Adalberto Santos de Vasconcelos* e Caio Felipe Caminha de Albuquerque**
Ninguém duvida da importância da infraestrutura rodoviária no Brasil e o país já teve diversas experiências com o seu financiamento. Uma das mais conhecidas foi a instituição do FRN (Fundo Rodoviário Nacional) em 1945, que coincidiu com o movimento do “rodoviarismo”, quando ocorreu uma grande expansão dos investimentos em rodovias[1].
A partir da década de 1970, por diversos fatores políticos e econômicos, o Fundo Rodoviário Nacional perdeu importância e foi gradativamente extinto, com a destinação gradual de seus recursos ao FND (Fundo Nacional de Desenvolvimento)[2]. Dessa forma, prevaleceu por certo tempo, em nível federal, a manutenção e a expansão da malha rodoviária por meio de recursos gerais do orçamento público.
As dificuldades de manutenção dos investimentos em infraestrutura puramente por meio do orçamento público culminaram, contudo, na década de 1990, na formalização da primeira etapa do Procrofe (Programa de Concessões de Rodovias Federais), como uma das formas de solucionar a escassez crônica de recursos fiscais destinados à infraestrutura rodoviária.
Com o tempo, a busca por mais recursos para os investimentos na infraestrutura rodoviária resultou também no fenômeno de criação de fundos estaduais.
Diversos Estados instituíram fundos cujo propósito principal é o desenvolvimento da infraestrutura, destacadamente a rodoviária, como: Mato Grosso (Fethab)[3], Mato Grosso do Sul (Fundersul)[4], Minas Gerais (Funtrans)[5], Goiás (Fundeinfra)[6], Tocantins (FET/TO)[7]. Muitos desses fundos possuem em comum vinculação com a produção agrícola usuária de rodovias no escoamento da produção e, quase sempre, com a instituição de contribuições facultativas do setor produtivo que são condição para a adesão a regimes especiais de ICMS (Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços)[8].
Historicamente, esses fundos, quando bem utilizados, tem gerado bons resultados e o caso de Mato Grosso ilustra bem isso, como será visto adiante. No entanto, o cenário muda com a Reforma Tributária.
O FNDR (Fundo Nacional de Desenvolvimento Regional) é uma das criações da Emenda Constitucional nº 132/2023, inserido no âmbito da reforma tributária, para evitar a perda da capacidade de investimento dos Estados por conta da tributação da CBS (Contribuição Social de Bens e Serviços) e da IBS (Imposto sobre Bens e Serviços) apenas no local de consumo. Ressalte-se que antes era no local de produção e de consumo.
O referido fundo pode ser utilizado para estudos, projetos e obras de infraestrutura, bem como para o fomento a atividades produtivas com elevado potencial de geração de emprego e renda, incluindo a concessão de subvenções econômicas e financeiras. Ademais, ele pode promover ações com vistas ao desenvolvimento científico e tecnológico e à inovação.
Os recursos do FNDR serão aportados pela União de forma gradativa de 2029 a 2043, quando será atingido o valor de aporte de 60 bilhões de reais por ano. Esses valores serão distribuídos conforme dois critérios: i) 70% de acordo com o coeficiente individual no FPE (Fundo de Participação dos Estados); e ii) 30% conforme a distribuição populacional.
A Reforma Tributária também trouxe regra específica para os fundos estaduais citados. Agora, é possível a instituição de novas contribuições (desta vez, obrigatórias e não vinculadas ao ICMS), que substituirão as contribuições facultativas dos fundos estaduais, de acordo com o art. 136 do ADCT (Ato das Disposições Constitucionais Transitórias)[9].
Essa alteração, por outro lado, limita a existência das contribuições substitutivas até 31 de dezembro de 2043, quando deverá ser completamente extinta. Ou seja, a Reforma Tributária criou uma espécie de regime de transição para os fundos estaduais, que os levará a serem substituídos, ao final, pelo FNDR como fonte de financiamento público nacional da infraestrutura.
Nesse contexto, há uma importante questão, ainda pouco levantada, que precisa ser encaminhada: a forma de distribuição de recursos do FNDR será suficiente para a manutenção dos investimentos em infraestrutura logística demandados pelos estados focados em produção agrícola?
Estados produtores, como no caso de Mato Grosso, possuem reduzida participação no FPE e população relativamente baixa, de modo que a extinção dos fundos estaduais pode trazer como resultado indesejado queda nos investimentos em infraestrutura rodoviária, tão necessários para o escoamento da produção e a manutenção de preços competitivos do agronegócio.
Para se ter ideia, Mato Grosso tem coeficiente individual de participação no FPE, em 2025, de 1,78%, estando acima de apenas 4 unidades federativas (MS, SP, DF e SC)[10]. Já no ranking populacional, de acordo com o Censo 2022, o Estado ocupa a 16ª posição entre as 27 unidades. Em outras palavras, usando os critérios de distribuição constantes do aludido Fundo, o Estado não receberá grandes valores do FNDR.
