Opinião

Opinião – Limites da competência normativa das agências reguladoras em relação à arbitragem

Cesar Pereira*

Há tempos defendo a importância da distinção entre arbitrabilidade objetiva, escopos (objetos) da convenção de arbitragem e do processo arbitral, e sindicabilidade dos atos da administração submetidos ao juízo arbitral. Arbitrabilidade objetiva é a definição daquilo que pode ser excluído do conhecimento do Poder Judiciário e remetido à arbitragem.

O objeto da convenção é o que, no exercício dessa faculdade, as partes escolhem submeter ao regime da arbitragem. O objeto do processo arbitral, por sua vez, é um reflexo do objeto da convenção: aquilo que será debatido em cada processo concreto, que jamais poderá abranger matérias que ultrapassem os limites do objeto da convenção.

Por fim, sindicabilidade diz respeito à extensão do controle dos atos da Administração; desde que algo seja arbitrável e esteja abrangido pelos objetos da convenção e do processo, os contornos da sindicabilidade são os mesmos para o juiz e para o árbitro. Sindicabilidade não tem nada a ver com arbitrabilidade objetiva. Dizer que o árbitro (como o juiz) não pode invadir o “mérito” de um ato administrativo não é tratar de arbitrabilidade objetiva.

Somente a lei pode tratar de arbitrabilidade. É o que fazem a Lei nº 9.307 (Lei de Arbitragem) e os arts. 851 e 852 do Código Civil. E não qualquer lei, mas apenas a lei federal. Arbitrabilidade é matéria de processo. Trata-se de saber se o método de resolução da controvérsia é judicial ou extrajudicial, se algo pode ser excluído do conhecimento do Poder Judiciário – e por quem. O art. 22, inciso I, da Constituição Federal atribui exclusivamente à União a competência para legislar sobre processo (“[c]ompete privativamente à União legislar sobre: I – direito civil, comercial, penal, processual, eleitoral, agrário, marítimo, aeronáutico, espacial e do trabalho”). Definir os limites da arbitrabilidade não é matéria de procedimento, enquadrada na competência suplementar dos Estados.

Isso significa a invalidade, ineficácia ou inutilidade das leis e decretos que possam ser editados por estados, Distrito Federal ou municípios? Não. Apenas que eles não tratam de arbitrabilidade, mas do escopo (objeto) da convenção de arbitragem.

Ou seja, dentro dos limites da arbitrabilidade definidos pela lei federal, os atos normativos dos entes federados orientarão os integrantes dos seus próprios quadros (agentes públicos) em que situações poderão submeter litígios à arbitragem. A moldura estabelecida pela lei federal é ampla (“controvérsias relativas a direitos patrimoniais disponíveis”). Como qualquer outra parte em uma convenção de arbitragem, a Administração pode recortar, dentro dessa moldura, aquilo que quer prever como objeto de uma convenção de arbitragem.

Os decretos federais e as leis e decretos dos estados, Distrito Federal e municípios atuam no plano do escopo (objeto) da convenção de arbitragem, não da arbitrabilidade. Uma lei estadual ou municipal invadiria competência federal se pretendesse regular arbitrabilidade. Deveria ser sempre interpretada, de modo conforme, no sentido de que apenas regula o escopo (objeto) admissível pelo respectivo ente federado para suas convenções de arbitragem.

Por isso, tais leis ou decretos somente produzem qualquer efeito externo à Administração se incorporados pelas convenções de arbitragem. Não têm efeitos retroativos, não se aplicando a convenções de arbitragem já existentes. Se forem ignorados na convenção de arbitragem, isso não afeta a validade da convenção nem da arbitragem dela decorrente.

A conclusão é mais evidente no caso dos decretos, editados pelo ente federado para regular sua própria participação em convenções de arbitragem. Nada mais são do que atos que uniformizam e disciplinam o exercício de competências discricionárias por agentes públicos. Os decretos são o veículo natural para que os entes federados tratem do que pretendem ou não discutir em arbitragem e como pretendem fazê-lo. Desde que prévios à convenção (ou seu aditamento) e incorporados de modo consensual pelas partes da convenção de arbitragem, não representam qualquer subversão do regime da arbitragem.

