Francisco Gildemir*, Viviane Adriano Falcão** e Rosário Macário***
No início de 2000 foram criadas a ANAC (Agência Nacional de Aviação Civil) e a SAC (Secretaria de Aviação Civil). Esses órgãos capitanearam o processo de reestruturação do setor aéreo brasileiro, distribuindo slots, organizando empresas aéreas, evitando choques indesejados de falência de empresas, planejando e executando leilões de infraestruturas aeroportuárias, entre outras. São pouco mais de quinze anos frenéticos em que algumas empresas entraram em solvência, surgiu o fenômeno das empresas low cost, aeroportos públicos se tornaram privados, diferentes arranjos de leilões de infraestruturas da antiga Infraero foram testados, alguns com êxito outros com aprendizados. Olhando para o caso dos aeroportos, o que podemos aprender? Este texto se propõe a refletir sobre os eventos recentes de devolução de ativos aeroportuários da iniciativa privada para a pública e tentar melhor entender os fatores que levaram a esta reversão até então não observada no caso de concessões e PPPs (parcerias público-privadas) brasileiras.
Uma infraestrutura para se estabelecer deve ter qualidade e suporte financeiro. Uma concessão segue esta linha. Exige, portanto, ter um bom projeto de engenharia, com planejamento e tecnologias adequadas, análises mercadológicas e execução de obra tempestiva, adequado modelo de negócio, mas não só isso… A oferta, para ser sustentável, deve ser suportada por um arranjo financeiro, grosso modo, as receitas devem se equilibrar com os custos intertemporalmente, mantendo o valor presente do empreendimento saudável, mesmo que com oscilações positivas e negativas do fluxo de caixa. Além desses aspectos, muitos trabalhos do Banco Mundial (destaque para Guasch (2004) e Engel, Fischer e Galetovic (2006 e 2008)) apontam que contratos de parcerias entre público e privado devem ser blindados ou pelo menos ter flexibilidade para fatores como: ciclo eleitoral, corrupção, choques de demanda e de oferta, riscos regulatórios, riscos ambientais etc.
Em 2011, para auxiliar nas concessões aeroportuárias, foi criada a SAC/PR (Secretaria de Aviação Civil da Presidência da República), e, com isso, as concessões aeroportuárias no Brasil começaram a partir desse mesmo ano, sendo o Aeroporto de São Gonçalo do Amarante no Rio Grande do Norte o primeiro aeroporto concessionado do Brasil. Nos dois anos subsequentes, 2012 e 2013, mais cinco terminais aeroportuários também foram concedidos, sendo que desses cinco, todos internacionais e que tinham na época uma expressiva movimentação de passageiro e de cargas. A justificativa oferecida foi a de melhorar a infraestrutura aeroportuária no Brasil, contribuindo com a sua qualidade e expansão. Além disso, por conta do fato de o Brasil ser sede da Copa do Mundo de Futebol em 2014 e dos Jogos Olímpicos de 2016, havia uma preocupação genuína se a infraestrutura aeroportuária conseguiria atender a demanda atraída por esses eventos, além do crescente boom da demanda aérea brasileira frente a um crescimento econômico e baixas tarifas aéreas. Importante destacar que na segunda e na terceira rodada das concessões os ganhadores do leilão deveriam operar o aeroporto com a participação de pelos 49% da Infraero
Muitos estudos apontam ganhos de eficiência, fatores regionais, aspectos ambientais e características financeiras para o caso brasileiro (veja Da Silva, Rodrigues e Falcão (2019); Domingos, Falcão e Da Silva (2020); Galdiano, Falcão e Da Silva (2019); e Rocha, Silva e Da Silva (2020)), ou seja, há um alinhamento das evidências internacionais com as observadas nacionalmente e que geram sucessos em concessões e parcerias público-privadas em aeroportos. Porém, há dois casos de reversão de concessões aeroportuárias, mesmo com as boas práticas: Viracopos e Galeão. Embora pareça incomum, a América Latina apresenta casos parecidos ocorridos no Peru e na Colômbia, relatados por Saussier e De Brux (2018) com base no estudo de Guasch (2004).
Os dois casos brasileiros são distintos com causa aparentemente comum que envolve o aspecto financeiro do contrato. A proposta de devolução de Viracopos é anterior à pandemia de Covid-19 e apontava para o desequilíbrio econômico-financeiro do contrato decorrente investimentos acima do desejado para a manutenção do valor presente do contrato estável, havendo, a princípio, uma concorrência entre aeroportos próximos e instabilidade das empresas de aviação. O aeroporto de Galeão já foi uma devolução recente, provavelmente impactada pelo choque de demanda decorrente da Covid-19, entretanto, também apresentando um desequilíbrio econômico-financeiro dos investimentos iniciais para a operação da concessão. Uma pequena análise dos resultados da Demonstração de Fluxo de Caixa, conforme Tabela 1, apresenta evidências quanto ao argumento de desequilíbrio econômico-financeiro em decorrência de investimentos altos e crise sequenciada da demanda.
Observa-se em vermelho os maiores aportes de investimentos, aproximadamente o capex inicial das concessões; em laranja prejuízos em destaque do caso de Galeão; e em amarelo (2018) o ano de recuperação judicial de Viracopos. Nota-se uma relação antecedente-precedente, com aportes vultosos seguindo por desequilíbrio ou declarado, caso de Viracopos, ou explicito em prejuízos, caso do Galeão. Uma explicação plausível é o financiamento dos investimentos foi alto e com fluxo de caixa operacional baixo em decorrência de baixa demanda, implicou em pagamentos de juros que ficaram mais preocupantes ao se vislumbrar horizontes menos alvissareiros da demanda pós-2019.
Saliente-se que a manutenção de um contrato destes preconiza, com o aprendizado de mais de 50 anos de concessões de infraestruturas no mundo e, agora, com a experiência brasileira e europeia em aeroportos concedidos (ver AirOBS – Observatório de Aeroportos no mundo – http://airobs.ubi.pt/), a necessidade de contratos flexíveis para amenizar choques e se blindar de oscilações de demanda indesejadas. Ademais, exige-se uma estruturação de fluxo de receitas e custo adequado, pois grandes investimentos no início de uma empreitada exigem tempo para maturar. Se a descapitalização vier seguida por um choque exógeno como o da Covid-19, o desequilíbrio é latente.
Com o aprendizado, evidências e fatos cientificamente coletados, catalogados e analisados, pode-se listar os seguintes fatores como pontos fulcrais para a devolução dos aeroportos de Viracopos e Galeão:
- Participação de uma empresa pública na operação (49% de Infraero nas primeiras concessões);
- Empresas ganhadoras da operação não terem ou terem pouco know-how na operação aeroportuária; (Viracopos -> Triunfo Partic. E investimentos (45%); UTC Participações (45%); e a francesa Egis Airport Operation (10%). Galeão -> Odebrecht e Transport (60%); Changi da Cingapura (40%).
- Obrigações contratuais de alto risco com obras de melhorias não associadas ao crescimento da demanda.
- Desequilíbrio na repartição de riscos e benefícios;
- Estimativas de demanda pouco rigorosas e não independentes.
Existe uma vasta experiência europeia em PPPs já com várias gerações de contratos, que pode ser transferida para o Brasil por meios de grupos como do Observatório de Aeroportos acima citado. A experiência da concessão e PPP aeroportuária é válida, mas o aprendizado exige atitude e mudanças nos novos contratos, quiçá uma revisão de contratos com vista a flexibilizar termos para garantir a sustentabilidade intertemporal dos contratos com valor presente mantido adequado para todo o prazo da concessão.