do serviço público.

Mais especificamente, a AGU afirmou que, em razão do Estado da Paraíba ser “cotitular do serviço público de saneamento básico, em conjunto com os municípios que compartilham efetivamente instalações operacionais integrantes das respectivas microrregiões”, logo, estaria autorizada a “prestação direta dos serviços pela CAGEPA, uma sociedade de economia mista cujo capital pertence majoritariamente”[3] ao ente estadual.

No entanto, como o direito metropolitano sofreu atualizações muito recentes em nosso ordenamento jurídico[4], é natural que as opiniões ainda variem. Mas, ainda assim, é ofício dos juristas endereçarem as questões de modo técnico, a fim de que não sejam dadas respostas equivocadas aos mesmos problemas.

Dado o regime constitucional das unidades territoriais urbanas[5], é necessário entender o que é uma região metropolitana e como é concebida a titularidade de suas funções públicas de interesse comum. Antes de tudo, portanto, é importante dizer que as microrregiões são órgãos administrativos interfederativos — e, de nenhum modo, são um quarto ente federativo.

Nos termos do acórdão da ADI 1.842/RJ, são o agrupamento compulsório de municípios limítrofes que devem — com a participação do ente estadual — definir as políticas públicas que os afetem concomitantemente[6]. Nesse sentido, a lei complementar estadual que cria a unidade regional determina a competência conciliar[7] que os entes federativos deverão, em conjunto, exercer no âmbito do colegiado metropolitano.

Essa precisão conceitual é relevante, pois a instituição de uma unidade territorial urbana implica a atribuição da titularidade dos serviços públicos ao órgão deliberativo formado pelos entes metropolitanos — já que nenhum deles tem o direito de exercê-la isoladamente.

Nesse paradigma, é possível subordinar ou vincular órgãos ou entidades administrativas ao conselho deliberativo da unidade regional para a execução das funções públicas de interesse comum. Um exemplo claro disso é o Instituto Rio Metrópole, que é uma autarquia em regime especial sob controle do órgão interfederativo, então formado pelo governador, por vinte e dois prefeitos e mais três segmentos civis da Região Metropolitana do Rio de Janeiro.

Portanto, a título de contribuição, serão tecidas algumas breves considerações sobre a ação direta de inconstitucionalidade em epígrafe. Em primeiro lugar, é considerada prestação direita[8] somente aquela atividade que é desempenhada por um órgão do titular do serviço público; todavia, a CAGEPA não é órgão de nenhum dos colegiados microrregionais (nem sequer do Estado da Paraíba, visto que ela é uma pessoa jurídica de direito privado).

Em segundo lugar, para que se admitisse a prestação indireta (haja vista não se tratar de uma prestação direta) de acordo com o Novo Marco Legal do Saneamento, seria necessário um liame jurídico entre a empresa estatal e órgão colegiado deliberativo da microrregião — em alguma espécie de descentralização administrativa. Ao fim das contas, a CAGEPA não é vinculada a nenhum dos colegiados microrregionais, mas apenas e tão somente ao ente estadual, que é um dentre os vários integrantes do órgão deliberativo (art. 5.º da Lei Complementar 168/2021)[9].

Hipoteticamente, as microrregiões poderiam delegar a prestação dos serviços ao ente estadual[10], que continuaria contratado sem passar por processo seletivo concorrencial para a escolha do melhor prestador, mas isso foi expressamente vedado pela atual redação do art. 10, caput, da Lei n.º 11.445/2007 (alterado pelo Novo Marco Legal do Saneamento), cuja constitucionalidade já foi reconhecida pelo STF.

Se o argumento da AGU fosse válido, também seria possível que o serviço autônomo de água e esgoto de algum município metropolitano desempenhasse atividades em toda a extensão da microrregião — o que é uma redução ao absurdo. Ou seja, não se está a tratar nem de prestação direita nem de prestação indireta legítima, dentro do quadro normativo setorial.

Outro argumento que precisa ser também avaliado está relacionado à governança das microrregiões. Ora, se compete ao colegiado microrregional deliberar sobre assuntos de interesse regional (art. 7.º, II) e decidir, para cada microrregião, a forma de prestação dos serviços de interesse comum e seus responsáveis (art. 7.º, III, da Lei Complementar n.º 168/2021), então, como poderia, de antemão, a lei estadual delegar a prestação dos serviços à companhia estadual de saneamento básico?

Parece que a delegação a priori da prestação dos serviços com exclusividade à CAGEPA fere a liberdade do colegiado de cada microrregião decidir, caso a caso, o que é melhor de acordo com suas especificidades. Não é democrático que se aceite tal decisão exclusiva do Estado da Paraíba, ainda mais para beneficiar uma companhia privada da qual é acionista — sendo este um caso clássico de conflito de interesses.