No caso das leis estaduais, distritais ou municipais, há um complicador. Ao criar condições para a celebração de convenções de arbitragem, a lei invade a reserva de Administração? Caberia exclusivamente à Administração, no exercício da função administrativa, delimitar o objeto da convenção de arbitragem ou outras condições do eventual processo arbitral? Em termos abstratos, não me parece haver tal invasão. Porém, os parâmetros concretos fixados pela lei podem implicar a imposição de soluções ineficientes – por exemplo, que promovam a multiplicação de litígios em foros variados, dificultando a resolução do conflito. O conteúdo da lei infranacional pode acarretar sua invalidade.

A consulta e a audiência públicas realizadas em 7 e 14 de fevereiro pela ARES-PCJ ensejam outra discussão relevante. Nesse contexto, qual o papel das agências reguladoras? Onde se inserem do quadro traçado acima?

Em primeiro lugar, cabe distinguir agências como a ANTT (Agência Nacional de Transportes Terrestres), ANP (Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis) ou ANAC (Agência Nacional de Aviação Civil), que recebem delegação para atuar como poder concedente (e, portanto, ser parte em convenções de arbitragem), das que atuam apenas como reguladoras, como a ANEEL (Agência Nacional de Energia Elétrica).

Um ato normativo de uma agência delegatária do poder concedente pode disciplinar o escopo (objeto) que a agência reputa admissível para suas futuras convenções de arbitragem. Tal como um decreto do ente federado, produzirá efeito em relação às convenções de arbitragem em que seja consensualmente incorporado, ainda que por remissão. Trata-se de manifestação de autovinculação.

Mesmo nesse caso, a competência originária repousa com o poder concedente. Em um conflito entre um regulamento do ente federado delegante e um ato normativo da agência delegatária, prevalece o regulamento.

A situação de uma agência estritamente regulatória, que não é delegatária do poder concedente, é distinta. Não disciplina o seu próprio exercício da competência discricionária atribuída a ela pela definição legal ampla de arbitrabilidade. Exerce uma competência normativa para vincular terceiros – os agentes por ela regulados.

Essa competência normativa deve ser prevista e delimitada pela lei. Não pode violar a divisão constitucional de competências legislativas. Portanto, a agência jamais poderia receber competência normativa para dispor sobre arbitrabilidade, matéria de competência exclusiva da lei federal (Constituição Federal, art. 22, inciso I). Deve ser suficientemente clara e conter um núcleo essencial de significado que delimite de modo efetivo a competência normativa e não seja mera delegação de função legislativa.

O exercício dessa competência, por meio da edição de atos regulatórios, não pode conduzir a soluções ineficientes, que frustrem os parâmetros constitucionais do exercício da função administrativa. É o que ocorre com a previsão de mecanismos que ampliam o litígio, em lugar de o reduzir, criando procedimentos paralelos e eternizando a controvérsia. E mais: não podem ir além do que compete à própria Administração Pública no exercício de suas competências em face da convenção de arbitragem. Operam no âmbito da definição do escopo (objeto) da convenção de arbitragem e suas características, não mais que isso. Não podem pretender ter efeitos retroativos ou ser incorporados de qualquer forma exceto pelo consenso das partes na convenção de arbitragem.

A arbitragem envolvendo a Administração Pública no Brasil é um caso internacional de sucesso. Sua disseminação, especialmente a partir da alteração legislativa promovida pela Lei nº 13.129 em 2015, envolve desafios constantes. O avanço da arbitragem como método de solução de conflitos nas concessões e parcerias público-privadas municipais (saneamento, iluminação pública, estacionamentos rotativos e outros serviços públicos locais) amplia a complexidade do tema ao introduzir uma variedade de novos atores. A clareza conceitual favorece o tratamento normativo adequado e permite a preservação e ampliação dos ganhos de eficiência buscados pela Administração Pública ao se valer da arbitragem.

* Cesar Pereira é sócio do escritório Justen, Pereira, Oliveira e Talamini.

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