Por outro lado, dados históricos acerca da utilização dos recursos do Fethab em Mato Grosso demonstram que, de 2003 a 2006, o fundo correspondeu a quase 82% do total de investimentos em infraestrutura rodoviária no Estado[11], o que reforça a relevância e a necessidade de aprofundamento do debate acerca da importância desses fundos estaduais na promoção do desenvolvimento da infraestrutura rodoviária local.
Em levantamento realizado por meio de dados disponíveis na Secretaria de Infraestrutura, é possível verificar que o mencionado Fundo teve grande movimentação financeira recente.
Com efeito, de 2019 a 2023, a receita realizada chegou a R$ 5.381.656.297,12 (cinco bilhões trezentos e oitenta e um milhões seiscentos e cinquenta e seis mil duzentos e noventa e sete reais e doze centavos). Já as despesas atingiram o patamar R$ 5.280.995.426,90 (cinco bilhões duzentos e oitenta milhões novecentos e noventa e cinco mil quatrocentos e vinte e seis reais e noventa centavos), as quais devem ainda ser somados os valores investidos também em infraestrutura por meio do orçamento da Sinfra (Secretaria de Estado de Infraestrutura e Logística) de Mato Grosso.
Os valores são consideráveis e, segundo estimativas do Governo, resultarão, ao final de 2026, numa malha rodoviária estadual com 14 mil km pavimentados. Esse número, contudo, corresponde a apenas 44% da malha estadual total. Portanto, os investimentos já realizados estão bem aquém do necessário para dotar o Estado de malha rodoviária adequada ao perfil dos usuários, sobretudo, dos utentes do agronegócio, que possuem papel central no desenvolvimento do Estado.
Ressalte-se que o Estado de Mato Grosso já é grande produtor agropecuário e as projeções são otimistas, ou seja, de crescimento do setor. Em relatório divulgado pelo Imea (Instituto Mato-grossense de Economia Agropecuária)[12], espera-se que as áreas de cultivo de algodão, milho e soja no Estado cresçam, respectivamente, 40,62%, 60,20% e 33,18% até 2034. Também é esperado que o Brasil passe a exportar 133,2 toneladas de soja em 2034, das quais Mato Grosso responderá por 29,61%.
Por conseguinte, os investimentos em infraestrutura logística – da qual o modal rodoviário é a mais utilizado – continuarão sendo necessários para garantir o escoamento da produção, ainda que sejam implementados diferentes modais, como as ferrovias.
O desafio do FNDR será grande, pois os custos com infraestrutura rodoviária no Brasil nunca foram pequenos. No ano de 2023, a CNT (Confederação Nacional dos Transportes)[13] analisou 67.659 quilômetros de rodovias federais, que representam 60,7% da extensão total, chegando à conclusão de que 4,4% da malha está em estado péssimo de conservação, 15,4% em estado ruim, 43,1% em estado regular, 29,7% em estado bom e apenas 7,4% em estado ótimo de conservação. O mesmo estudo da CNT indica que seria necessário investimento total de R$ 94,12 bilhões para a reconstrução, restauração e manutenção das vias analisadas, sendo que, desse montante, R$ 67,52 bilhões seriam referentes apenas a medidas emergenciais.
Outro ponto a ser considerado é o fato de que fundos como o Fethab são especificamente destinados a certos tipos de infraestrutura, como a rodoviária. O FNDR, contudo, serve para qualquer espécie de infraestrutura, além de outras diversas atividades. Uma mudança semelhante já ocorreu com a substituição do Fundo Rodoviário Nacional pelo Fundo Nacional de Desenvolvimento: um fundo específico foi trocado por um fundo de caráter nacional com múltiplas destinações.
Sem os recursos dos fundos com contribuições e destinações específicas, a infraestrutura rodoviária dependerá basicamente do orçamento fiscal, o que poderá não ser sustentável e suficiente diante do grande desafio do setor. Por exemplo, nas décadas de 1980 e 1990, diante de ajustes fiscais, mais da metade da redução no déficit primário obtida pelos países da América Latina decorreu de cortes nos investimentos em infraestrutura[14]. É comum que os custos de manutenção sejam mais facilmente cortados, já que a deterioração é distribuída no tempo e não há efeitos negativos tão imediatos.
É verdade que existe a possibilidade de maior participação da iniciativa privada no provimento de serviços adequados rodoviários, por meio concessões de serviços públicos e PPPs (Parcerias Público-Privadas), de modo a realizar a expansão e a manutenção da malha. Contudo, nem todas as rodovias são economicamente viáveis para a exploração por parte da iniciativa privada, mesmo considerando a possibilidade contemplada pela PPP na modalidade de concessão patrocinada, de modo que bastante criatividade será necessária para a solução desse gargalo por alguns entes estaduais.
Para mitigar riscos futuros que possam se tornar insolúveis ou financeiramente inviáveis, é crucial implementar medidas sustentáveis e viáveis imediatamente. A alegação comum de que essas questões pertencem exclusivamente ao horizonte de longo prazo é inadequada. Ignorar a implementação de soluções hoje pode resultar em consequências ambientais graves, comprometimento da segurança dos recursos naturais e instabilidade econômica. A importância de adotar abordagem preventiva e responsável não pode ser subestimada, pois as decisões tomadas agora moldarão a resiliência e a sustentabilidade de nossas sociedades e economias no futuro.
