Amanda Pupo, da Agência iNFRA
O estrangulamento orçamentário do governo federal colocou em risco o funcionamento integral de um sistema centenário de dados que subsidia todo o setor de infraestrutura e engenharia do país, além da defesa civil. O impacto é sobre a chamada RHN (Rede Hidrometeorológica Nacional), que é coordenada pela ANA (Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico), órgão federal cujo orçamento neste ano foi cortado em 42% na comparação com o ano passado.
A situação vai obrigar a ANA a reduzir desde já as ações no sistema, postergando visitas técnicas e manutenções nas estações de medição. Esse corte de atividades e até mesmo interrupção em alguns casos deve prejudicar a confiabilidade de uma série histórica que tem cerca de 100 anos, alertam técnicos e a dirigente da ANA, Veronica Sánchez.
Na infraestrutura, as informações da RHN municiam projetos que vão desde hidrelétricas a construção de rodovias e pontes, explicou Sánchez à Agência iNFRA. Por isso, a preocupação com a interrupção de parte do sistema é considerada crítica.
No total, a rede nacional é composta por 23 mil estações em todo o Brasil. A ANA tem responsabilidade direta sobre 4.800 aparelhos de monitoramento de nível e vazão de rio e chuvas, embora coordene todo o sistema. As estações restantes estão divididas entre gestão dos estados, empresas do setor elétrico e instituições voluntárias.
O corte de serviços estimado pela ANA se aplica às quase cinco mil estações sob o guarda-chuva direto da reguladora. Idealmente, o custeio do grupo demandaria mais de R$ 100 milhões por ano. No orçamento de 2025, a previsão foi de R$ 64 milhões, mas os recursos caíram para R$ 56 milhões após o congelamento anunciado pela equipe econômica em maio.
“A qualidade do dado que fornecemos à sociedade vai ficar comprometida. O dado não é o fim. Ele é um meio para alguém tomar uma decisão”, disse o superintendente adjunto de Gestão da Rede Hidrometeorológica da ANA, Wesley Gabrieli de Souza, à Agência iNFRA.
Embora a falta de orçamento na agência impacte diretamente as estações do órgão, Souza alerta que dados inconsistentes podem afetar toda a rede, inclusive do setor regulado, como o elétrico, que é obrigado a operar cerca de 2.400 estações. “Nossos aparelhos servem para calibrar as estações das próprias hidrelétricas. Como o monitoramento delas é por força regulatória, é preciso fiscalizar. Para fazer isso, comparamos com dados de estações nossas que estão no raio”, explicou.
Impactos na prática
Os dados da rede dimensionam desde um projeto de rodovia a uma obra de bueiro na rua, observou a diretora-presidente da ANA. O momento orçamentário de 2025 é o mais crítico da história para a operação da RHN dentro da ANA. Mas a redução de dinheiro para alimentar o sistema já é registrada nos últimos cinco anos. Em novembro do ano passado, 62 entidades divulgaram uma carta aberta que alertava para a “contínua redução de recursos e capacidades” dedicadas à rede.
As informações permitem a realização de estudos e modelagens “indispensáveis” ao planejamento de todas as atividades econômicas, à gestão da água, à proteção das pessoas e propriedades diante de secas, inundações e eventos extremos, explica o documento.
Para o setor de logística, as redes hidrometeorológicas permitem monitorar níveis de navegabilidade, além de prever e avaliar as condições do tráfego rodoviário e garantir a segurança da aviação. No saneamento básico, as informações são usadas em projetos de captação de água para abastecimento das cidades, por exemplo, diz a carta.
Entre os signatários estavam ANA, Abdib (Associação Brasileira da Infraestrutura e Indústrias de Base), Abrage (Associação Brasileira das Empresas Geradoras de Energia Elétrica), Abcon Sindcon (Associação e Sindicato Nacional das Concessionárias Privadas de Serviços Públicos de Água e Esgoto), CNA (Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil) e Ibram (Instituto Brasileiro de Mineração), além de outros institutos e órgãos públicos federais e subnacionais.
Eventos extremos
Com a intensificação de eventos climáticos extremos, o monitoramento hidrometeorológico se tornou ainda mais relevante para a prevenção de desastres e outros imprevistos, observa Sánchez. Ela dá dois exemplos recentes: as cheias no Rio Grande do Sul, onde a tendência de mudança do nível do rio aconteceu de forma muito rápida, e a seca no Norte em 2024, que fez o governo se antecipar para transportar óleo diesel e garantir o funcionamento das termoelétricas.
O superintendente da Rede na ANA lembra ainda que está previsto para este ano o início de um processo de seca no semiárido. “As estações chuvosas não vão ser suficientes para recarregar os seus reservatórios de água.” Mas de 444 estações que monitoram os açudes do Nordeste e Norte de Minas, a agência precisou cortar a operação de metade em 2025. “Não vai nem ter observador. É cruel”, disse Souza. Segundo ele, entre 75% e 80% das estações da ANA são operadas pelo Serviço Geológico do Brasil, que recebe recursos da agência para a atividade.
Cobertor curto
O esforço da ANA será por manter de forma mais integral possível a operação de cerca de 800 estações que estão na chamada “rede de referência”. Elas atendem a mais objetivos de monitoramento e requerem maior tempestividade da disponibilização do dado. Por isso, a maioria delas é telemétrica e coleta dados de 15 em 15 minutos para abastecer a rede.
No restante das estações da ANA, que no total se dividem entre pluviométricas e fluviométricas, haverá ou interrupção de manutenção e medição de vazões ou redução por cerca da metade das visitas técnicas anuais.
Em 2024, quando já estava com o orçamento reduzido, a ANA postergou para este ano algumas manutenções periódicas que eram feitas a cada seis meses. Mas como o caixa neste ano está pior, o que não foi executado no ano passado não poderá vir em 2025. “O que era para ser feito em seis meses passou para um ano. Vamos passar para um ano e meio, dois anos, para fazer a manutenção”, alertou Sánchez.
ANA sem vinculação
A maior despesa do orçamento da ANA, hoje em R$ 146 milhões, é com a operação das quase cinco mil estações da RNH sob sua responsabilidade. A falta de dinheiro para a autarquia executar todas suas responsabilidades se repete em outros órgãos reguladores federais. Mas no caso da agência de águas há um “drama” adicional.
A ANA está há dois anos e meio – desde o início do governo Lula – sem vinculação a algum ministério específico, o que limita o esforço para o órgão ser socorrido por alguma pasta. Embora a lei a tenha colocado no guarda-chuva do MIDR (Ministério da Integração e do Desenvolvimento Regional), a decisão não foi oficializada em decreto até hoje.