iNFRADebate: Quando a regulação vira novela mexicana

Felipe Freire da Costa*

Em junho de 2022, a ANTT (Agência Nacional de Transportes Terrestres) aprovou a abertura da AP 6/2022 (Audiência Pública 6/2022)[1], voltada à discussão do marco regulatório do TRIP (Transporte Rodoviário Interestadual de Passageiros).

Pelo cronograma aprovado[2], a matéria deveria ter sido objeto de deliberação pela diretoria colegiada da autarquia no início de outubro daquele ano, já contabilizando um adiamento anterior de 138 dias.

Quase 200 dias após o prazo previsto – 193 dias, para ser preciso –, a ANTT aprovaria um novo cronograma[3] para conclusão da AP 6/2022, que seria reaberta para rediscutir um assunto já amplamente discutido, tanto na própria audiência pública, como na TS 1/2022 (Tomada de Subsídio 1/2022) que a antecedera, e dedicada especificamente a esse fim.

O novo prazo, de mais 175 dias além dos 193 dias de descumprimento após o adiamento de 138 dias sobre o prazo original de 180 dias, encerrou-se no último dia 10 de outubro sem, mais uma vez, ter sido cumprido.

Nada disso, contudo, teria ocorrido se a ANTT tivesse aprovado a proposta resultante da AP 6/2022, com as alterações necessárias, o que não ocorreu em razão de uma recomendação da PF-ANTT (Procuradoria Federal junto à ANTT).

O órgão de consultoria e assessoramento jurídico da agência, em março de 2023, exarou um parecer sugerindo nova interpretação a uma matéria que já vinha sendo objeto de discussão com a sociedade desde fevereiro de 2022.

A ANTT, com o aval de sua diretoria, submeteu uma proposta ao crivo social em duas oportunidades (TS 1/2022 e AP 6/2022), e meses após a realização de uma audiência pública – com mais de 500 contribuições – que tinha no conceito de inviabilidade econômica seu ponto mais sensível, a PF-ANTT se manifestou no sentido de que aquela proposta apresentada à sociedade há mais de um ano estaria em desacordo com a legislação, recomendando a reabertura da audiência pública.

Este artigo tem por objeto o exame desse entendimento da PF-ANTT, constante do Parecer 00358/2022/PF-ANTT/PGF/AGU, de 14 de março deste ano, a seguir reproduzido:

64. Ou seja, construiu-se na SUPAS a lógica segundo a qual se a requerente deixa de atender às condições de capacidade técnica para prestar o serviço, o requerimento será indeferido por inviabilidade técnica de se delegar a autorização. A inviabilidade da operação proposta pela empresa, diante do desatendimento das exigências mínimas de capacidade técnica, importaria no indeferimento de seu pleito e isso representaria limitar o número de autorizações. O mesmo raciocínio foi usado para as três hipóteses de inviabilidade técnica, econômica e operacional.
65. Ocorre que a Lei tratou separadamente, porque distintas, as análises de inviabilidade, cujos critérios devem ser definidos conforme o § 1º art. 47-B, dos requisitos de acessibilidade, segurança e capacidade técnica, operacional e econômica a serem comprovados pela empresa requerente, cuja regulamentação é mencionada no § 3º do mesmo artigo.
66. Se estamos a tratar de requisitos – mínimos – de capacidade técnica, econômica e operacional, somada à exigência de capital social mínimos de dois milhões de reais (art. 47-B, § 3º, II), todos aqueles que forem capazes de preencher tais condições, merecerão ter a autorização deferida, sem limitação.
67. Quis, no entanto, o art. 47-B que a ANTT tivesse meios de limitar o número de novas autorizações, se excepcionalmente se defrontasse com um cenário de inviabilidade, ainda que todos os requerentes atendessem por completo aos requisitos de capacidade técnica, operacional e econômica. [destaques acrescidos]

Segundo a PF-ANTT, como o legislador referiu-se aos critérios de inviabilidade no § 1º do art. 47-B da Lei 10.233/2001 e aos requisitos mínimos no § 3º do mesmo artigo, a proposta em discussão social desde fevereiro de 2022 não estaria condizente com o texto legal, pois todos aqueles que atendessem aos requisitos elencados nesse último parágrafo “merecerão ter a autorização deferida, sem limitação”.

