Tiago Buss*
O setor ferroviário brasileiro, historicamente negligenciado e subaproveitado, vem gradualmente reconquistando o protagonismo no debate sobre desenvolvimento logístico, eficiência da matriz de transportes e competitividade econômica. Neste cenário, a malha da FCA (Ferrovia Centro-Atlântica) surge como peça importante, tanto pelos seus desafios quanto pelo seu potencial.
A proposta de renovação antecipada da concessão da FCA, no entanto, que se encontra em discussão pelo governo federal e pela ANTT (Agência Nacional de Transportes Terrestres), impõe ao país uma encruzilhada de alto impacto estratégico: perpetuar um modelo comprovadamente ineficiente ou inaugurar um novo ciclo com maior racionalidade, transparência e compromisso com o interesse público. Concedida em 1996 no contexto da privatização da RFFSA (Rede Ferroviária Federal), a FCA hoje detém a maior malha ferroviária concedida do Brasil, com mais de 7.200 km de extensão. A rede conecta regiões de alta relevância para a agroindústria, mineração, siderurgia e logística de exportação. No entanto, ao longo de quase três décadas de operação sob gestão privada, os resultados foram, em boa parte, decepcionantes: desempenho abaixo da média nacional, sucateamento da infraestrutura, falta de investimentos, baixa atratividade comercial e recorrente descumprimento de metas contratuais.
Diante disso, a proposta de prorrogação contratual por mais 30 anos é controversa e carece de respaldo técnico, jurídico e político.
O desempenho da FCA e o descompasso com os requisitos legais para renovações
A renovação antecipada da concessão da FCA, conforme proposta apresentada pela VLI à ANTT e ao Ministério de Transportes após a reabertura da Consulta Pública n° 12/2020 da ANTT, e atualizada em julho de 2025, representa um claro descumprimento dos critérios objetivos estabelecidos pela Lei nº 13.448/2017. O artigo 6º, inciso II, exige que tal renovação só possa ocorrer quando a concessionária demonstrar, de forma inequívoca, a adequada prestação dos serviços, condição que, no caso da FCA, está longe de ser atendida.
A análise de desempenho da operadora ao longo das últimas duas décadas revela um cenário crônico de ineficiência. A FCA possui a menor produtividade operacional entre as concessões ferroviárias brasileiras: em 2022, foram registrados menos de 2,7 milhões de TKU/km (toneladas-quilômetro úteis por quilômetro de linha), número quase cinco vezes inferior à média nacional (12 milhões) e muito distante dos padrões internacionais. Enquanto outras concessionárias operam com mais de 59 milhões de TKU/km em alguns trechos, a FCA permanece estagnada, subutilizando uma malha de mais de 7 mil km de extensão.
Além disso, sua velocidade média comercial (VMC) – indicador crucial de eficiência e atratividade logística – caiu de 15 km/h em 2006 para apenas 11 km/h em 2023, ao contrário da tendência ascendente observada em diversas outras operadoras. Tal regressão resulta de problemas estruturais: precariedade da via permanente, ausência de investimentos em sinalização, material rodante obsoleto e falta de soluções para conflitos urbanos.
A situação também não é positiva no campo da segurança operacional. A FCA apresenta, consistentemente, um número de acidentes por milhão de trem-quilômetro superior à média do setor. Em 2020, sua taxa foi 42% maior do que o padrão nacional, reflexo de falhas crônicas na manutenção da via, equipamentos ultrapassados e escassez de investimentos em prevenção.
Adicionalmente, os dados da ANTT revelam que a FCA descumpriu as metas contratuais de produção em 15 dos 21 anos analisados, sendo o último cumprimento registrado em 2018. Trata-se do pior desempenho entre todas as concessões do país – o que, por si só, comprometeria a elegibilidade da concessionária à prorrogação contratual nos termos da lei.
