ANP tem desafio de incluir esse tema em sua agenda regulatória: todo monopólio necessita de adequada regulação
Zevi Kann*
O Brasil atravessa um período animador para quem milita pelo desenvolvimento do mercado de gás natural no país. São diversas oportunidades e desafios inquietantes.
Falemos da metade do copo cheio. O Gás para Empregar, programa anunciado pelo ministro de Minas e Energia, Alexandre Silveira, poderá arrebatar R$ 94,6 bilhões de investimentos do setor privado para garantir uma oferta adicional de 14 milhões de metros cúbicos diários de gás natural no mercado nacional, de acordo com Pietro Mendes, secretário de petróleo, gás natural e biocombustíveis do MME (Ministério de Minas e Energia), em audiência pública na Câmara dos Deputados.
Outra notícia auspiciosa: o investimento no bloco exploratório BM-C-33, anunciado por três companhias (Petrobras, Equinor e a Repsol Sinopec) poderá resultar em 16 milhões de metros cúbicos diários de gás natural a partir de 2028. Some-se a isso o Rota 3, podendo chegar a 18,2 milhões de metros cúbicos diários disponibilizados a partir de 2024, e os campos de Sergipe com as primeiras entregas planejadas já a partir de 2027. Assim sendo, na oferta de gás, finalmente há motivos para otimismo.
Agora, observando a parte do copo vazio, é possível antever gargalos de infraestrutura. No mercado de gás nada acontece de um dia para o outro, e é bastante pertinente que as atenções também estejam focadas não só no upstream, mas no elo da cadeia que mais se ressente de novas infraestruturas, o midstream – mais especificamente o setor de transporte de gás natural, que, mesmo depois das privatizações realizadas em 2017 e 2019, ainda não recebeu nenhum pacote de investimento significativo de seus novos proprietários.
Além de investimentos em novos gasodutos, é preciso também um olhar mais atento para a melhoria do contexto regulatório. A revisão tarifária no setor de transporte é mais do que urgente, conforme explicado no artigo “Tarifas de transporte vão contra a reindustrialização do país“, publicado em fevereiro.
Mas outra questão se impõe: por que a regulação não prevê qualquer repasse para os consumidores, do fator de eficiência operacional das transportadoras?
É dever do regulador adotar medidas que, sim, protejam o equilíbrio econômico-financeiro da atividade, mas que, necessariamente, precisam inibir lucros excessivos resultantes da condição de monopólio.
Isso posto, cabe ao órgão regulador propiciar incentivos à eficiência na expansão dos gasodutos e na O&M (Operação e Manutenção) dos ativos já existentes, evidentemente remunerando a companhia por esses avanços de eficiência, mas forçosamente repassando parte desses ganhos para o consumidor.
E não menos importante: é dever do órgão regulador zelar para que o monopolista faça os investimentos em expansão da infraestrutura, para que os novos ativos decorrentes desse crescimento possam levar o benefício a mais consumidores, e, em contrapartida, resultando em ganhos de escala. A regulação de monopólios naturais, por fim, deve permitir que a atuação do agente propicie um ciclo virtuoso, auferindo receitas que impulsionem novos investimentos e gerem tarifas menores.
Não é o que temos visto, porém, no setor de transporte de gás, mesmo depois da privatização da NTS (em 2017) e da TAG (em 2019).
Decerto, essa questão há de merecer uma atenção criteriosa da ANP (Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis), até mesmo pelo fato de que esse tema já está no radar deste regulador há muitos anos.
Basta resgatar um documento elaborado pela Superintendência de Comercialização e Movimentação de Petróleo, seus Derivados e Gás Natural da própria ANP, datado do ano de 2016, que trata da regulação tarifária de gasodutos de transporte.
Vejamos um trecho do documento:
“Em mercados regulados, como o gasífero, o desafio do órgão regulador é aprovar tarifas baseadas em taxas de retorno justas e razoáveis, de forma a se garantir que o transportador monopolista aufira retornos análogos àqueles obtidos por agentes atuantes em mercados competitivos, expostos a níveis de risco similares. Ao mesmo tempo, deve-se assegurar, conforme mencionado acima, a proteção dos interesses dos consumidores quanto ao preço e à qualidade dos serviços prestados.”
Em continuidade a esse texto é sugerida a aplicação do fator de eficiência na regulação tarifária por custo de prestação de serviço (“cost based charges”):
“Esses parâmetros, combinados com a expectativa de demanda, resultam em uma tarifa desenhada para prover um montante fixo de receita para a empresa regulada, o qual será corrigido por um índice de inflação (e, possivelmente, deduzido de um fator de eficiência) com o objetivo de manter constante, em termos reais, a receita estimada.”