Permissa venia, divirjo da conclusão do órgão de consultoria e assessoramento jurídico da agência.

Existem diversas interpretações possíveis à nova redação do art. 47-B da Lei 10.233/2001, poucas, todavia, são adequadas, necessárias e proporcionais em sentido estrito, ante a imperiosidade de harmonização com as características da delegação mediante autorização (arts. 43, 44, 45, 47, 47-A, 47-C e 48 da lei) e com os princípios e diretrizes para o transporte terrestre (arts. 11 e 12 do mesmo diploma legal).

A interpretação que fora submetida inicialmente à AP 6/2022 é uma dessas leituras possíveis, assim como a que foi proposta pela PF-ANTT no mesmo parecer, mas que não será objeto deste texto.

Contrariamente ao que afirma o órgão de consultoria e assessoramento jurídico da ANTT – reproduzindo um equívoco do ministro revisor do TC 033.359/2020-2 em sua declaração de voto –, o art. 47-B da Lei 10.233/2001 não se presta ao estabelecimento de requisitos a serem comprovados pelos interessados em prestar o serviço de TRIP.

A norma desse artigo traz que as autorizações para prestação de serviço de TRIP serão ilimitadas, até que haja a impossibilidade de que assim o sejam. Logo, não há limite ao número de autorizações, salvo se comprovado que o limite existe.

Isso posto, a Lei Complementar 95/1998 dispõe[4] que a unidade básica de articulação de um texto legal é o artigo, o qual pode se desdobrar em parágrafos ou em incisos, os parágrafos em incisos, esses em alíneas e essas em itens.

Ainda segundo a norma de redação legislativa, cada artigo da lei deve ter seu conteúdo restrito a um único assunto ou princípio, em que os parágrafos expressam “aspectos complementares à norma anunciada no caput” ou “as exceções à regra por ele estabelecida”. Em adição, as discriminações e enumerações devem se dar na forma de incisos, alíneas e itens.

Se a intenção do legislador caminhasse no sentido de fixar exigências mínimas, essas, tal como referidas no § 3º do art. 47-B da Lei 10.233/2001, integrariam as normas dos arts. 29, 44, ou até do art. 48 da lei, conferindo maior clareza, precisão e ordenamento lógico à disposição normativa.

Como proposto, o § 3º do art. 47-B da Lei 10.233/2001 complementa o parágrafo anterior, dispondo sobre os requisitos a serem observados por parte dos operadores habilitados nas hipóteses em que a outorga de autorização deve ser precedida de processo seletivo público, não se prestando como regra geral de definição de requisitos mínimos aos processos regulares de autorização.

Em outros termos, os requisitos de acessibilidade, segurança, capacidade técnica, operacional e econômica da empresa e capital social mínimo de que trata o § 3º do art. 47-B da Lei 10.233/2001 seriam exigíveis nos casos de realização de processo seletivo público decorrente da comprovação da inviabilidade de autorizações ilimitadas.

Logo, é possível que a ANTT estabeleça requisitos distintos às autorizatárias em razão da realização ou não de um processo seletivo, desde que as exigências nos casos de seleção pública sejam equivalentes ou superiores àquelas requeridas das empresas nos casos de processos regulares de autorização. 

A despeito de eventual imprecisão legística, deve-se reconhecer o acerto da escolha legislativa, que replica políticas públicas já adotadas nos setores portuário e ferroviário.

Tanto a Lei 12.815/2013 (Lei dos Portos), como a Lei 14.273/2022 (Lei das Ferrovias) facultam o estabelecimento de exigências adicionais aos operadores nos casos em que a constatação de impedimento locacional resulte na necessidade de realização de processo seletivo público.

E a ANTAQ (Agência Nacional de Transportes Aquaviários) e a ANTT positivaram essas exigências em seus regulamentos setoriais, conforme a Resolução ANTAQ 71/2022 e a Resolução ANTT 5.987/2022.