A tentativa de justificar a renovação com base em promessas futuras de melhoria entra em colisão direta com a exigência legal de comprovação de desempenho prévio e efetivo. A lei não permite que a prorrogação seja utilizada como aposta ou compensação por falhas passadas, mas apenas como reconhecimento de um histórico comprovado de prestação adequada – o que, no caso da FCA, inexiste.
Uma proposta de renovação tecnicamente inconsistente e insuficiente
Se os indicadores de desempenho da FCA já colocam em dúvida a legitimidade da renovação antecipada, o que dizer do conteúdo da proposta em análise? A modelagem apresentada à ANTT revela uma combinação preocupante de premissas ultrapassadas e ausência de investimentos estruturantes. Tudo isso compromete a robustez técnica e econômica da proposta e a torna incompatível com os princípios de vantajosidade exigidos por lei.
A começar pelos estudos de demanda. As projeções utilizadas baseiam-se em dados desatualizados – em muitos casos oriundos de 2019 –, desconsiderando a dinâmica recente de crescimento das exportações brasileiras. A consequência é uma subestimação sistemática do potencial logístico da ferrovia, especialmente em trechos como o Corredor Centro-Leste, que conecta importantes polos agrícolas e minerais a terminais portuários no Espírito Santo. Um exemplo simbólico: a estimativa de exportações de soja que previa 101 milhões de toneladas apenas em 2031 foi superada já em 2023. Um erro de oito anos em uma projeção dessa magnitude invalida qualquer análise de viabilidade econômico-financeira séria.
Com relação à expectativa de investimentos propostos, observa-se um desbalanceamento e insuficiência. Cerca de 94% dos recursos previstos estão concentrados na modernização da frota, ou seja, na aquisição de material rodante, com impacto limitado sobre a infraestrutura e a capacidade da malha. Ainda mais grave é o fato de que mais da metade desse capex seria realizada apenas após o 23º ano do novo contrato de concessão. A FCA permaneceria por mais de duas décadas com a infraestrutura degradada e sem perspectiva real de modernização sistêmica.
Assim, a proposta negligencia de forma sistemática os trechos mais deficitários da malha. Corredores como o Centro-Leste e o Minas-Bahia – justamente os que mais carecem de investimentos estruturantes – foram relegados a um segundo plano, enquanto o foco de investimentos se concentra no Corredor Centro-Sudeste, que já apresenta maior densidade de carga, e onde o grupo controlador da FCA possui interesses portuários consolidados no Porto de Santos. Ou seja, o plano de investimentos prioriza a rentabilidade privada, em detrimento da ampliação da eficiência logística nacional.
Para agravar ainda mais o cenário, a proposta contempla a devolução de mais de 2.100 km de trechos ferroviários – justamente aqueles abandonados ou negligenciados pela própria concessionária ao longo dos anos.
Por fim, a ausência de uma comparação estruturada entre a renovação e a alternativa da relicitação – exigência expressa do artigo 8º da Lei nº 13.448/2017 – impede que se afirme a vantajosidade da renovação. Sem uma análise comparativa transparente, qualquer decisão favorável à renovação carece de fundamentação jurídica sólida.
A nova proposta, apresentada pela VLI em julho de 2025, embora apresente cifras mais robustas e destine aportes relevantes a Minas Gerais – como os R$ 2 bilhões para o contorno ferroviário de Belo Horizonte e a promessa de continuidade da operação no trecho que conecta o estado à Bahia –, não resolve as fragilidades estruturais anteriormente identificadas. Ainda persistem como pontos críticos a concentração de investimentos em trechos de alta rentabilidade e em material rodante, e a ausência de uma análise comparativa robusta com a alternativa da relicitação, tudo isso em total descompasso com os objetivos estratégicos da política pública ferroviária brasileira.
Uma alternativa vantajosa: a relicitação segmentada por corredores
Diante da fragilidade técnica da proposta de renovação e do histórico de desempenho insatisfatório da atual concessionária, impõe-se a reflexão sobre caminhos alternativos que melhor atendam aos interesses do país. Uma possibilidade que merece atenção é a realização de nova licitação da malha operada pela FCA, com sua divisão em concessões distintas organizadas por corredores logísticos.
