Adalberto Santos de Vasconcelos* e Rafael Andrade de Vasconcelos**
A renegociação contratual consensual se tornou, nos dias atuais, instrumento de concretização de eficiência, de segurança jurídica, de atualidade e de sustentabilidade econômico-financeira dos contratos de concessão de serviços públicos ditos “estressados”, ao permitir a continuidade da execução contratual e, consequentemente, da prestação de serviços aos usuários de forma adequada e sem interrupção, o que materializa o interesse público primário a ser perseguido em parcerias entre o poder público e a iniciativa privada.
O consensualismo se apresenta como tendência mundial em busca de solução para contratos administrativos que necessitam de aprimoramento para atender efetivamente ao interesse público de maneira mais eficiente e contínua. Evita-se, assim, litígios prolongados e desnecessários, aumenta a segurança jurídica e resolve controvérsias de grande relevância social e econômica para o ente federativo, tudo isso em linha com a dinamicidade da execução contratual.
O consensualismo tem sido a opção de diversos entes federativos para endereçar problemas decorrentes de insustentabilidade econômico e financeira de certas concessões de serviços públicos, de forma célere se comparado com outras alternativas, como a relicitação e a caducidade, por exemplo. Nesse sentido, o referido tema tem sido destaque em diversos eventos e seminários recentes no Brasil, sendo comum presenciar afirmações de vários expositores no sentido de ser o consensualismo entre o poder público e a iniciativa privada inevitável na busca eficaz de solução de conflitos em virtude dos problemas vivenciados pelo Brasil nos últimos anos.
Entre os temas que mereceram atenção especial nas discussões da renegociação contratual consensual, encontra-se o risco moral ou sistêmico, que foi mitigado pela implementação do processo competitivo, ao qual o contrato de concessão renegociado deverá ser submetido.
No último dia 30 de janeiro, a ANTT (Agência Nacional de Transportes Terrestres) aprovou a publicação do edital do primeiro processo competitivo para escolher novo operador para o contrato de concessão administrado atualmente pela MSVia (Concessionária de Rodovia Sul-Matogrossense S.A). A agência acertou ao estabelecer que a atual controladora da rodovia possa se manifestar quanto ao desejo de participar da etapa viva-voz caso haja proposta econômica classificada, ou seja, a agência se posicionou em linha com o espírito do Acórdão n.º 1593/2023-TCU-Plenário, ao privilegiar a permanência da atual concessionária à frente do ativo em contraponto ao espírito da relicitação que exige a renúncia expressa da atual concessionária em participar do certame licitatório (art. 14, inciso IV, e art. 16 da Lei n.º 13.448/2017).
O Edital de Processo Competitivo nº 1/2025 tem por objeto a alienação de 100% (cem por cento) das ações representativas do capital da MSVia. As avaliações econômico-financeiras foram desenvolvidas no âmbito do processo de solução consensual realizado no TCU (Tribunal de Contas da União) e aprovado pelo Acórdão nº 2434/2024-TCU-Plenário. O referido documento editalício permite ampla participação de interessados no certame licitatório, ou seja, de pessoas jurídicas brasileiras e estrangeiras, inclusive instituições financeiras, fundos de investimentos em participações brasileiros de qualquer tipo, fundos de investimentos estrangeiros e entidades de previdência complementar, isoladamente ou em consórcio, desde que satisfeitas plenamente as disposições do aludido edital e da legislação em vigor (Cláusula 8.1).
O processo competitivo foi dividido em duas partes: (i) entrega de documentos atinentes à pré-identificação e garantia de proposta, à proposta econômica e aos documentos de qualificação, para licitantes interessados afora a atual controladora (cláusula 10.2 c/c cláusula 10.4.21); e (ii) etapa de viva-voz, em que a atual controladora poderá, caso haja proponente classificado para essa etapa, participar do processo competitivo individualmente (cláusula 10.4.21). Em não havendo interessado, “a SESSÃO PÚBLICA não será realizada e o PROCESSO COMPETITIVO prosseguirá sem a aquisição das ações da MSVIA e com a manutenção da titularidade da CONTROLADORA sobre a totalidade das ações da SPE” (cláusula 10.4.22). Dessa forma, a ANTT permitiu, acertadamente, a permanência da atual concessionária na administração do ativo, em pleno alinhamento com o espírito do Acórdão n.º 1593/2023-TCU-Plenário.
