Guilherme Mendes, da Agência iNFRA
A insegurança energética pela qual passa o estado norte-americano da Califórnia poderia ocorrer no Brasil no médio prazo, apontam analistas e representantes de associações do setor elétrico. O risco, afirmam, está concentrado principalmente no subsistema Nordeste. O argumento é que, para que esse cenário se torne realidade, bastaria que o potencial da região para matrizes renováveis estivesse no centro de uma política descoordenada, com uma transição energética imprudente.
O presidente da Thymos Energia, João Carlos Mello, é um dos que assim analisam a situação. “A nossa preocupação é que, pelo Nordeste ser um sistema super convidativo para as matrizes renováveis, não prestemos atenção na sua composição adequada com as tecnologias despacháveis”, disse. O segredo, diz Mello, é uma transição energética responsável, levando em conta principalmente a matriz térmica – o que dará confiabilidade ao sistema elétrico.
Eventos como os que ocorrem na Califórnia poderiam acontecer aqui em cinco anos, segundo o presidente da Thymos. Por isso, um fator relevante é saber como estará a matriz termelétrica do Nordeste no médio prazo. “Há os casos das usinas térmicas caras, que ninguém quer mais. Mas precisamos delas de backup, para situação de emergência”, defendeu Mello, que sugeriu: “Por que não pensar nessas usinas, já amortizadas, como backup? Por que não motorizar mais as usinas hidrelétricas para se ter uma reserva maior? Trata-se de questão de confiabilidade do sistema”.
É a mesma preocupação do presidente da Abraget (Associação Brasileira Geradoras Termelétricas), Xisto Vieira Filho. “O subsistema [Nordeste] tem um parque de renováveis muito grande, que precisam de um requisito térmico mais adequado. E as térmicas do Nordeste serão as primeiras a serem desligadas”, disse. Xisto avaliou que a entrada da UTE (Usina Termelétrica) Porto de Sergipe I nesta semana e da UTE GNA Porto do Açu III nos próximos anos tornam a situação brasileira “boa” em termos de confiabilidade.
Este cenário, porém, poderia ficar incerto no futuro. “No curto, médio e longo prazo terminam os contratos de mais de 10 mil megawatts de geração térmica. Essa energia tem de ser reposta por leilões que estão sendo preparados só com base no aumento da demanda”, disse. “Não há leilões de confiabilidade previstos no horizonte – com um nível de descontratação grande previsto à frente.”
Por isso, o exemplo norte-americano (que atende a uma demanda com 70% do tamanho da brasileira) é acompanhado de perto por analistas daqui. “O caso da Califórnia levanta um sinal amarelo para nós, sim”, explicou Mello, da Thymos. “Hoje os californianos estão sem alternativa, a não ser pedir para que seus clientes apaguem a luz.”
Progressistas demais?
Mas quem seria o culpado pelo problema americano? Mello aponta que uma migração agressiva às renováveis, ocorrida na última década, gerou uma falha de estrutura grave na Califórnia. “Foi um salto muito progressista e muito forte. Saltaram de um mercado muito equilibrado para um muito intermitente, aposentando uma série de usinas térmicas a gás, abandonando essa complementariedade”, analisou.
Xisto concorda que a alteração na matriz de geracional encontrou seu desafio. “Faltou capacidade. Com níveis de importação que não podem ser aumentados e sem térmicas disponíveis, houve a necessidade de cortes rotativos de carga”, comentou. Em um estado com 39,5 milhões de habitantes, 5 a 10 milhões de consumidores seriam afetados com os blackouts.
O presidente da Absolar (Associação Brasileira de Energia Solar Fotovoltaica), Rodrigo Sauaia, discorda que o problema seja de responsabilidade da energia renovável – por lá, usinas solares e fotovoltaicas geraram 28.463 MWh (megawatts-hora) de energia em 2019. Para ele, os responsáveis seriam os operadores da malha de transmissão e distribuição. “Diferentes grupos têm sofrido ações judiciais e sendo condenados por negligência, em relação a operação e manutenção da infraestrutura”, disse Sauaia. “Isso acarreta muitas vezes os próprios incêndios.”
Para Sauaia, há na Califórnia uma infraestrutura falha e um sistema com pouca manutenção e com empresas em crise financeira. A PG&E, empresa elétrica que atende cidades no Vale do Silício e no norte do estado, foi condenada a pagar US$ 30 bilhões, segundo o executivo, e pediu recuperação judicial em abril do ano passado.
Absolar: busca é pela resiliência
Sauaia entende que a lição que se tira do caso da Califórnia não é apenas pela necessidade da diversificação, mas também a busca pela resiliência da rede.
“Um dos grandes benefícios das energias renováveis está na versatilidade, em se poder alocar e distribuir essa capacidade de geração para que ela esteja junto dos centros urbanos”, defendeu o presidente da Absolar. “Quanto mais energia elétrica a cidade produzir em seus telhados, fachadas e áreas disponíveis, maior a resiliência para que a cidade tenha atendida sua demanda, independente de incêndios.”
Segundo o presidente da associação, é um erro associar o que ocorre no estado com as matrizes eólicas e solares. “Dizer que esse problema é decorrência do uso de renováveis e não de fontes fósseis, quaisquer que sejam elas, é um equívoco técnico e de comunicação com a sociedade.”
Sequência de fatores
Nos Estados Unidos, a política energética é definida em âmbito estadual: como parte dessa forma de decidir, nos últimos cinco anos o estado da Califórnia desligou cerca de 9 GW (gigawatts) de geração a gás.
E essa foi uma semana na qual os termômetros chegaram a 54ºC nas áreas mais desérticas do estado, e incêndios atingem florestas próximo às cidades. Para evitar apagões, o Caiso (California Independent System Operator), que age no estado como o ONS (Operador Nacional do Sistema Elétrico), emitiu comunicados pedindo que os consumidores reduzam o consumo em horários de pico. A medida, nos últimos dias, tem surtido efeito.