Regulação contratual versus regulação discricionária no saneamento: ou uma, ou outra?

Stella Farfus Santos* e Jolivê Alves da Rocha Filho**

Introdução

Diante da complexidade e longa vigência dos contratos de concessão de serviços públicos, a regulação é instrumento essencial para assegurar o integral cumprimento do objeto contratual de forma eficiente e sem prejuízo para as partes.

A regulação de concessões de serviço público pode ser realizada ao menos por duas formas distintas: a regulação discricionária e a regulação contratual. Cada um desses modelos serve a ambientes específicos e a finalidades distintas.

A principal diferença entre esses modelos de regulação reside na estratégia utilizada para fixação da tarifa. Mas suas consequências vão muito além.

A diferença entre regulação discricionária e contratual

Na regulação discricionária, a remuneração da concessionária é fixada conforme a estrutura de custos ao longo da prestação dos serviços. O objetivo primordial é manter os preços (ou tarifas) alinhados aos custos, para evitar que o parceiro privado se utilize de sua posição para cobrar preço supracompetitivo.

Assim, evita-se que determinado agente exerça prática anticoncorrencial, mesmo que não esteja em ambiente competitivo. Logo, a regulação discricionária busca simular ambiente concorrencial para fixação do preço. Nesse sentido, o órgão regulador fixará o preço conforme os custos da concessionária. A determinação do preço pode ocorrer antes ou depois que a concessionária efetivamente incorra nesses custos.

Por outro lado, a regulação contratual é marcada pela definição do preço (ou tarifa) na licitação. A evolução do preço durante a execução do objeto da concessão ocorre por parâmetros objetivos previamente definidos no contrato.

Tendo informações sobre a tarifa, o parceiro privado também já precisa contar, desde o edital da licitação, com as demais informações necessárias para o cálculo do seu retorno – o que lhe permite elaborar propostas adequadas na licitação.

A fixação do preço ou tarifa na licitação é o cerne da regulação contratual. Mas essa estratégia regulatória somente é viável se houver determinação, também na minuta de contrato, sobre investimentos e responsabilidades do parceiro privado. É necessário que os custos sejam precificados pelo parceiro privado já no momento da licitação.

Por isso, a regulação contratual pressupõe uma definição mais detalhada das condições atinentes à relação jurídica entre poder concedente e concessionária no contrato. Instrumentos como matriz de risco, metas de desempenho, gatilhos de investimentos e sistemática de amortização de ativos são essenciais à formação da regulação contratual.

A definição da metodologia tarifária e de temas no contrato de concessão conduz à maior densidade normativa do contrato. Neste modelo, o contrato concretiza grande parte das escolhas regulatórias, inclusive quanto ao regime econômico dos contratos de concessão.

Caso o critério de julgamento seja diretamente ligado à tarifa, o seu valor será definido pelo resultado da licitação – de modo que a própria disputa (concorrência) entre as licitantes fixa o preço. Nos demais critérios de julgamento, incluindo a maior outorga, haverá fixação prévia da tarifa ou preço no edital. Nesse caso, haverá certa discricionariedade do poder concedente (na definição da tarifa em edital), que tende a ser reduzida a partir da formação da relação jurídica contratualizada.

Essas modalidades de regulação (contratual e discricionária) se prestam a finalidades distintas. O legislador parece ter absorvido esse raciocínio no Novo Marco Legal do Saneamento (Lei 14.026/2020), que reformulou o setor, com fortes incentivos para adoção da regulação contratual.

A regulação contratual no Novo Marco do Saneamento Básico

A reforma legislativa do serviço de saneamento básico objetivou atrair investimentos privados para o setor. Para isso, buscou criar soluções jurídicas que transmitissem segurança aos atores do setor e viabilizassem altos aportes de capital com amortização a longo prazo.

O Novo Marco do Saneamento Básico não condicionou os contratos a determinada forma de regulação, deixando a escolha a cargo do poder concedente. Mas forneceu incentivos para adoção da regulação contratual.

Isso porque a definição prévia do preço e de outros temas relevantes no contrato, característica da regulação contratual, traz segurança jurídica às partes. A fixação precisa e consolidada do preço garante a estrutura necessária aos projetos de investimentos do parceiro privado. Assim, a regulação contratual alinha-se ao aumento de investimentos privados no setor, fim buscado pela reforma do serviço de saneamento básico.