No caso do setor portuário, ao dispor sobre a realização de processos seletivos públicos decorrentes do impedimento locacional de compatibilização de projetos de instalações portuárias, os §§ 3º ao 6º do art. 20 e o art. 28 da Resolução ANTAQ 71/2022 estabelecem a exigência de garantia de execução – de até 2% do investimento informado ou limitado ao montante de R$ 500 mil – ao autorizatário, exigência inexistente nos contratos de adesão de instalação portuária não submetidos à seleção pública.

A ANTT adotou solução parecida no caso de requerimento de autorização ferroviária que se sobreponha à faixa de domínio de outra ferrovia já requerida, disciplinado conforme os incisos V a VII e § 3º do art. 8º da Resolução ANTT 5.987/2022.

Especificamente nesses casos, a assinatura do contrato de adesão está condicionada ao pagamento do valor de outorga, critério de seleção adotado pela agência, exigência essa incabível aos contratos de adesão decorrentes de requerimentos cuja viabilidade locacional foi atestada pelo regulador ferroviário.

O legislador, na forma da Lei 14.298/2022, previu para o setor de TRIP a mesma solução legal e regulamentar anteriormente adotada nos setores portuário e ferroviário.

Não procede, pois, o entendimento da PF-ANTT, de que a redação dos §§ 1º e 3º do art. 47-B da Lei 10.233/2001 impossibilitaria a proposta discutida com sociedade ao longo do ano de 2022, tanto na TS 1/2022, como na AP 6/2022.

Pode-se afirmar que a legalidade da proposta questionada pela PF-ANTT foi reconhecida pela agência e pelo próprio órgão de consultoria e assessoramento jurídico no termo de compromisso firmado pela autarquia com o MPF (Ministério Público Federal). Na ocasião, a autoridade reguladora se comprometeu a analisar os pedidos de autorização segundo as regras da Resolução ANTT 4.770/2015, caso não deliberasse sobre o novo marco regulatório de TRIP até 10 de outubro último.

A Resolução ANTT 4.770/2015 segue uma lógica semelhante ao conceito de capacidades como critérios de inviabilidade, mensurados a partir de 35 requisitos diversos (técnicos, operacionais, econômicos, jurídicos, entre outros) necessários à obtenção das autorizações.

Inclusive, os requisitos da resolução vigente são mais rigorosos do que aqueles previstos pela Lei 14.298/2022 para eventuais casos de processos seletivos públicos – para os quais se previu a comprovação de exigências específicas.

Se pelo termo de compromisso com o MPF, as regras vigentes seriam válidas para analisar pedidos de autorização a partir de 10 de outubro, 10 de novembro ou 10 de dezembro, elas eram válidas antes dessas datas.

Sendo válidas para os fins do art. 47-B da Lei 10.233/2001, e são, não há óbice jurídico na proposta levada ao debate público em 2022, possibilitando que essa seja retomada pela agência, em lugar da proposta atual – eivada de vícios formais e materiais –, apresentada na reabertura da AP 6/2022, em julho de 2023.

A proposta da ANTT atualmente em discussão com a sociedade não dialoga com a Constituição Federal, com a Lei 10.233/2001 e muito menos com a interpretação da PF-ANTT que teria servido de motivação para sua adoção. Ainda há tempo da agência por um ponto final nessa novela mexicana, notabilizada por atuações e direção aquém do aceitável.


[1] Deliberação ANTT 203/2022.

[2] Deliberação ANTT 385/2021.

[3] Deliberação ANTT 118/2023.

[4] Dispõe sobre a elaboração, a redação, a alteração e a consolidação das leis, conforme determina o parágrafo único do art. 59 da Constituição Federal, e estabelece normas para a consolidação dos atos normativos que menciona.

*Felipe Freire da Costa é especialista em regulação de transportes terrestres e ex-assessor da diretoria da ANTT. É mestre em Engenharia de Transportes pela Coppe/UFRJ (Instituto Alberto Luiz Coimbra de Pós-Graduação e Pesquisa em Engenharia da Universidade Federal do Rio de Janeiro), com pós-graduação em Regulação de Transportes Terrestres pela UFRJ e em Direito da Regulação pelo IDP (Instituição Brasiliense de Direito Público).
As opiniões dos autores não refletem necessariamente o pensamento da Agência iNFRA, sendo de total responsabilidade do autor as informações, juízos de valor e conceitos descritos no texto.

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