Osvaldo Agripino*
Todas as crises têm efeitos positivos. Não há dúvida que essa pandemia resgatou a credibilidade da ciência e a necessidade urgente de investimento pesado em recursos humanos, pesquisa e tecnologia, assim como a percepção da importância da regulação do Estado nos serviços essenciais, sejam públicos ou de interesse público, independente de política econômica adotada: neoliberal ou mais interventiva. Além disso, essa crise ressaltou a importância de mais tempo com a família, do maior uso da tecnologia digital, da proteção ao meio ambiente e de um sistema de saúde pública de qualidade e universal.
A epidemia difere da pandemia no tamanho da região alcançada pela doença infecciosa. A epidemia é uma doença infecciosa e transmissível que ocorre numa comunidade ou região e pode se espalhar rapidamente entre as pessoas de outras regiões, originando um surto epidêmico. Isso poderá ocorrer por causa de um grande desequilíbrio (mutação) do agente transmissor da doença ou pelo surgimento de um novo agente (desconhecido). A pandemia é uma epidemia de grandes proporções, que pode atingir um ou mais de um continente.
Pois bem, parece-me que a crise decorrente do Coronavírus pode funcionar como uma bala de prata para a navegação, ainda à deriva, do Estado brasileiro no que se refere às externalidades negativas causadas pela opção por uma intervenção mínima na economia, Essa derrota (navegação) ocorre, ironicamente, muito além do que preceitua a própria Escola de Chicago, cujos fundamentos já vêm sendo revisados por autores da própria Escola, como o economista italiano Luigi Zingales, Saving Capitalism from the Capitalists (2003) e A Capitalism for the People (2013).
Não há sinal, ainda, de uma regulação mais adequada (com vontade e capacidade de conter, desestimular e punir os abusos) para combater mercados concentrados, oligopólios (cartéis), monopólios, preços predatórios e assimetrias de informação, especialmente quando há abuso de posição dominante, como preceitua a Escola de Harvard. Ao contrário, verificamos uma aposta cega no mercado, por meio de uma política de intervenção mínima, com ampla liberdade de preços, ainda que os preços e práticas abusivas decorrentes das externalidades negativas demandem outra solução.
Dani Rodrik, professor de economia política na Harvard Kennedy School, reforçou essa tese em um artigo publicado em 18 de julho de 2016 no jornal Valor Econômico e foi além: “A economistas e tecnocratas de esquerda cabe grande parte da culpa […], cederam muito facilmente ao fundamentalismo de mercado e incorporaram seus princípios centrais”.
Nesse ambiente, poderíamos sustentar que a regulação setorial da ANTAQ (Agência Nacional de Transportes Aquaviários), que tem como um dos seus pilares o dever de zelar pela defesa da concorrência no seu mercado, vem permitindo uma epidemia cartelizadora no mercado portuário e no transporte marítimo de contêiner na cabotagem e no longo curso?
A mudança do modus operandi da regulação, inclusive com a quebra de barreiras de entrada para permitir o ingresso de mais novos entrantes, com o aumento da concorrência e regulação focada na redução das assimetrias de informação, para que possa garantir as condições do serviço adequado, como previsibilidade, modicidade, eficiência, transparência e continuidade, pode ser a solução?
Nesse cenário de guerra, com uma economia que ainda não se recuperava de um pífio crescimento de 1% do PIB, em plena recessão, temos visto (i) terminais arrendados aumentarem 420%, de R$ 186,42 para R$ 783,00, o SSE (Serviço de Segregação e Entrega); (ii) cobranças de armazenagem em valor mais de duas vezes superior ao valor CIF da carga; (iii) armadores se recusando a cumprir decisões da agência reguladora de transportes aquaviários que proíbem cobranças sem fato gerador, como a ELF (taxa de logística de exportação); (iv) violação reiterada de normativos como a Resolução Normativa nº. 18/2017, da ANTAQ, sem que a agência “mostre os dentes” por meio do seu poder dissuasório.
Vemos, ainda, (v) cobranças de demurrage de contêiner junto a pequenas e médias empresas, que se aventuram no comércio exterior, feitas por agentes intermediários com valor de até oitenta vezes o valor do frete e trinta vezes o valor da carga. Nesse caso, mesmo com denúncia à ANTAQ para que criasse critérios objetivos para imposição do preço teto, a agência indeferiu o pedido com base no argumento descabido de que, por ser indenizatória a natureza jurídica da demurrage, não é frete e, portanto, não incide a modicidade. O caso está no TCU (Tribunal de Contas da União).
Afinal, onde estão o equilíbrio e a defesa do interesse público? Não se trata de “não pagar”, mas de exigir que o preço e a qualidade do serviço ocorram de forma “adequada”, um direito constitucional que vem sendo sonegado há quase vinte anos.
Esses são os sinais de uma epidemia (des)regulatória, que vem infectando numa escala sem limites o ambiente de negócios dos usuários brasileiros e de prestadores de serviços, como os terminais retroportuários (secos) e molhados (“úmidos”), não verticalizados, que sofrem, como se fossem usuários, os efeitos da regulação frágil, vazia e inadequada que permeia grande parcela das atividades da agência no que tange à eficácia do objetivo maior da sua atividade: garantir o serviço adequado ao usuário.