No mesmo sentido, a vedação à contratação direta de estatais para prestação de serviços de saneamento básico (art. 10 da Lei 11.445/2007, reformada) contribui para a expansão da regulação contratual. Quando há contratação direta para prestação dos serviços de saneamento, não há licitação – de forma que não há fixação de preço. Por essa razão, é necessário simular concorrência para evitar preços anticompetitivos, de forma que a regulação discricionária é técnica comum nessa hipótese. A vedação à contratação direta de estatais, portanto, constitui incentivo à adoção da regulação contratual.

O Novo Marco do Saneamento também determinou que os contratos de concessão de serviços de saneamento disponham sobre metas de expansão dos serviços e matriz de risco (art. 10-A da Lei 11.445/2007, reformada), entre outros aspectos. A alta densidade normativa, reforçada pelo Novo Marco, é pressuposto da regulação contratual – ou seja, constitui mais um incentivo à adoção desse modelo regulatório.

A obrigatoriedade de adoção de matriz de risco também conduz à regulação contratual. Isso porque, na regulação discricionária, avaliam-se os custos eficientes (já incorridos ou futuros) da concessionária para projetar a tarifa. Não se analisa qual risco resultou em aumento ou redução desses custos. Portanto, a matriz de risco se mostra mais pertinente quando incorporada à regulação contratual.

A coexistência das duas espécies de regulação

O contrato sujeita a regulação futura às suas escolhas, precisamente para garantir a preservação da sua equação econômico-financeira. Por consequência, o contrato vincula a regulação. Quanto maior a densidade normativa do contrato, menor a discricionariedade do órgão regulador.[1]

Em outras palavras, contratos de concessão que aplicam a sistemática de regulação contratual (ou seja, possuem maior densidade normativa) constituem um “limite interventivo”[2] à atuação da agência reguladora.

Isso porque, na regulação contratual, as propostas apresentadas pelas licitantes na concorrência consideram todas as informações, dados e disposições constantes do edital. Isso significa que os critérios de remuneração, revisão/reajuste tarifário e amortização são capturados pela proposta apresentada na licitação, quando a então licitante dimensionou a sua oferta.

Por isso, a metodologia tarifária, a matriz de risco do contrato e a sistemática contratualmente adotada devem sempre ser respeitadas, justificando a atuação em menor intensidade do órgão regulador nesses contratos.

Como visto, na regulação discricionária, a própria agência reguladora simula o ambiente concorrencial para fixação do preço. Na regulação contratual, a própria concorrência determina o preço, de forma que não cabe ao órgão regulador simular a concorrência. À exceção das prerrogativas administrativas e de alterações bilaterais, sua função principal consiste em verificar se as condições da concessão se mantêm, a fim de manter a tarifa tal como definida em contrato.[3]

Como métodos para fixação da tarifa, as regulações discricionária e contratual são incompatíveis – o edital para o contrato de concessão deve optar por uma dessas estratégias, pois não há sentido em definir o preço por meio de duas lógicas distintas. Mas alguns elementos dos modelos regulatórios (fixação por custos, na regulação discricionária, e definição prévia dos temas no contrato, na regulação contratual) podem coexistir. É possível, por exemplo, que um contrato preveja determinação da tarifa com base nos custos, mas também prefixe alguns desses custos.

Mesmo com adoção de regulação contratual (incompatível com regulação discricionária), continua a existir uma atuação em certa medida discricionária por parte dos órgãos reguladores. Não há como defender que a regulação contratual afastaria por completo a discricionariedade por parte das agências reguladoras. Pelo contrário: a regulação contratual tende a aprimorar a atuação regulatória discricionária.

Contudo, para os contratos que adotam a regulação contratual, a discricionariedade deve apenas complementar a regulação estabelecida em contrato – e desde que as definições pretendidas pelos entes reguladores guardem coerência com as disposições contratuais e não desnaturem toda a lógica de regulação estabelecida no instrumento contratual.

Nesse sentido, Pedro Gonçalves ensina que “o contrato público regulatório pode constituir uma alternativa ou um complemento em relação i) aos processos de ação unilateral administrativa (regulamento e acto administrativo); ii) aos modelos institucionais ou orgânicos baseados na regulação por agência”.[4]

No entanto, não há como a atuação discricionária afastar ou pretender aplicar ditames contraditórios com a regulação contratual.[5] As condições previstas no contrato devem prevalecer em relação a um regime geral, uma vez que vinculam plenamente a Administração Pública.[6]

Incorporando tal raciocínio, o art. 25, § 2º, da Lei 11.445/2007 incluiu nas atividades de regulação dos serviços de saneamento básico “a interpretação e a fixação de critérios para a fiel execução dos contratos, dos serviços e para a correta administração de subsídios”.

Logo, cabe às agências reguladoras sempre interpretar as cláusulas já existentes nos contratos de concessão. Contudo, por “interpretação”, não é possível compreender a possibilidade de desnaturação completa da regulação prevista em contrato.

