A judicialização em relação à Lei 14.300/2022, que instituiu o marco regulatório da GD (Geração Distribuída) solar, deve ganhar intensidade, diz o presidente da Absolar (Associação Brasileira da Energia Solar), Rodrigo Sauaia. A discussão sobre GD também deve se acirrar no Congresso Nacional, afirma ele.
Em entrevista à Agência iNFRA, Sauaia contou que o setor começa a se mobilizar com o governo federal sobre regras para harmonizar a relação entre empresas do setor solar e as concessionárias de distribuição que também investem em energia solar. Há a preocupação de que grupos de distribuidoras possam privilegiar seus investimentos em detrimento de outros players, e que esse assunto leva ao debate de criação de salvaguardas. A seguir os principais trechos da entrevista:
Agência iNFRA: Semana passada, começou a surgir uma série de ações judiciais contra regulação da Lei 14.300/2022, contestando o ponto do B Optante (grupo de consumidores que, embora sejam atendidos em média ou alta tensão podem optar por serem faturados como baixa tensão). O setor solar vai rumo a uma judicialização crescente?
Rodrigo Sauaia: A Lei 14.300/2022 começou a ser regulada com sete meses de atraso em relação ao que havia sido estabelecido pela própria legislação. Portanto, já gerando prejuízos para os consumidores e para os empreendedores mesmo antes dessa questão do B Optante. O acordo não foi cumprido pela ANEEL (Agência Nacional de Energia Elétrica), nem pelas distribuidoras, que, também pela lei, deveriam ter regulamentado a Lei 14.300/2022 até sete de julho de 2022.
Segundo ponto ainda para gente entender a situação em que estamos agora: o Ministério de Minas e Energia é mais um assinante do acordo que não cumpriu a sua parte da lei. É o ministério que estrutura a pauta do CNPE (Conselho Nacional de Política Energética), que deveria ter publicado até julho do ano passado as diretrizes de cálculo dos custos e benefícios da geração distribuída.
E o Ministério de Minas Energia, desde agosto do ano passado, deveria também ter regulamentado e autorizado que a geração distribuída tivesse acesso à Reidi (Regime Especial de Incentivos para o Desenvolvimento da Infraestrutura) como a geração centralizada já tem. Isso é fundamental para reduzir o custo.
Desde o ano passado, falta também a regulação para que o setor tenha acesso à emissão de debêntures incentivadas de infraestrutura, que é uma forma de você obter acesso a financiamento para os projetos de forma mais competitiva, com custos menores no mercado.
Antes de chegarmos ao Optante B, é importante que todos saibam que esses pontos da lei não foram cumpridos dentro do prazo. Então, esse prejuízo ao setor permanece. Por mais que tenha havido uma mudança de governo, o ministério tem que cumprir com sua responsabilidade legal. Está escrito na lei e a lei está sendo descumprida.
Optante B então abre mais uma frente de judicialização?
Depois então desses atrasos, a ANEEL, em fevereiro de 2023, finalmente regulamentou a lei, mas ela veio com dois pontos críticos que a Absolar já havia alertado, inclusive durante a discussão.
O primeiro deles é uma cobrança que nunca existiu no setor elétrico, de demanda sobre consumidores da baixa tensão. Só é cobrada demanda no setor elétrico da média tensão. Da forma como está redigida, a agência passou a regulamentar a cobrança de demanda sobre os consumidores de baixa tensão, que, na nossa visão, inclusive, é uma dupla cobrança e um desincentivo.
Os próprios parlamentares estão bastante insatisfeitos e externaram isso de forma bastante visível em audiência pública em 17 de maio. O segundo problema é justamente a interpretação que a ANEEL fez da lei a respeito do optante B.
Relembrando que optante B é aquele consumidor ligado em média tensão, mas que pode optar por ser tarifado em baixa tensão. Ele pode fazer isso porque a regulamentação prevê que ele tem esse direito. A ANEEL, inclusive, respaldava isso e emitiu uma série de pareceres favoráveis para consumidores que fizeram esse tipo de pergunta –se eles poderiam ou não gerar a própria energia como optantes e compartilhar os seus créditos de energia elétrica, como optantes, como outras unidades consumidoras.
Depois a agência teve uma mudança de entendimento, passou a não aceitar mais. Isso levou os consumidores à Justiça, porque eles se sentiram literalmente lesados pela mudança de postura e de entendimento.
E, infelizmente, esse problema não deve diminuir. O assunto deve aumentar porque cada vez mais consumidores estão sendo notificados pelas distribuidoras a respeito dessa mudança de regra e, consequentemente, vários deles estão indo buscar os seus direitos na justiça porque eles estão entendendo que foram lesados.