Essa segmentação permitiria, em tese, ganhos importantes. Cada trecho da malha – como os que conectam Goiás, Minas e São Paulo ao Porto de Santos (Centro-Sudeste); Minas ao Espírito Santo (Centro-Leste); e o norte de Minas à Bahia (Minas-Bahia) – possui características operacionais, vocações econômicas e gargalos específicos. Uma modelagem que respeite essas particularidades pode fomentar uma gestão mais especializada, ampliar a atratividade para investidores com perfis distintos e induzir a alocação mais eficiente de recursos.
Além disso, ao pulverizar a operação entre diferentes concessionários, essa abordagem ajudaria a quebrar o atual monopólio sobre a maior malha ferroviária do país, estimulando a concorrência, promovendo inovação e abrindo espaço para novos entrantes no setor. O ambiente concorrencial gerado por licitações distintas poderia também elevar o padrão de qualidade dos serviços ofertados, algo especialmente necessário em um contexto de baixa eficiência operacional e de infraestrutura obsoleta.
Cabe ressaltar que a Infra S.A. já elaborou estudos de viabilidade com a proposição do modelo de relicitação da ferrovia por corredores, o que está em linha com os princípios legais e estratégicos que devem nortear a política pública de transportes. Em vez de manter a lógica de um contrato único, centrado em um operador que não comprovou capacidade de modernização da malha, o país pode reorientar a concessão com foco em eficiência, concorrência e racionalidade econômica.
Uma decisão que exige coerência política
A aceitação da proposta representa uma inflexão no discurso anteriormente adotado pelo Ministério dos Transportes. Até o primeiro semestre de 2025, o ministro Renan Filho mantinha posição crítica à renovação nos moldes propostos pela concessionária, chegando a cogitar uma relicitação fatiada da malha por corredores logísticos. Essa perspectiva vinha sendo fortalecida por estudos técnicos elaborados pela Infra S.A. e por críticas explícitas à proposta original da VLI, considerada inferior às renovações firmadas com operadoras como MRS e Vale.
E por isso mesmo, é legítimo esperar que a atual gestão repense e adote, no caso da FCA, um posicionamento condizente com os princípios de eficiência, transparência e planejamento que defendia. Uma eventual decisão favorável à renovação nos moldes atuais, além de tecnicamente controversa, sinalizaria uma inflexão preocupante nas diretrizes da política pública de transportes, justamente em um momento em que o Brasil busca retomar seu protagonismo no planejamento de longo prazo e na racionalização da matriz logística nacional.
Mais do que uma escolha administrativa, a renovação antecipada da FCA é uma decisão política de alta repercussão. Ela pode perpetuar um modelo que já se mostrou falho ou inaugurar uma nova etapa de modernização, abertura de mercado e valorização do transporte ferroviário.
Conclusão: hora de recomeçar, não de repetir
O Brasil está diante de uma oportunidade rara. A malha da FCA, em toda sua extensão e complexidade, pode deixar de ser símbolo da estagnação para se tornar vetor de desenvolvimento. Mas isso só será possível se rompermos com a inércia e recusarmos a falsa segurança da renovação automática.
A relicitação, com segmentação por corredores logísticos e critérios técnicos claros, representa um caminho mais competitivo e ajustado à realidade do setor ferroviário. Ela favorece a concorrência, estimula novos investimentos e responde melhor às necessidades do país.
Mais do que um contrato, o que está em jogo é o futuro do transporte ferroviário brasileiro. Renovar a FCA da forma como está sendo proposto é repetir um erro. Recomeçar, com base em novos parâmetros, é fazer justiça à importância estratégica que essa malha representa.
Que a decisão a ser tomada esteja à altura do Brasil que queremos construir.
*Tiago Buss é economista e pós-graduado em Engenharia de Transportes.
As opiniões dos autores não refletem necessariamente o pensamento da Agência iNFRA, sendo de total responsabilidade do autor as informações, juízos de valor e conceitos descritos no texto.