Conclusão

O Novo Marco Legal do Saneamento forneceu fortes incentivos para adoção da regulação contratual – e a experiência prática tem demonstrado que o poder público percebeu vantagens nesse modelo regulatório, já que ele tem sido adotado em contratos de concessão assinados desde o novo marco.

Contudo, o sucesso do modelo depende da utilização da lógica da regulação contratual para interpretação do contrato. A regulação contratual não encerra a discricionariedade do órgão regulador. Atuações regulatórias tradicionais continuam presentes, mas limitadas pela lógica regulatória estabelecida no edital. Eventuais incompletudes contratuais somente podem ser interpretadas à luz da regulação contratual, sob pena de frustração das finalidades consolidadas no edital. Ao se tratar de estratégias regulatórias, o sentido de vinculação ao edital é expandido. A definição clássica – de que a administração se vincula aos termos do edital – deve ser atualizada para abranger a lógica da estrutura regulatória. Se determinado contrato adota opção regulatória (seja ela discricionária ou contratual), a escolha torna-se princípio reitor do contrato. Seus efeitos se projetam sobre toda a relação jurídica, inclusive nas interpretações a serem realizadas pelo órgão regulador. No mesmo sentido, o poder concedente deve tratar os contratos por regulação contratual de modo distinto daqueles regulados discricionariamente, entendendo que sua estrutura é distinta


[1] MARQUES NETO, Floriano de Azevedo. Concessões. Belo Horizonte: Fórum, 2015, p. 368.

[2] FREITAS, Rafael Véras; SANDOVAL, Daniela. O Novo Marco Regulatório do Saneamento Básico e os novos quadrantes da regulação contratual. Coluna Direito da Infraestrutura. Disponível em https://www.editoraforum.com.br/noticias/o-novo-marco-regulatorio-do-saneamento-e-os-novos-quadrantes-da-regulacao-contratual-coluna-direito-da-infraestrutura/#_ftnref4

[3] KLEIN, Alice Lícia. FIGUEROA, Caio. A regulação contratual das concessões de saneamento. Em: CUNHA FILHO, Alexandre Jorge Carneiro et al (Coord.) Novo marco regulatório do saneamento básico no Brasil – estudos sobre a nova Lei nº 14.026/2020. São Paulo: Quartier Latin, v. 2, 2021, p. 328.

[4] GONÇALVES, Pedro. Regulação administrativa e contrato, Revista de Direito Público da Economia, Belo Horizonte, v. 9, n. 35, jul./set. 2011, p. 135.

[5] Grande parte da atuação da ANA (Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico) se pauta no respeito aos contratos já firmados e considera que a regulação posterior não pode contrariar o método regulatório (e tarifário) adotado. A Norma de Referência nº 3 (Resolução nº 161/2023) estabeleceu mecanismos de amortização de ativos considerando a “necessidade se atentar para a segurança jurídica dos contratos celebrados antes da vigência da norma de referência, buscando-se assim respeitar a pactuação estabelecida nele, salvo se for inviável a aplicação das regras do contrato quando este apresentar ausência de informações. Caso se esteja diante de um contrato que prevê o método para indenização, entende-se que ambos os interessados criaram expectativas legítimas em relação à metodologia de cálculo da indenização.”, conforme seu Relatório de Análise de Impacto Regulatório.

[6] Floriano de Azevedo Marques Neto aponta que o direito administrativo sofre de uma maldição do regime único – tendência, inclusive doutrinária, de tratar relações jurídicas distintas por meio de um regime jurídico único, ignorando suas peculiaridades. Na regulação de concessões, a maldição do regime único pode se manifestar pelo tratamento de contratos por regulação discricionária e por regulação contratual como se fossem sujeitos ao mesmo regime jurídico. Para definição e crítica do tema, ver AZEVEDO MARQUES NETO, Floriano de. Do contrato administrativo à administração contratual. In: Revista do Advogado – Contratos com o Poder Público. São Paulo: Associação dos Advogados de São Paulo – AASP, a. XXIX, n. 107, dez./2009, p. 74-82.

*Stella Farfus Santos é advogada no escritório Justen, Pereira, Oliveiraa.
**Jolivê Alves da Rocha Filho é advogado no escritório Justen, Pereira, Oliveira & Talamini.
O iNFRADebate é o espaço de artigos da Agência iNFRA com opiniões de seus atores que não refletem necessariamente o pensamento da Agência iNFRA, sendo de total responsabilidade do autor as informações, juízos de valor e conceitos descritos no texto.

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