Relembro que, em 31 de agosto de 2022, publiquei na Agência iNFRA o artigo intitulado “Para além da ideologia: a agenda apartidária da infraestrutura brasileira”[1], em que destaquei “três medidas essenciais e inadiáveis para qualquer programa de infraestrutura que busque retomar a segurança jurídica, previsibilidade e estabilidade regulatória e, ainda, que almeje alavancar o Brasil rumo ao crescimento sustentável e competitivo por meio de investimentos em infraestrutura”. Revisito-as:
A primeira medida essencial e inadiável refere-se ao equacionamento dos passivos regulatórios dos contratos em execução. Ressalte-se que eles foram firmados com o Estado brasileiro e não com determinado governo, pois são ajustes de longo prazo e perpassam diversas gestões. O referido equacionamento passa por soluções concretas para resolver as concessões em andamento, seja para permitir a ampla revisão do modelo de regulação econômica dos ajustes, a ser anuída entre os diversos stakeholders, em um pacto nacional pela infraestrutura, e/ou por meio do aperfeiçoamento das regras excepcionais de resolução dos contratos.
A segunda medida, a ser implementada concomitantemente à primeira, é no sentido de que os projetos que compõem a carteira do PPI (Programa de Parceria de Investimentos) devem ser reavaliados para certificar de que o modelo de regulação de preços e os riscos alocados estão aderentes às características do ativo e à realidade brasileira, para evitar erros incorporados em contratos celebrados que se mostraram insustentáveis durante a execução contratual.
Ademais, é preciso revisitar os contratos recentemente firmados e avaliar se também não é o caso de se antecipar aos problemas já concretizados em outros contratos e promover os pertinentes adendos necessários, a fim de dotar esses ajustes dos meios contratuais apropriados e eficientes para lidar com eventos que ameacem o bom termo dos contratos.
Por fim, a terceira medida essencial e inadiável, não menos importante, é construir as novas bases do arcabouço teórico e normativo multidisciplinar que confira suporte teórico à interpretação dos contratos de parceria com a iniciativa privada. (grifos não constantes do original)
Em linha com esse pensamento externado em 2022, observo, na atualidade, que a primeira iniciativa se encontra em curso tanto no âmbito federal quanto em alguns estados da federação. Veja-se, por exemplo, o caso do Estado da Bahia em que o TCE-BA (Tribunal de Contas do Estado da Bahia) editou a Resolução n.º 046/2024, que institui, no âmbito dessa Corte de Contas, “procedimentos de solução consensual de controvérsias e prevenção de conflitos, visando promover o consensualismo, a eficiência e o pluralismo em temas relacionados à administração pública”. O crescimento do consensualismo reflete o potencial e a grande utilidade desse instrumento para o equacionamento dos passivos regulatórios de contratos de parcerias em execução “estressados”.
Com efeito, no âmbito federal, observo esforço de implementação, pelas agências reguladoras setoriais, da segunda iniciativa, ainda que de forma tímida na maior parte dos setores. Destaque-se, como boa prática, a implementação do novo modelo de alocação de riscos proposto pela ANTT, em que a agência estabelece o compartilhamento do risco de demanda, do lado da receita, e do risco de eventos não conhecidos quando da celebração do ajuste, denominado de risco residual, do lado dos custos. Entretanto, esse é assunto para outro artigo.
Não obstante as inovações contratuais que tentam endereçar problemas identificados nos contratos encerrados e naqueles em vigor, entendo ser necessária reflexão mais ampla, notadamente no que se refere ao tipo de regulação econômica: regulação por contrato versus regulação discricionária, tema que já abordei em artigo anterior[2]. Ademais, é preciso não apenas mitigar riscos e redistribuí-los para os novos contratos de concessão, mas, eventualmente, internalizá-los no modelo de renegociações contratuais consensuais para as concessões em andamento a fim de priorizar o interesse público primário.