Vamos ver uma espiral de judicialização sem fim?
Existe um risco que paira neste momento sobre o mercado e também sobre o regulador: de que essa situação se agrave. Para superar esses problemas identificados, a Absolar havia recomendado dois caminhos possíveis.
O primeiro seria buscar um entendimento diferente daquele que foi implementado para solucionar no âmbito infra legal. Esse caminho, infelizmente, não foi seguido. O segundo é o caminho que está ganhando adesão, com o Congresso Nacional. Ele se abre em duas frentes. Na leitura mais imediata, a gente vê alguns parlamentares dando entrada a PDLs (Projeto de Decreto Legislativo).
Isso é um caminho que cria ruídos por ser fora da regulação interna e fragiliza a agência, não?
Diferentes parlamentares avaliaram que há pontos da lei que não estão corretamente implementados pelo órgão regulador. Quando o comando legal não é, na visão do legislador, corretamente adequado, o legislador tem total legitimidade e competência para chamar o alerta.
Esse é o caminho imediato de pressão. E o outro?
O PDL é uma ação de mais curto prazo, mas ele também é uma ação, digamos, um pouco mais incisiva e, portanto, não tão bem quista pela própria ANEEL, porque isso gera uma certa tensão entre ela e o Congresso Nacional. Mas, por outro lado, a tensão já existe também quando a regulamentação não atende às expectativas do Poder Legislativo. O outro caminho é do aprimoramento legislativo, com um projeto de lei que aperfeiçoe pontos críticos.
Esse projeto de lei de que você fala tem sido criticado por muitas associações que apontaram que ele poderá trazer um custo de R$ 100 bilhões ao setor…
Isso é absolutamente fora de lógica. A proposta é bastante cirúrgica e objetiva na sua essência, na sua intenção de fazer a correção dos itens da lei. Foi extensamente esclarecido pelo autor do texto do projeto de lei, que é ninguém menos que o relator da Lei 14.300 [deputado Lafayette de Andrada (Republicanos-MG)].
Portanto, a pessoa que construiu o texto da lei está dizendo: “olha, a lei não foi implementada corretamente e ela precisa ser interpretada desta outra forma.” É curioso que a gente perceba o movimento de algumas entidades. Aí cabe a pergunta: por que será que essas entidades estão tomando essa iniciativa, mesmo antes de se aprofundar no teor do documento ou pelo menos compreender qual que é o texto ali que está sendo alterado e fazer esse movimento? Talvez seja uma reação de reflexo, meio intempestiva.
Há também dificuldades de acesso à conexão em algumas áreas de concessão, como Minas Gerais. Isso também tem levado à potencial judicialização com distribuidoras?
A interação da geração distribuída com as distribuidoras é marcada por uma recorrente, eu diria até crônica dificuldade de elas cumprirem o que a regulamentação exige. O maior sinal disto está no descumprimento de prazos previstos pelo regulador.
É o mínimo que se espera de um prestador de serviço público, um serviço público essencial para que ele preste um serviço adequado para a sociedade. Essa situação se tornou tão visível que eu recomendo você a solicitar para a Agência Nacional de Energia Elétrica o Relatório de análise da Ouvidoria. Você vai descobrir que a geração distribuída entrou nas principais reclamações do Brasil.
Em 17 de maio, a Assembleia Legislativa de Minas Gerais realizou uma audiência pública sobre a questão do acesso, na qual foi convidado a participar o presidente da Cemig para esclarecer os desafios e problemas em relação a geração distribuída, a conexão de sistemas de geração distribuída no estado. Importante esclarecer que o ONS (Operador Nacional do Sistema) emitiu uma nota oficial no seu website esclarecendo que geração distribuída e sistemas de baixa tensão e média tensão não são da responsabilidade dele.
A Cemig disse que estava aguardando o retorno do ONS e suspendendo a emissão de pareceres. Então, veja, é até um assunto a ser mais bem avaliado do ponto de vista, de novo, da fiscalização do regulador.
Essa situação não diz respeito única e exclusivamente a projetos de minigeração. Existem sistemas de microgeração de três quilowatts, cinco quilowatts. São seis módulos fotovoltaicos no telhado da casa dele. Qualquer engenheiro, eletricista, qualquer especialista técnico, sabe que é impossível que um sistema residencial de três quilowatts pico gere algum tipo de perturbação na rede da forma como está sendo justificado para suspender a emissão de pareceres.