Há um verdadeiro descompasso com o que se exige de um serviço público essencial, em cenário de crise econômica, onde a falta da aplicação de “vacina”, há muito à disposição do regulador, possibilita a disseminação de condutas que evidenciam não só infrações regulatórias e antitruste, mas também o crime de usura (Lei nº 1.521/1951), tal como o aumento recente do SSE pelo terminal acima mencionado, com grave dano e sequelas na saúde da nossa frágil economia.
Mas há solução (“vacina”), pois a própria agência tem os instrumentos para inocular ou reduzir os danos de tal epidemia, especialmente após a Lei Geral das Agências Reguladoras, que trouxe vários remédios para tanto, como a cooperação com o Cade (Conselho Administrativo de Defesa Econômica) e as demais agências, inclusive com a possibilidade de edição de uma única resolução por mais de uma agência, assim como a exigência da Análise de Impacto Regulatório e da Análise de Resultado Regulatório. A ANTAQ, cabe informar, vem se esforçando, mas precisa encontrar o rumo e seguir nele.
Como garantir condições de liberdade para a livre iniciativa, de um lado, e o cumprimento da sua obrigação constitucional de proporcionar efetividade ao serviço adequado no transporte marítimo e na atividade portuária, de outro lado? Eis um dos problemas.
É preciso equilibrar os interesses, garantindo o lucro ao investidor-privado, de um lado, e serviço adequado ao usuário, de outro lado. Não é tarefa fácil em ambiente transnacional onde grande parte das empresas que operam no setor buscam regulação débil ou inexistente, tal como os paraísos fiscais dos países que vendem as suas bandeiras, tema explorado no meu livro Marinha Mercante Brasileira – Longo Curso, Cabotagem e Bandeira de In(Conveniência), com prefácio do Comte. Álvaro Almeida Júnior, Aduaneiras, 2014, 270 p.
Para tanto, a ANTAQ deve sair da sua zona de conforto, que tem proporcionado concentração horizontal e verticalização, preços predatórios e custos abusivos. A fim de romper esse ciclo, positivo no que se refere à atração de investimentos desde a edição da Lei nº 12.815/2013, com a criação dos TUPs, e negativo no que tange a evitar a cartelização de alguns mercados relevantes, é preciso que a agência priorize a defesa da concorrência. Afinal, até hoje a agência não comprovou que o aumento da quantidade de terminais molhados tem causado redução dos custos de transação do usuário.
Para enfrentar essa problemática, a ANTAQ deve garantir maior competição no setor e dar uma guinada na sua política de intervenção regulatória mínima, que é liberal ao extremo, vez que sem regulação adequada (ex ante), diante de um mercado cartelizado, especialmente no setor de transporte marítimo e operação portuária de contêiner. Não dá para permitir tais abusos em mercados concentrados e com verticalização superior a 50%, tal como no mercado de contêiner.
Essas diversas externalidades negativas são causadas por esse “modelo” regulatório que permite, ironicamente com base na retórica da liberdade de preços, da livre iniciativa e da política cega de “intervenção mínima”, há muito autorizadas pela ANTAQ, ainda que sem evidências empíricas da externalidade positiva, a imposição de preços muito acima dos custos marginais das empresas e da modicidade sonegada.
Nessa regulação, que se assemelha a um ornitorrinco, temos desde mercados relevantes com (i) IHH (Índice Herfindal Hirschmann, que mede a concentração horizontal num mercado relevante, segundo as Diretrizes da Autoridade Antitruste dos EUA) de 3.279, quando o máximo tolerado é 2.500, (ii) o aumento de preços de THC2/SSE dez vezes acima da inflação acumulada nos últimos dez anos em importante mercado relevante, (iii) os preços de armazenagem portuária que superam facilmente o valor da carga movimentada e (iv) a cobrança de scanner muito acima dos custos marginais.
Podemos citar, ainda, (v) a inexistência de padronização de rubricas de serviços, um problema resolvido há mais de 40 anos na Europa, e (vi) até a destruição do modelo de plataforma logística integrada, criado a partir dos anos 90, por meio dos portos secos. Não inclui, vez que cobrados pelo armador ou seus intermediários, (vii) a permissividade e a falta de controle da cobrança do THC “rachadinha”, (viii) as evidências de sonegação fiscal de ISS e IRPJ dela decorrente, e (ix) a demurrage de contêiner sem limites.
O modelo regulatório atual, apesar da importância dos terminais secos, desde os anos 1990, para a redução de custos dos usuários, ainda não inclui tal categoria nas suas análises concorrenciais, o que reduz sobremaneira a possibilidade de redução de custos entre os terminais da zona primária, de um lado, e os recintos alfandegados da zona secundária, de outro lado, assim como os terminais “úmidos” da zona primária, especialmente os TUPs não verticalizados. Como a ANTAQ permite tanto abuso? Como proporcionar serviço adequado no setor?