A terceira iniciativa diz respeito à atualização da interpretação do direito administrativo regulatório em face da dinamicidade dos fatos/gravames que acometem contratos de longo prazo, a exemplo dos contratos de parcerias de infraestrutura, que geralmente ultrapassam os 20 (vinte) anos de execução contratual.
Como disse no artigo já mencionado publicado em 2022, “a doutrina jurídica tradicional já não responde às demandas reais que permeiam os contratos de concessão. Não é mais possível que soluções acordadas entre as partes que privilegiem a adequada execução dos contratos sejam questionadas por supostas violações à seleção da proposta mais vantajosa para a Administração Pública, sem que se precifique o ônus da inação do Poder Público na provisão do serviço ou da infraestrutura”. É preciso usar a “lente” da flexibilidade e razoabilidade na gestão e na interpretação dos contratos.
Veja-se que contratos de concessão, por serem acordos de longo prazo, são, por natureza, incompletos, razão pela qual a construção de matriz de repartição de riscos, mesmo que construídas de forma robusta – ao alocar determinado risco à parte que melhor pode gerenciá-lo, evitá-lo ou mesmo suportá-lo em caso de sua materialização – não consegue endereçar todos os gravames que esses ajustes estão sujeitos durante a execução contratual.
Por essa razão, também se tornam incompletas as regras/situações de reequilíbrio econômico-financeiro previstas em contratos de concessões, exigindo “caminhos” alternativos mais eficientes e aliados ao interesse público primário – que é a efetiva entrega de serviços de qualidade e regularidade aos usuários – do que o processo de relicitação ou de caducidade. Ou seja, o reequilíbrio econômico-financeiro – caracterizado por sua rigidez contratual – se mostrou limitado e insuficiente, diante dos diversos problemas acometidos à grande parte das concessões de infraestrutura pública, para tratar da insustentabilidade econômica e financeira desses ajustes, sobretudo, em virtude da crise econômica pela qual acometeu o Brasil a partir de 2014, dos desajustes contratuais decorrentes da pandemia da Covid-19 e da acelerada e das imprevisíveis mudanças presenciadas no mundo, exigindo arranjos contratuais de longo prazo que disponham de mecanismos efetivos de reposicionamento de preços, de absorção de novas tecnologias e de avanços que não foram previstos nos ajustes originais.
Portanto, o consensualismo vem responder a diversas demandas não abarcadas nos processos de reequilíbrios econômico-financeiros. Ademais, possibilita a retomada mais célere dos investimentos necessários para prestação de serviços adequados aos usuários de forma ininterrupta. Ao permitir que a atual concessionária de rodovia concedida, cujo contrato foi renegociado no âmbito do TCU, possa se manifestar quanto ao desejo de participar da etapa viva-voz, caso haja proposta econômica classificada, a ANTT se posicionou em linha com o espírito do Acórdão n.º 1593/2023-TCU-Plenário, o qual privilegiou a permanência da atual concessionária à frente do ativo em contraponto ao espírito da Lei de Relicitação, que exige a renúncia expressa da atual concessionária em participar do certame licitatório. Esse racional deve inspirar outros entes reguladores federal e estadual.
[1] https://agenciainfra.com/blog/para-alem-da-ideologia-a-agenda-apartidaria-da-infraestrutura-brasileira/, acessado em 25 de junho de 2024.
[2] https://agenciainfra.com/blog/para-alem-da-ideologia-a-agenda-apartidaria-da-infraestrutura-brasileira/, acessado em 25 de junho de 2024.
*Adalberto Santos de Vasconcelos é CEO da ASV Infra Partners – Consultoria em Infraestrutura.
** Rafael Andrade de Vasconcelos é diretor de Projetos da ASV Infra Partners – Consultoria em Infraestrutura.
As opiniões dos autores não refletem necessariamente o pensamento da Agência iNFRA, sendo de total responsabilidade do autor as informações, juízos de valor e conceitos descritos no texto.





