Regis Dudena* e Bruna Sahadi**
Em larga medida, as ferrovias nacionais cortam áreas de municípios, antes mesmo de muitos de seus processos de urbanização. Basta pensarmos que entre as décadas de 1920 e 1940 saímos de uma população, que oscilou entre 30 e 41 milhões de habitantes, chegando, em 2022, a um impactante número de 207 milhões. Soma-se a isso o grande processo de êxodo rural e concentração da população nas cidades, especialmente nas últimas cinco décadas.
A expansão de muitas cidades deu-se, justamente, no entorno ou em direção às ferrovias e, não raramente, ampliaram-se os casos de interferência e necessidade de cruzamentos. Para tal, muitas são as possíveis soluções, tanto para as questões de trânsito e tráfego, quanto para aquelas relativas à segurança. Contudo, sempre sobrevêm questionamentos relativos ao ônus da implementação dessas soluções.
Por isso, houve o endereçamento regulatório dessa questão no Regulamento dos Transportes Ferroviários, aprovado pelo Decreto 1.832/1996. É textual a seguinte determinação, prevista no art. 10, §4º: “[o] responsável pela execução da via mais recente assumirá todos os encargos decorrentes da construção e manutenção das obras e instalações necessárias ao cruzamento, bem como pela segurança da circulação no local.” Há casos recorrentes nos quais municípios ampliam sua mancha urbana e suas vias rodoviárias, requerendo, para isso, travessias e cruzamentos da ferrovia. Contudo, em alguns casos, pretendem demandar da administração ferroviária a assunção dos respectivos encargos.
Há alguns exemplos a se destacar, da interação entre municípios e ferrovias, como as tentativas de interferência regulatória municipal em temas de competência federal, como no caso de restrições da utilização de dispositivos de segurança (buzina/apito), obrigação regulatória, por meio de lei municipal. Esse e outros casos, como as interferências de vias e custos para a construção e manutenção das obras e instalações necessárias ao cruzamento rodoferroviário, bem como pela segurança da circulação no local, veem chegando no judiciário, requerendo, inclusive, a subida para os tribunais superiores.
Nesse tema, recentemente a 2ª Turma do STJ (Superior Tribunal de Justiça) proferiu uma significativa decisão, favorável à concessionária de ferrovias da malha Sul Catarinense, Ferrovia Tereza Cristina S/A, e à ANTT (Agência Nacional dos Transportes Terrestres).
Por ocasião do julgamento do Recurso Especial 1.569.468, que contou com a atuação desta banca de advogados, foi afastada a condenação solidária imposta à ferrovia, à ANTT e ao município de Criciúma (SC) pelo Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Em suma, a maioria dos ministros da 2ª Turma, seguindo o voto do ministro relator, Mauro Campbell Marques, entendeu que a responsabilidade pela implementação das medidas de segurança (construção de passarelas, instalação de semáforos e cancelas nas passagens de nível, adoção de sistemas que possibilitem o uso de buzina uma e curta pela operadora ferroviária) é única e exclusiva do município de Criciúma.
Isso se deu porque restou incontroverso nos autos que a linha ferroviária era anterior à urbanização do trecho por ela percorrido, de modo que caberia apenas à municipalidade de Criciúma a adoção das providências necessárias a garantir a segurança da via, nos termos do já referido art. 10, §4º do anexo do Decreto 1.832/1996, concomitantemente com o art. 24 do Código de Trânsito Brasileiro (Lei 9.503/1997).
O caso, portanto, não se enquadra naquelas hipóteses em que seria possível a responsabilização da concessionária de transportes ferroviários por omissão quanto a medidas necessárias à segurança da via, mas de caso em que a omissão, se existente, é do próprio município de Criciúma, como reconheceu o acórdão recorrido pelo especial.
A decisão do STJ representa uma grande vitória para o setor, eis que a Ferrovia poderia, efetivamente, vir a ser responsabilizada, objetivamente, por alegadas falhas na prestação do serviço, que implicassem falta de segurança do mesmo. Mas isso não se confunde com uma situação em que não há falha alguma imputável a ela e, ao contrário, eventuais acidentes são imputáveis exatamente a outro ente público, que por eles também deve ser responsabilizado objetivamente – o município de Criciúma. O que existe, no caso, é a adequada distribuição dos ônus entre responsáveis por duas malhas de transporte, que se cruzam, gerando potencial situação de riscos de acidentes. Nessa hipótese, a regulamentação do transporte ferroviário é explícita ao prever o dever único do responsável pela nova via (neste caso concreto, o município de Criciúma). A decisão proferida pelo STJ, então, acertadamente, reconheceu que houve imposição de solidariedade sem qualquer amparo legal pela decisão antecedente, que veio a ser revista.
Por um lado, é importante reconhecer, que a obrigação de arcar com os ônus não se confunde com a competência regulatória de cada uma das esferas e que a competência para a regulação do transporte ferroviário de cargas é federal, por intermédio de atuação da ANTT, não cabendo a normativos municipais impor restrições à esta prestação de serviço. Por outro lado, há grande importância nessa decisão, por se tratar de uma fixação de precedente, pelo STJ, que determinou o devido reconhecimento das obrigações de cada um dos agentes, trazendo maior previsibilidade e segurança jurídica e real para as vias e seus usuários.