E sistemas também de porte muito pequeno na escala de microgeração, por exemplo, 50 quilowatts. Só para você ter uma ideia, um sistema de 50 quilowatts é um investimento que um consumidor pequeno, por exemplo, um uma padaria, um mercadinho, um açougue ou um restaurante de bairro, é o investimento que o consumidor desse tipo faz de mais ou menos R$ 200 mil.
Isso é mais uma ameaça que pode parar na justiça? Isso não é um sinal ruim?
Esse é um tema que corre o risco de ser judicializado. A gente aqui não está tirando nenhuma possibilidade da mesa para defender o setor. Também do ponto de vista dos seus direitos e dos direitos dos consumidores. Então a gente espera poder solucionar essa situação de forma amigável. Mas a associação vai fazer o que for necessário para defender a justiça dos seus, dos direitos, dos seus associados e dos seus consumidores.
Vocês começaram também a se mobilizar com o governo federal em relação a harmonizar a relação entre empresas do setor solar e distribuidoras que investem também em GD. Vocês têm preocupação de que grupos de distribuidoras possam privilegiar seus investimentos em detrimento de outros players?
Esse é um tema de importância fundamental, que envolve a agência reguladora e pode inclusive também envolver o Cade (Conselho Administrativo de Defesa Econômica). Mas independentemente de o Cade tomar alguma providência ou não, o regulador tem autonomia para agir.
Então é preciso que sejam criados mecanismos que garantam que não haja esse esse risco de algum tipo de privilégio, de disparidade concorrencial, de preferência concorrencial ou de facilidade a informações, a dados dos consumidores, perfis de consumo, distribuição geográfica. É preciso saber quais subestações têm, por exemplo, capacidade de escoamento disponível ou mesmo quais são aquelas que não precisam de obra adicional de infraestrutura ou precisam de alguma obra de infraestrutura ou até mesmo em quais regiões.
A inserção da geração distribuída tem um efeito maior ou menor para perdas, para outros benefícios econômicos que podem ser monetizados em favor de algum agente econômico específico. Então, acho que esses são pontos que precisam de atenção.
Há um bom exemplo: a Cemig fez um mapa inclusive de disponibilidade das suas redes em cores verde, vermelho e amarelo e você consegue ver por esse mapa onde tem capacidade de escoamento disponível.
O nosso papel aqui é dialogar com a ANEEL e solicitar que ela atue, que saia de uma posição passiva em relação a esse tema e tome uma posição pró-ativa e engajada para poder melhorar essa situação que está irregular, porque os prazos estão sendo descumpridos.
Nesse tipo de situação, é preciso que o regulador estabeleça salvaguardas, estabeleça acompanhamento, critérios de separação, de acesso a dados, informações indica, isso existe aí uma separação.
No caso da geração distribuída, uma empresa do grupo econômico da distribuidora pode fazer também geração distribuída na sua área de concessão. E aí existe um risco. É preciso olhar com atenção.
Pergunta aberta: é preciso criar algum limite do ponto de vista de área de concessão? Não sei se é bom. Não sei se é ruim. Será que de alguma forma, essa seria uma forma simples? Será que é melhor? Não sei, mas precisamos discutir.
Vocês já levaram isso ao ministro?
Tivemos uma reunião com ele em que falamos de muitos assuntos lá, inclusive da geração distribuída e dos desafios que a gente encontra. Naquela ocasião, especificamente, a gente não concentrou muito a conversa nesse tópico das distribuidoras.
Você estão atentos à renovação dos contratos de distribuição?
Hoje nós temos mais ou menos dois milhões de consumidores que já têm geração distribuída. No mercado livre, são dez mil clientes. Então, quer dizer, a gente está falando de um universo que é 200 vezes o tamanho do universo do mercado livre em número de consumidores. Será que isso não é relevante levar a gente em consideração? Os contratos das distribuidoras foram escritos quando não havia energia descentralizada.
Acho que assim existem motivos legais pelos quais a geração distribuída tem de ser contemplada. Por quê? Porque tem lei. Está escrito lá que é direito do consumidor o acesso à sua rede de distribuição para geração distribuída. Se a gente está falando em modernização de contratos, tem também de modernizar esses contratos em relação às leis novas que entraram em vigor no país desde os últimos 30 anos ou perto disso.
*Roberto Rockmann é escritor e jornalista. Coautor do livro “Curto-Circuito, quando o Brasil quase ficou às escuras” e produtor do podcast quinzenal “Giro Energia” sobre o setor elétrico. Organizou em 2018 o livro de 20 anos do mercado livre de energia elétrica, editado pela CCEE (Câmara de Comercialização de Energia Elétrica), além de vários outros livros e trabalhos premiados.
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