A ANP, como vimos, assume que o fator de eficiência é um dos pressupostos justos para estabelecer contrapesos à condição monopolista das transportadoras de gás natural. Sem prejuízo, claro, dos retornos da operação.
O que se tem visto, contudo, é uma situação desfavorável para o consumidor.
A inexistência de qualquer critério de repasse de eficiência, bem como de uma revisão tarifária, em contratos de longo prazo (de até 15 anos), faz da operação dessas empresas um negócio com resultados extraordinários. São fatores que geram caixa para os acionistas, mas pouco contribuem para uma nova era do mercado de gás brasileiro.
A NTS já vem tendo ganhos de eficiência. Por exemplo: até julho de 2021, a empresa contou com o suporte e apoio técnico de um braço da Petrobras, a Transpetro, para realizar a O&M de seus mais de 2.000 quilômetros de malha de gasodutos. Com o vencimento do contrato, a NTS assumiu integralmente a O&M a partir de agosto de 2021. Conforme demonstrativo da administração para o período posterior de 2022, houve significativo ganho de eficiência (redução de custos de operação), sem que tenha ocorrido, todavia, qualquer reflexo para a redução das tarifas, ainda que constatado um lucro de R$ 3,1 bilhões em 2022 para a empresa.
O demonstrativo financeiro de 2022, contudo, revela um montante de investimento muito aquém do esperado para uma transportadora situada no Sudeste, região vital para o processo de reindustrialização do país pretendido pelo MME. Dos investimentos anuais da transportadora desde 2017, consta apenas uma expansão de 11,5 quilômetros: o gasoduto Itaboraí-Guapimirim, o Gasig – projeto, aliás, amplamente questionado por diversos agentes em Consulta Pública da ANP por apresentar um custo de R$ 330,9 milhões – quantia 162% superior aos R$ 112 milhões originalmente estimados em 2015, em ajuste muito acima de qualquer indexador de inflação. Esse assunto, aliás, aparentemente foi esquecido, a julgar pelas atividades no site do regulador e pela agenda de sua diretoria.
Importante acrescentar que, além da falta de investimentos, a NTS levou três anos para assinar com a Petrobras o acordo de flexibilidade decorrente do TCC (Termo de Compromisso de Cessação), assinado em julho de 2019, um dos pressupostos do Cade (Conselho Administrativo de Defesa Econômica) para a abertura do mercado.
Esse atraso de três anos não permitiu uma devida abertura de mercado para outros carregadores na região, o que repercute diretamente nos preços da molécula de gás natural – a TAG, vale o elogio, foi muito mais célere. Na prática, a NTS, com as cláusulas de ship or pay praticadas, é remunerada por um gás que não transporta. Como em anos anteriores, com pequenas variações, a NTS transportou, em média diária no ano de 2022, um volume de 40,6 milhões de metros cúbicos, enquanto recebeu via tarifas por um volume de 158,2 milhões de metros cúbicos diários oriundo dos contratos de longo prazo assinados com a Petrobras na época da privatização. Ou seja, os consumidores pagaram montantes tarifários equivalentes a quase quatro vezes o volume de gás efetivamente transportado.
É estranho que essa situação incongruente ainda esteja passando despercebida. Seria bastante salutar que os grandes consumidores de gás natural, extremamente diligentes em relação às margens de distribuição, sejam mais vocais sobre essas questões, uma vez que as tarifas de transporte impactam severamente os custos de seus produtos.
O resultado desta total ausência de investimentos no transporte contrapõe-se ao segmento das distribuidoras que tem sido um dos setores que mais têm investido, duplicando a sua rede de distribuição nos últimos 12 anos, passando de aproximadamente 20 mil quilômetros em 2011 para mais de 41 mil quilômetros de dutos de distribuição no final de 2022, enquanto a malha de transporte, por sua vez, segue estagnada com a mesma extensão de aproximadamente 9,5 mil quilômetros, com base em infraestrutura construída inteiramente pela Petrobras.
O que se espera é que o mercado de gás tenha avanços efetivos em todos os elos, o que requisita, por parte da ANP, a adoção de uma agenda regulatória consistente, que combine competitividade com segurança jurídica. Somente desta forma serão estimulados investimentos efetivos em infraestrutura, colaborando para o desejado movimento de reindustrialização.
Os monopólios naturais precisam ter função social, não se resumindo à geração de caixa para seus acionistas. Isso afeta sensivelmente a competitividade da cadeia do gás e não estimula um mercado mais pujante. Logo, nessa nova fase do mercado de gás, não faz o mínimo sentido a manutenção de tarifas de transporte eternas! É preciso que a ANP inclua a revisão tarifária do setor de transporte de gás em sua agenda regulatória. Essa é uma promessa antiga do regulador, que vem da década passada. E um compromisso que precisa ser honrado o quanto antes, em defesa do interesse da sociedade brasileira.