André de Seixas*, Eduardo Heron** e Osvaldo Agripino***
Por iniciativa do presidente da Câmara dos Deputados, o deputado Arthur Lira, em ato de 22 de novembro de 2023, foi instituída uma comissão especial de juristas com a finalidade de apresentar anteprojeto de proposição legislativa para revisão e atualização do arcabouço legal da exploração direta e indireta pela União de portos e instalações portuárias, a Ceportos.
O relatório da Ceportos e o anteprojeto de Lei, com 416 páginas, foram submetidos à votação dos seus membros, aprovado e divulgado recentemente, e sugere (art. 150) a revogação da atual Lei Nacional dos Portos (Lei nº 12.815, de 5 de junho de 2013).
Apesar do esforço dos membros da comissão, o resultado surpreendeu os que estudam e se preocupam com a competitividade da economia nacional, especialmente, os usuários de serviços portuários (embarcadores, exportadores e importadores) e os consumidores finais dos produtos que passam pelos portos.
O que foi proposto à carga fere de morte a possibilidade do Estado, através da regulação, proporcionar competitividade aos nossos produtos. Assim, ao inviabilizar o serviço adequado, acaba por afastar, ainda mais, a possibilidade de entrada no Brasil na OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico), que garante ao país ter um carimbo ou selo de viabilidade para negócios e investimentos. Em outras palavras: um enorme prejuízo ao Brasil, um desserviço.
Isso ocorre porque o anteprojeto propõe preços sem limites para a carga, com o fim da garantia da modicidade nos preços e tarifas, com a supressão dessa condição vital do serviço adequado na futura lei e, pior, ironicamente, cria a garantia da modicidade para as tarifas pagas pelos operadores portuários e armadores, ou seja, esses terão preços e tarifas com limites, o que viola a isonomia à garantia da modicidade entre esses e o usuário.
Em primeiro lugar: quem é o usuário que demanda serviços nos portos organizados (arrendatários) e TUPs (terminais de uso privado)? Exportadores, importadores, operadores portuários, transportadores marítimos, cujos navios pagam tarifa para usar o canal de acesso. Sobre esse conceito de usuário que utiliza os serviços portuários, é preponderante que o anteprojeto contemple propostas imparciais que aprimorem a futura Lei, sem discriminar determinado segmento, e garanta as conquistas já consagradas aos usuários (carga) na atual lei, sem retrocesso, como é o caso da modicidade, previsibilidade, planejamento e competitividade a essas empresas geradoras de emprego, renda e divisas ao país.
Apesar do empenho dos membros da comissão, que propôs alguns avanços, como os que se referem ao aperfeiçoamento do Conselho de Autoridade Portuária, da relação porto-cidade e a inclusão dos retroportuários na regulação da ANTAQ (Agência Nacional de Transportes Aquaviários), o anteprojeto trouxe muitas garantias aos terminais e armadores, mas suprimiu as garantias dos usuários, justamente daqueles que pagam todas as contas do sistema logístico-portuário do Brasil e fazem essa imensa roda girar.
Mencione-se que, o problema se agrava, ainda mais, porque não foi acolhida proposta de criação de uma metodologia para identificação de abusividade nos preços e tarifas no setor na nova lei, seguindo padrões de excelência de outros países e as decisões do TCU (Tribunal de Contas da União) decorrentes de auditorias e denúncias de abusos de preços no setor portuário, diante do débil modelo de regulação ex post, ainda com cobrança ad valorem em percentual vinculado ao valor CIF da carga.
Com relação aos padrões de excelência de outros países, é importante avaliar a padronização, não somente sob a perspectiva de valores cobrados pelos serviços portuários, mas também por sua eficiência e entrega do serviço adequado. Em outras palavras, não há justificativa plausível para suprimir a garantia de modicidade aos usuários e negar a criação da metodologia acima, após 23 anos da criação da ANTAQ.
De acordo com o ranking do World Shipping Council, a melhor posição brasileira é ocupada pelo porto de Santos (SP) (46ª posição), o maior da América do Sul, que movimentou 4,7 milhões de TEUs em 2023, quase 50% do total movimentado em 2023 em todos os portos do Brasil. Portanto, ao comparar os valores dos serviços portuários, deve-se avaliar também as condições de eficiência e modicidade do serviço adequado prestado aos usuários.
Por tais motivos, é vital garantir a modicidade aos usuários e a criação de metodologia na lei, condição para a efetividade da modicidade, baseado no livre mercado e na Lei de Liberdade Econômica.
O anteprojeto surpreendeu no tema modicidade, pois foi muito além da tentativa frustrada da Lei nº 14.047/2020 (dispõe sobre medidas temporárias para enfrentamento da pandemia da Covid-19 no âmbito do setor portuário), que visava excluir a garantia da “modicidade” e da “publicidade” nos preços dos terminais de uso privado. O problema voltou com mais força, com o direito ao abuso, porque sem limites.
No caso dos TUPs (Terminais de Uso Privado), esses terminais, em 2023, segundo anuário da ANTAQ, movimentaram 37% das unidades de contêineres no Brasil, de um total de 6,84 milhões de unidades, 2,54 milhões foram em TUP´s e 4,29 milhões em portos organizados.
O anteprojeto exclui a garantia existente da modicidade para os usuários de TUPs e dos arrendatários, todavia, inclui-a para os operadores portuários, por exemplo, que cobram dos armadores que operam como usuários dos portos e na infraestrutura de acesso aquaviário (Tabela I, ao fim do texto).
