Bernardo Gonzaga e Dimmi Amora, da Agência iNFRA
O Brasil tem uma estrada de nove mil quilômetros, onde não há engarrafamentos nem bloqueios de grevistas ou quase nenhuma restrição de velocidade ou peso. Essa estrada passa perto de onde vive mais de 70% da população e foi deixada pronta bilhões de anos atrás.
Se usada com regras racionais, poderia resultar numa economia superior a 80% em cada tonelada de produto transportado em relação ao custo desse mesmo item no transporte via caminhão, veículo usado para levar 65% de toda produção nacional.
Mas a inércia do poder público ao longo de anos fez com que os custos aportados no decorrer do tempo tornassem cara e ineficiente a opção por usar navios nas vias marítimas e hidroviárias do país para transportar mercadorias, o que ajuda a manter um cartel de três empresas e impede o desenvolvimento do setor.
O resultado: somente 10% da carga do Brasil trafega por vias aquaviárias, na chamada navegação de cabotagem.
Essas conclusões fazem parte de um relatório inédito da SeinfraFerroviaPortos do TCU (Tribuna de Contas da União), obtido pela Agência iNFRA com exclusividade. O trabalho dos auditores, que ainda está sob análise pelo relator do processo, ministro Bruno Dantas, sem aprovação do plenário, durou quase um ano, ouvindo dezenas de técnicos e reunindo informações de mais de 20 estudos e levantamentos sobre o tema no Brasil e no mundo.
Ao longo do período de levantamentos, a Agência iNFRA entrevistou uma dezena de técnicos e especialistas do setor de navegação que, de maneira geral, referendam no todo ou em partes as principais conclusões a que chegou o relatório prévio, focado na área de cabotagem de contêineres, por ser onde o problema é mais grave. São elas:
– Falta uma política pública para a cabotagem no Brasil, o que deveria ser uma função do governo;
– Apesar de a lei obrigar a ter custos iguais, a navegação de cabotagem tem custos superiores à navegação de longo curso (que leva ou traz cargas do exterior), especialmente no item mais significativo de custo para o transporte, o combustível;
– Não há competição na cabotagem de contêineres, e a responsável por desenvolver isso, a ANTAQ (Agência Nacional de Transportes Aquaviários), não fomenta a competição;
– A burocracia dos órgãos públicos, especialmente da Receita Federal, impede o uso da multimodalidade, o que prejudica ainda mais o setor.
Crescimento
Mesmo com todas essas dificuldades, o volume de carga transportado por cabotagem no Brasil cresce a taxas superiores a dois dígitos desde o início da década, de acordo com dados da ANTAQ.
O volume transportado saiu de 127 milhões de toneladas ano para 163 milhões de toneladas ano, entre 2010 e 2018. Nos contêineres, o volume sai de 5,3 milhões de toneladas para 13,5 milhões no mesmo período. Mas não houve ganho em relação ao todo, e o percentual sobre o total transportado no país continua variando pouco ao redor dos 10%.
O benefício de um maior uso da cabotagem, especialmente de contêineres, seria reorganizar o sistema de transporte, fazendo com que caminhões pudessem levar cargas em distâncias mais curtas, de até 400 quilômetros, o que é considerado o adequado para esses veículos e que dá mais rendimento e menos desgaste ao caminhoneiro.
“Assim ele pode dormir em casa”, costuma repetir o ministro da Infraestrutura, Tarcísio de Freitas, quando trata desse tema.
Nos próximos dias, o governo promete anunciar um pacote de medidas para o setor de cabotagem, que vai incluir inclusive propostas de alterações legislativas, com o objetivo de turbinar esse meio de transportes e alcançar a meta de dobrar o percentual de produtos transportados por cabotagem no país, chegando a 20% do total transportado, em 4 anos.
Custos mais baixos
O desenvolvimento do comércio no mundo aconteceu pela navegação, que ampliou o processo de troca entre cidades e aumentou as possibilidades de crescimento das nações.
O menor gasto energético para vencer o atrito no mar em relação à terra sempre fez com que o custo do transporte marítimo fosse mais baixo, seja na comparação com caminhões, carruagens, burros ou camelos.
Milhares de anos se passaram e os custos de navegar continuam sendo mais baixos, principalmente para cargas que são transportadas por mais de 1,5 mil quilômetros.
No trabalho do TCU, os auditores apontam que uma tonelada de produtos levada de Belém (PA) para São Paulo (SP) custa R$ 596, se for por caminhão. De navio, mesmo com o uso de um trecho de caminhão entre as cidades de Santos e São Paulo, o custo cairia para R$ 325.
É claro que todos pagamos essa conta. Um estudo do Ilos, um instituto que trabalha dados de transporte, mostra que o país tinha um custo de transporte médio de 7,1% para suas cargas. Nos EUA, escolhido como comparação por ter extensão territorial semelhante, esse custo era de 4,8%. O trabalho é de 2013.