Qualquer agência reguladora, que é um órgão de Estado, e não de governo, deve atacar tais falhas de mercado por meio da sua função dialógica e de cooperação, como coordenadora macroeconômica e indutora do desenvolvimento econômico. Usar o mercado para atingir o interesse público, e não ser usada, via rent seeking, captura do setor prestador de serviço mais organizado.
Um mercado, num país subdesenvolvido institucionalmente como o Brasil, deve ser criado pelo Estado, após manifestação dos interessados, e não pelos desejos dos agentes econômicos mais organizados, especialmente quando grande parcela atua com posição dominante. Afinal, em setores de capital intensivo, uma falha de Estado pode causar mais danos do que uma falha de mercado.
A crise causada pela pandemia do Coronavírus não tem sido capaz de mudar o rumo da regulação setorial do transporte marítimo e portuário. O Brasil está ficando burro. Não bastasse o abraço da morte causado na indústria brasileira, cujos indicadores de participação no PIB do país são dramáticos (10% do total do PIB) diante da desindustrialização em curso há mais de 20 anos, o Estado brasileiro, e para isso não precisa ser keynesiano, tem sido incapaz de coordenar ações preventivas para reduzir as externalidades negativas. O Estado (o Judiciário, o Executivo e o Legislativo) é o único capaz de resolver o problema, em cooperação com a iniciativa privada.
A regulação setorial é fundada numa opção regulatória que sempre está muito atrasada às condutas oportunistas, e altamente pesada e ineficiente, portanto, inadequada para o mercado brasileiro. Isso ocorre, em parte, porque ela é ex post, ou seja, a agência só age mediante provocação do prejudicado, e não ex ante. Assim, a ANTAQ não tem sido capaz de incentivar a competição no setor, seja quebrando barreiras de entrada, seja punindo os abusos de posição dominante, seja estabelecendo uma cultura de preço teto.
Esse modelo adotado pela ANTAQ é exatamente aquele cobiçado por investidores monopolistas ou que operam em cartel, tal como desejado por Warren Buffet, um dos homens mais ricos do mundo. Ele entendia isso muito bem, tanto que em 2011, ao prestar depoimento na Comissão de Crise Financeira do Congresso dos EUA, criada para investigar as causas da crise de 2008, assim se manifestou: “A decisão mais simples para avaliar um negócio é o poder de precificar. Se você tem o poder de aumentar os preços sem perder mercado para o seu concorrente, você tem um bom negócio. Se você tem um bom negócio, ou tem um jornal monopolista ou uma rede de televisão, o seu sobrinho idiota poderá administrá-lo”.
O economista Prof. Dr. Joseph Stiglitz, da Columbia University e Prêmio Nobel de Economia (2001), discorre sobre o abuso de posição dominante no seu livro “People, Power, and Profits – Progressive Capitalism for an Age of Discontent”, Norton Company, 2019, no qual ensina que, quanto menos concorrentes, mais fraca é a competição, e maiores serão os preços em relação aos custos. Para ele “o poder de aumentar e manter os preços acima dos custos reflete a posição dominante” (Chapter 3).
A ANTAQ não tem sido capaz de mitigar os danos da falta de concorrência que provoca o abuso da posição dominante e, por sua vez, preços predatórios. Não é possível acreditar que os mercados são perfeitos, quando os números e as externalidades (efeitos) demonstram o contrário.
Como resolver isso? A solução deveria partir da ANTAQ, mas ela tem sido buscada via Cade ou Tribunal de Contas da União. Trata-se de uma distorção do modelo ideal de regulação setorial e implica em risco para o investidor, por ter a sua segurança jurídica deslocada da agência setorial especializada para outros órgãos de Estado, como o Cade, o TCU e o Poder Judiciário.
Em conclusão, é preciso que a ANTAQ reflita sobre o seu modelo de regulação ex post (comprovadamente ineficaz), reduza a assimetria de informação no setor, bem como crie critérios para a identificação de preço teto, em mercados com abuso de posição dominante, levando-se em conta as particularidades de cada região, e implemente uma política de defesa da concorrência para evitar a epidemia cartelizadora que já se observa na linha do horizonte.
A ANTAQ deveria seguir o exemplo do Ministério da Saúde no trato da pandemia do Coronavírus: agir com antecedência, para que não se veja diante de um “Everest” de problemas, alargando as curvas de externalidades negativas, de forma que o sistema regulatório não entre em colapso e os usuários e prestadores de serviços, incluindo Empresas Brasileiras de Navegação, que não fazem parte de grupo econômico transnacional, e terminais não verticalizados possam gozar de um mercado equilibrado.
Tratar do problema do paciente antes (política ex ante), com supervisão que facilite sua fiscalização, bem como a aplicação de sanções que façam valer seu poder dissuasório, para que condutas oportunistas e lesivas sejam desestimuladas, é uma forma comprovadamente eficiente de reduzir essa “doença” e os impactos dos abusos existentes no setor, evitando danos maiores à saúde da nossa debilitada economia.