Vejamos que a justificativa do relatório abaixo não tem relação com a modicidade e não traz justificativa econômica minimamente plausível acerca dos motivos da sua retirada, o que torna o anteprojeto impopular. Ele abre uma enorme porteira para aumentos abusivos de preços de serviços portuários, cuja conta, no final, será suportada pelos cidadãos nas prateleiras dos supermercados, farmácias e comércio de maneira geral.
Isso pressionará, e muito, os preços de diversos produtos de primeiríssima necessidade, sendo certo que os nossos parlamentares enfrentarão problemas junto aos seus eleitores que pagarão a conta:
Justificativa: A garantia da modicidade e da publicidade das tarifas praticadas pelas autoridades portuárias nos portos públicos ou pelas administrações portuárias nos portos concedidos é uma diretriz que visa promover a transparência e a competitividade no setor. Tarifas módicas e transparentes são essenciais para atrair usuários e investidores, além de permitir um melhor planejamento logístico por parte dos agentes econômicos que utilizam os serviços portuários. (p. 257)
Nesse sentido, é importante destacar que a atividade portuária é de interesse público, porque, nos termos da Alínea f, Inciso XII do Art. 21 da nossa Constituição, compete à União, privativamente, explorar, diretamente ou mediante autorização, concessão ou permissão os portos marítimos, fluviais e lacustres. Logo, compete ao Estado proporcionar ao usuário o serviço adequado via garantias de preços competitivos aos cidadãos do país.
Cabe lembrar que a retirada da modicidade e da publicidade nos preços para os TUPs já foi vetada pelo presidente Jair Bolsonaro, depois da pressão dos usuários, com destaque para a atuação conjunta da Logística Brasil e do Cecafé (Conselho de Exportadores de Café do Brasil) que, além de oficiarem ao ex-presidente da República, foram ao Congresso Nacional conversar com diversas lideranças, que entenderam o tamanho do problema e mantiveram o veto presidencial.
O conceito operacional “modicidade”, que é uma condição do serviço adequado, um direito constitucional do usuário que faz parte de vários normativos e dos contratos de arrendamento, autorização e de adesão que envolvem os serviços portuários, poderá ser ainda mais sonegado.
Essa condição, que é vital para a competitividade da economia por meio da logística marítima-portuária, foi citada somente duas vezes no relatório e no anteprojeto (416 páginas). Ironicamente, as palavras “livre” e “liberdade” foram citadas 33 e 63 vezes, respectivamente. Indo além, a “livre iniciativa” foi citada 13 vezes e “serviço adequado” três vezes.
Uma desproporção e paradoxo quando se trata de defesa da competividade da economia nacional, que depende sobremaneira da infraestrutura portuária para os seus negócios e, especialmente, quando 95% (ANTAQ, 2023) do comércio exterior brasileiro é feito pela via marítima.
Diante de fatos e argumentos, verifica-se que, nesse ponto, parcela dos prestadores de serviços, na verdade, defende o direito de abuso em relação ao setor produtivo e, consequentemente, aos cidadãos. Assim, esperamos que o Congresso Nacional, ao ouvir as manifestações dos prejudicados com a redação proposta de retirada da garantia da modicidade aos usuários da lei, reveja-a, pois é evidente que essa alteração prejudicará muito a economia nacional e atingirá, em cheio, as camadas menos favorecidas da nossa sociedade, com o aumento dos custos de transação. Isso é um fato e não uma mera suposição.
Por isso, é imprescindível que os parlamentares do Congresso Nacional percebam que a proposta é extremamente impopular e de alto risco político, pois a retirada da garantia da modicidade se tornará um desafio junto aos seus eleitores, tendo em vista que o aumento dos custos de transação portuários será transferido aos produtos nas prateleiras dos supermercados, farmácias e comércio em geral, seja pela elevação dos custos dos insumos, seja pela elevação dos preços dos produtos acabados e aumento da inflação.
Devemos lembrar que o usuário embarcador é a figura mais próxima da população. Será que o presidente da Câmara dos Deputados desejava um resultado tão impopular à carga quando criou essa comissão?
Temos certeza de que não estamos diante do fim, quando se trata de aperfeiçoar o marco regulatório para garantir serviço adequado através da condição da modicidade ao usuário dos serviços portuários em atividade regulada pela ANTAQ que, até hoje, 23 anos após a sua criação, ainda não dispõe de metodologia para identificar abusividade nos setores portuário e marítimo.
É um paradoxo. Isso se dá, especialmente, quando o estado e governo devem buscar mais eficiência e segurança jurídica, não somente para o investidor privado, de um lado, mas para o usuário, de outro lado, cuja competitividade é razão de existir da regulação de toda a cadeia de prestadores de serviço. É preciso ter equilíbrio, garantir a modicidade de forma isonômica a todos, e não ser impopular aos consumidores finais.
Enfim, agora, e pela segunda vez, lembramos ao atual presidente da República e aos nossos parlamentares que o anteprojeto impopular à carga aprovado pela Ceportos é um verdadeiro tiro nos seus pés, portanto, é preciso avaliar os desdobramentos políticos negativos que ele trará. Esses, em breve, terão que prestar contas aos seus eleitores.
Quadro sintético-comparativo da modicidade na Lei dos Portos x Anteprojeto
* André de Seixas é Presidente da Logística Brasil.
** Eduardo Heron é Diretor técnico do Cecafé (Conselho de Exportadores de Café do Brasil).
*** Osvaldo Agripino é advogado e consultor em logística de comércio exterior, Pós-Doutor em Regulação de Transportes e Portos Comparada (Harvard University).
As opiniões dos autores não refletem necessariamente o pensamento da Agência iNFRA, sendo de total responsabilidade do autor as informações, juízos de valor e conceitos descritos no texto.