Embora alguns defendam tal “brecha na lei”, parece-nos mais um atentado à segurança jurídica do marco legal do saneamento, cujo setor carece urgentemente de desenvolvimento em sua infraestrutura. Ao mesmo tempo, reclama a sociedade brasileira o bom senso de quem tem o poder de nos tirar, até 2033, das trevas que é a falta de saneamento.


[1] ESTADO DA PARAÍBA. Lei Complementar n.º 168, de 22 de junho de 2021. Institui as Microrregiões de Água e Esgoto do Alto Piranhas, do Espinharas, da Borborema e do Litoral e suas respectivas estruturas de governança. Disponível em: <http://sapl.al.pb.leg.br/sapl/sapl_documentos/norma_juridica/14119_texto_integral>. Acesso em 1.º mar. 2023.

[2] As normas impugnadas foram recentemente revogadas pela LC182/2023. ESTADO DA PARAÍBA. Lei Complementar n.º 182, de 27 de janeiro de 2023. Altera a redação do artigo 8.º e revoga os incisos VIII e XI do caput do artigo 7.º, ambos da Lei Complementar n.º 168, de 21 de junho de 2021. Disponível em: <http://sapl.al.pb.leg.br/sapl/sapl_documentos/norma_juridica/15976_texto_integral>. Acesso em 1.º mar. 2023.

[3] SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. ADI n.º 7.335/PB. Ministro Relator André Mendonça. Disponível em: <https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=6547099>. Acesso em 1.º mar. 2023.

[4] ESTEVAM, Douglas. O que é uma unidade territorial urbana? ConJur, 30 nov. 2022. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2022-nov-30/douglas-estevam-unidade-territorial-urbana>. Acesso em 1.º mar. 2023.

[5] ESTEVAM, Douglas. O regime constitucional das regiões metropolitanas. ConJur, 12 out. 2021. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2021-out-12/estevam-regime-constitucional-regioes-metropolitanas>. Acesso em 2 mar. 2023.

[6] LOPES, Marcelo. Da adequada interpretação da legislação federal ao tratar das funções públicas de interesse comum. In: MARTINS, Plínio Lacerda; PAUSEIRO, Sergio Gustavo de Mattos; TOSTES, Eduardo Chow de Martino (org.). Diálogos Brasil—Reino Unido: comparativo de jurisprudência e direito econômico. Rio de Janeiro: IDPP/EDUCAM, 2023. pp. 1.084-1.148.

[7] ESTEVAM, Douglas. A titularidade das funções públicas de interesse comum. ConJur, 25 mar. 2022. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2022-mar-25/douglas-estevam-titularidade-funcoes-interesse-comum>. Acesso em 2023.

[8] ESTEVAM, Douglas. Formas de prestação do saneamento. iNFRADebate, 3 ago. 2023. Disponível em: <https://agenciainfra.com/blog/infradebate-formas-de-prestacao-do-saneamento/#:~:text=Por%20derradeiro%2C%20a%20forma%20de,os%20servi%C3%A7os%20no%20territ%C3%B3rio%20nacional.>. Acesso em 2 mar. 2023.

[9] “Da Estrutura de Governança Art. 5° Integram a estrutura de governança de cada autarquia microrregional: I – o Colegiado Microrregional, composto por um representante de cada Município que a integra ou com ela conveniada e por um representante do Estado da Paraíba; II – o Comitê Técnico, composto por oito representantes dos Municípios e por três representantes do Estado da Paraíba; III – o Conselho Participativo, composto por: a) 5 (cinco) representantes da sociedade civil escolhidos pela Assembleia Legislativa; e, b) 6 (seis) representantes da sociedade civil escolhidos pelo Colegiado Microrregional; IV – o Secretário-Geral, eleito na forma do § 2º do art. 12. Parágrafo único. O Regimento Interno de cada autarquia microrregional disporá, dentre outras matérias, sobre: I – o funcionamento dos órgãos mencionados nos incisos I a IV do caput; II – a forma de escolha dos membros do Comitê Técnico e do Conselho Participativo, observando-se, quanto a este último, tanto quanto possível, o disposto no artigo 47 da Lei Federal n° 11.445, de 5 de janeiro de 2007; III – a criação e funcionamento das Câmaras Temáticas ou de outros órgãos, permanentes ou temporários.”

[10] v. ESTEVAM, Douglas. O saneamento básico e seus instrumentos jurídicos. ConJur, 7 jul. 2022. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2022-jul-07/douglas-estevam-saneamento-basico-instrumentos-juridicos>. Acesso em 2 mar. 2023.

*Ana Tereza Marques Parente é doutoranda em direito pela UFF (Universidade Federal Fluminense) e mestra em direito patrimonial privado pela Universidade de Salamanca, Espanha. [email protected]
**Douglas Estevam é mestre em direito da cidade pela UERJ (Universidade Estadual do Rio de Janeiro) e secretário-geral da Comissão Especial de Saneamento, Recursos Hídricos e Gás Encanado da OAB/RJ (Ordem dos Advogados do Brasil – seccional Rio de Janeiro). [email protected]
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