[1] Dados do período demonstram que a malha rodoviária nacional contava com 775 km de rodovias pavimentadas em 1940, chegando esse número a 19.000 km em 1965 (KARAM, Rejane; SHIMA, Walter Tadahiro. A natureza da concessão rodoviária do Paraná e suas dificuldades. Revista Economia & Tecnologia, Curitiba, v. 2, n. 1, 2006).
[2] Cf. INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA APLICADA – IPEA. Rodovias brasileiras: gargalos, investimentos, concessões e preocupações com o futuro. Série: Eixos do desenvolvimento brasileiro. Comunicados do IPEA nº 52. Brasília: IPEA, 2010.
[3] Fundo Estadual de Transporte e Habitação – Lei Ordinária nº 7263 de 27 de março de 2000.
[4] Fundo de Desenvolvimento do Sistema Rodoviário do Estado de Mato Grosso do Sul – Lei nº 1963, de 11 de junho de 1999.
[5] Fundo Estadual de Desenvolvimento de Transportes – Lei nº 13.452, de 12 de janeiro de 2000.
[6] Fundo Estadual de Infraestrutura – Lei nº 21.670, de 6 de dezembro de 2022.
[7] Fundo Estadual de Transporte – Lei nº 3617, de 18 de dezembro de 2019.
[8] No caso do FETHAB de Mato Grosso, assim dispõe o art. 7º da Lei Estadual Ordinária nº 7263 de 27 de março de 2000: Art. 7º O benefício do diferimento do Imposto sobre Operações relativas à Circulação de Mercadorias e sobre Prestações de Serviços de Transporte Interestadual e Intermunicipal e de Comunicação – ICMS, previsto na legislação estadual para as operações internas com soja, gado em pé, madeira em tora, madeira serrada ou madeira beneficiada, feijão, pulses e colheitas especiais, fica condicionado a que os contribuintes, remetentes da mercadoria, contribuam para o FETHAB e, conforme o caso, às contribuições às Entidades das Cadeias Produtivas.
[9] Art. 136. Os Estados que possuíam, em 30 de abril de 2023, fundos destinados a investimentos em obras de infraestrutura e habitação e financiados por contribuições sobre produtos primários e semielaborados estabelecidas como condição à aplicação de diferimento, regime especial ou outro tratamento diferenciado, relativos ao imposto de que trata o art. 155, II, da Constituição Federal, poderão instituir contribuições semelhantes, não vinculadas ao referido imposto, observado que:
I – a alíquota ou o percentual de contribuição não poderão ser superiores e a base de incidência não poderá ser mais ampla que os das respectivas contribuições vigentes em 30 de abril de 2023;
II – a instituição de contribuição nos termos deste artigo implicará a extinção da contribuição correspondente, vinculada ao imposto de que trata o art. 155, II, da Constituição Federal, vigente em 30 de abril de 2023;
III – a destinação de sua receita deverá ser a mesma das contribuições vigentes em 30 de abril de 2023;
IV – a contribuição instituída nos termos do caput será extinta em 31 de dezembro de 2043.
Parágrafo único. As receitas das contribuições mantidas nos termos deste artigo não serão consideradas como receita do respectivo Estado para fins do disposto nos arts. 130, II, “b”, e 131, § 2º, I, “b”, deste Ato das Disposições Constitucionais Transitórias.”
[10] Decisão Normativa do TCU nº 209/2024.
[11] MATTIELLO, Cláudia Cristina; FIGUEIREDO, Adriano Marcos Rodrigues. A importância do fethab para o setor de transporte rodoviário do estado de mato grosso – (2000-2006). Revista Documento Monumento–UFMT, vol. 4, n. 1, pp. 165-179, jul., 2011.
[12] Disponível em: https://imea.com.br/imea-site/arquivo-externo?categoria=lancamentos&arquivo=rel-conjunturaeconomia&numeropublicacao=10.
[13] BRASIL. Confederação Nacional dos Transportes. Pesquisa CNT de rodovias 2023. Brasília: CNT: SEST SENAT: ITL, 2023.
[14] CALDERÓN, César; EASTERLY, William; SERVÉN; Luis. Infrastructure compression and public sector solvency in latin America. In: EASTERLY, William; SERVÉN, Luis (org.). The limits of stabilization: infrastructure, public deficits and growth in latin america. Washington: The World Bank, 2003, p. 134.
* Adalberto Santos de Vasconcelos é CEO da ASV Infra Partners – Consultoria em Infraestrutura
** Caio Felipe Caminha de Albuquerque é procurador do Estado e atual Secretário Adjunto de Logística e Concessões de Mato Grosso. Mestre em Direito e Desenvolvimento Sustentável (UNIPÊ), Certificado profissional em Concessões e PPPs pela APMG Internacional (CP3P-F, P, E) e Certificado Climate-Resilient Infrasctructure Officer (CRIO).
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