iNFRADebate: Segurança jurídica nos contratos de concessão e a responsabilidade do administrador pelo descumprimento do contrato

Bernardo Strobel Guimarães*

Se existe um dogma indisputado no que se refere aos contratos com a administração – notadamente os de concessão – é a necessidade de se prestigiar a segurança jurídica. Contudo, tra il dire e il fare c’è di mezzo il mare.

Reduções tarifárias na base de canetadas, negativa de acolhimento de pleitos de reequilíbrio legítimos, postergação de reajustes sem justificativa, intervenções sem fundamento, leis que instituem isenções à margem de qualquer compensação: o cardápio de incertezas é variado e farto.

Acontece que isso não pode ser aceito como algo comum. Precisamos enfrentar a questão, identificando-a como um problema; a tomada de consciência é o primeiro passo para a solução. Enquanto não houver conscientização acerca da relevância da questão, jamais o discurso se transformará em ação e a segurança jurídica não passará de uma utopia.

É preciso ter claro que segurança jurídica não é apenas uma expressão bonita, descolada de efeitos práticos. Falar em segurança jurídica nos contratos de concessão pode até passar um ar transcendental à questão (como falar de justiça, por exemplo), afastando o tema do chão de fábrica, mas está longe disso.

No contexto dos contratos de concessão, segurança jurídica significa respeito às regras pactuadas entre as partes e às expectativas legítimas que existiam por ocasião da contratação. Implica respeito às regras e a convicção de que o que foi acordado pelas partes será respeitado.

Em contratos de concessão, um particular se dispõe a gerir, por sua conta e risco, uma atividade pública, promovendo investimentos que beneficiam a sociedade. E isto só pode acontecer de modo saudável se a decisão de investir e as considerações feitas por ocasião desta escolha sejam prestigiadas durante toda a execução contratual. Tais contratos já têm muitas incertezas; a elas não se devem somar riscos associados à agressão das regras do jogo.

Não é por outro motivo que a transferência de atividades do Estado a particulares se dá, em regra, pela via contratual (art. 175, parágrafo único, I, da Constituição Federal). É o contrato o instrumento capaz de estabilizar as expectativas das partes, criando um programa comum que lhes transmite firmeza de propósito.

Segurança, portanto, diz respeito a risco; e risco impacta diretamente no custo dos projetos de concessão. A percepção de insegurança que hoje envolve a execução desses contratos não beneficia a ninguém, e isso precisa ser discutido. Trata-se de um tema importante e que merece ser levado a sério, não podendo ser tratado como um valor metafísico e com pouca aderência aos temas do dia a dia da execução dos projetos de concessão.

Dito isto, podemos passar a buscar algumas respostas no que se refere ao porquê de se evidenciarem práticas por parte do Estado que agridem os contratos de concessão, o que passa pela consideração dos incentivos que envolvem a execução destes contratos. Afinal, agentes políticos tendem a adotar comportamentos racionais, avaliando os ônus e bônus de suas escolhas.

A prática de agredir o contrato, portanto, deve ser pensada a partir do sistema de incentivos por trás dessa escolha. Aqui, uma hipótese plausível é que o cálculo de risco/retorno na adoção dessas práticas por parte de agentes estatais é positivo. Em termos simples: a agressão ao que foi convencionado é vantajosa para aquele que a pratica. Por exemplo, há inegáveis ganhos políticos em investir contra contratos quando há uma má avaliação da prestação do serviço por parte da população.

Contratos de concessão dizem respeito à prestação de atividades à coletividade. Usualmente, a técnica da concessão transfere os custos de implantação e operação dos serviços aos usuários, o que muitas vezes leva a questionamentos acerca do custo de tais serviços. Neste contexto, é fácil explorar pretensões de que o serviço deveria ser mais barato, ou mesmo gratuito. Está aí a demanda de “passe livre” no transporte de passageiros, que demonstra a racionalidade por meio da qual muitas vezes estes contratos são percebidos pela população. As coisas devem ser gratuitas ou subsidiadas, não importando de onde sairão os recursos para tanto. É muito fácil contornar escolhas difíceis sobre como alocar recursos pintando o Estado como uma cornucópia de onde tudo sai e não há limites, como num passe de mágica.

Neste ambiente, a presença de empresários que prestam atividades públicas é sempre vista com desconfiança. Ora, onde já se viu querer ter lucro explorando atividades estatais? O senso comum de que é um contrassenso alguém ter lucro prestando atividades que deveriam ser prestadas pelo Estado contribui para que haja desconfiança sobre os contratos de concessão, notadamente aqueles que envolvem serviços que impactam diretamente em usuários de baixo poder aquisitivo.

Estes fatores se conjugam de modo a tornar confortáveis discursos demagógicos que vendem a ideia de que os contratos devem ser revistos à luz da onipresente supremacia do interesse público, muitas vezes compreendida como a possibilidade de torcer os contratos firmados ao sabor do vento político.

Isto é ainda mais grave em ambientes em que há a sucessão de grupos políticos rivais, em que atacar o que foi feito no passado é sempre uma estratégia à disposição dos que assumem os altos cargos da administração.

Enfim, a percepção de que é obrigação do Estado prestar os serviços públicos de modo gratuito e a desconfiança com as empresas privadas, somada à instabilidade política, são o meio de cultura do qual brota a agressão política aos contratos de concessão.

Uma outra hipótese para explicar a adoção dessas condutas diz respeito ao baixo risco de haver consequências negativas para aqueles que tomam as decisões que conduzem ao descumprimento ostensivo dos contratos. A verdade é que dificilmente a adoção de práticas populistas implica responsabilidade do agente político que as adota. Embora tenhamos uma cultura de responsabilização até excessiva dos gestores públicos, nos contratos de concessão parece haver um incentivo a adoção de posturas inadequadas.

E este é o ambiente perfeito para erodir a ideia de segurança jurídica. Há muito a se ganhar com a agressão aos contratos de concessão, especialmente em termos políticos, e pouco a se perder. Eis o xis da questão.

A chave para compreender isto está, em primeiro lugar, na própria concepção que se tem dos contratos administrativos, especialmente os de concessão. Tais ajustes asseguram ao Estado, na qualidade de poder concedente, a gestão da atividade. Diversas previsões normativas assinalam as competências do poder concedente para dirigir o modo de execução do contrato (notadamente as listadas no art. 23 da Lei 8.987/1995). Para tanto, a lei garante ao Estado diversas prerrogativas de modificar o vínculo celebrado, assim como competências para agir unilateralmente com vistas a tutelar o interesse público subjacente a tais contratações.

Contudo, tais atribuições não são um cheque em branco para se fazer qualquer o que quiser. Tais prerrogativas, como todas as competências administrativas, se dirigem ao atendimento de finalidades públicas. Em especial, o conteúdo econômico do contrato é intangível e não pode ser posto em xeque pela administração.

Não é à toa que a legislação exige que qualquer alteração que impacte no equilíbrio contratual seja neutralizada de maneira concomitante, de forma a impedir que a prerrogativa estatal de ingerir sobre os contratos seja exercida em violação ao núcleo econômico da avença (ratio do art. 35 da Lei 9.074/1995).

Embora os poderes conferidos ao poder concedente não sejam ilimitados, a reiterada agressão aos direitos dos concessionários parece não ter limites. Diariamente anulam-se os direitos do concessionário no altar da unilateralidade e das prerrogativas contratuais, como se o interesse público fosse um valor absoluto que justifica qualquer posição adotada pela administração – até mesmo porque na maioria das vezes os mais prejudicados pela desconfiguração dos contratos são os próprios usuários do serviço.

Com efeito, um dos problemas a serem enfrentados está em combater quaisquer arroubos que escapem à lei e ao contrato. Enquanto o caráter funcional das competências públicas não for posto em evidência, haverá abusos. Abusos estes muitas vezes chancelados pelo poder judiciário a partir de uma leitura equivocada das competências do poder concedente.

Outro ponto que contribui este quadro é a ausência de perspectiva de prejuízos pecuniários diretos por parte da administração. Como nas concessões ordinárias quem paga a conta é o usuário, eventuais prejuízos recairão sobre eles, o que torna o dano menos evidente aos olhos da administração.

Contudo, isso não passa de uma miragem. É evidente que a implementação de eventos de desequilíbrio oriundos de decisões do poder concedente é evento que causa danos tanto ao erário quanto ao usuário. Isso porque os valores artificialmente suprimidos do fluxo de caixa deverão ser recompostos pela taxa prevista contratualmente. Em todas as técnicas de reequilíbrio possíveis o usuário será prejudicado: ou pelo aumento da tarifa, ou pela redução/postergação de investimentos, ou mesmo prorrogação do contrato. Isso, por si só, já deveria expor o agente que adotou medidas ilegais à responsabilização pelas consequências de seus atos.

Assim, não faltam razões para a responsabilização dos agentes administrativos. Enquanto medidas panfletárias forem adotadas de modo impune continuaremos a tratar a segurança jurídica como um valor abstrato, que muito pouco diz sobre o fiel cumprimento dos contratos.

Em suma, enquanto não houver a cultura de respeito aos contratos administrativos por parte da administração e do judiciário, segurança jurídica será apenas uma expressão bonita, vazia de substância.

*Bernardo Strobel Guimarães é mestre e doutor em Direito do Estado pela FADUSP (Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo), professor de Direito Administrativo da PUCPR (Pontifícia Univerdidade Católica do Paraná) e membro da Comissão de Infraestrutura do IBDA (Instituto Brasileiro de Direito Administrativo).
O iNFRADebate é o espaço de artigos da Agência iNFRA com opiniões de seus atores que não refletem necessariamente o pensamento da Agência iNFRA, sendo de total responsabilidade do autor as informações, juízos de valor e conceitos descritos no texto.

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