Há estimativas de que já estejamos a caminho dos 10%. Na prática, isso significa que, na média, de cada R$ 100 que você gasta, R$ 10 são para pagar o transporte. Deveria ser R$ 5.
Uma estimativa feita pela CNA (Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil) aponta que uma carga saindo de Sorriso (MT) com destino a Santos (SP) ou Paranaguá (PR), pelo modal rodoviário, gastaria, em média, US$ 126 até o porto de despacho, enquanto por navegação de cabotagem, via Miritituba (PA), o valor seria de US$ 80.
Segundo a Federação de Agricultura e Pecuária do Pará, 95% do cacau que é produzido no estado é transportado para a Bahia, por mais de dois mil quilômetros via rodovias. A federação informa que os preços da cabotagem, mesmo saindo do porto de Miritituba (PA), sairiam mais caros que o transporte por estradas. Ou seja, mesmo o custo estimativo sendo menor que do caminhão, o preço final ao consumidor acaba maior.
Alumínio por cabotagem
Há, contudo, cadeias de grande porte no país que se utilizam da navegação de cabotagem, como é o caso do alumínio. Da extração da bauxita nas principais minas no Norte do país à parte das chapas que vão virar as latinhas de cerveja do fim de semana, há transporte por vias aquaviárias, “avaliadas de forma satisfatória pelos clientes”, de acordo com Luiz Fernando Resano, vice-diretor do Syndarma (Sindicato Nacional das Empresas de Navegação Marítima).
Por que há clientes satisfeitos e insatisfeitos com o setor? Para Resano, o que explica o problema é o tipo de carga e a comparação com os preços praticados por navios estrangeiros em navegação de longo curso que passam pelo Brasil, que só podem fazer o transporte de produtos nacionais se obedecerem a regras rígidas, que serão detalhadas adiante nesta reportagem.
Para ele, o transporte por cabotagem tem que ser comparado com o custo do transporte por caminhão. Mas o que se faz, em geral, é comparar com o custo do transporte de navio internacional.
É nesse ponto que reside um dos principais achados da auditoria do TCU sobre o que impede a maior competitividade do setor: a falta de isonomia entre o transporte de longo curso e de cabotagem, especialmente na compra de combustível.
O custo de combustível de uma viagem, a depender do preço do frete e do combustível na época, pode variar de 40% a 60% do total dos custos. Por acordos internacionais, os navios estrangeiros que navegam por aqui não pagam impostos sobre os combustíveis. Os navios que operam na costa brasileira pagam.
“Se você coloca 18% de ICMS nesse custo de combustível, é um impacto significativo”, lembra Resano, apontando que há incidência ainda de impostos federais para as empresas nacionais.
Para piorar, desde a greve dos caminhoneiros de 2018, quando o governo começou, de alguma maneira, a subsidiar o preço do diesel dos caminhões, a diferença ficou ainda pior em relação ao combustível da navegação, chamado Bunker, o que cria mais desincentivos para o uso da cabotagem, que paga os custos internacionais do combustível, mais os impostos.
O combustível mais caro não é o único problema de disparidade de preços entre os navios de empresas nacionais e os de bandeira estrangeira. Os estrangeiros que por aqui circulam não precisam cumprir as mesmas regras trabalhistas e ambientais, por exemplo. Enquanto aqui no Brasil uma equipe no navio trabalha 6 meses por ano, um estrangeiro pode trabalhar os 12 meses.
Sem contar que estrangeiros e brasileiros reclamam de outros custos elevados no Brasil, em especial o da praticagem, que é são as embarcações que apoiam as manobras dos navios nos portos.
Uma saída encontrada por algumas empresas foi criar offshores de navegação no exterior para fugir da legislação brasileira que rege as EBN (Empresas Brasileiras de Navegação) e dos custos mais elevados. Foi o caso da Vale do Rio Doce, quando privatizada.
Eliana Zacca, assessora técnica da Federação da Agricultura do Pará, diz que há ainda o problema da reserva de mercado para a construção naval, que dificulta a aquisição de navios.
“Quando você compra um navio na China, é 50% mais barato e entrega em um ano. Aqui é mais caro e leva dois anos para receber”, disse. E nem sempre recebe. A Log In teve que abandonar encomendas de navios no Brasil e comprar navios chineses para ampliar sua frota. Um navio novo está chegando neste ano.
Lei determina isonomia
O relatório do TCU lembra que a Lei 9.432/1997 determina que o país deve dar tratamento isonômico à navegação de cabotagem em relação aos navios de longo curso. A mesma lei é a que define que a cabotagem só pode ser feita por empresas e navios nacionais. A de longo curso é aberta a empresas e navios estrangeiros.
Mas faz sentido manter essa reserva de mercado quando seria possível abrir a concorrência?
Essa é das poucas unanimidades do setor marítimo em que a resposta é sim. Em recente reunião para tratar do tema na CTLog (Câmara Técnica de Logística e Transportes) do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, o representante da CNA, Antônio Fayet, concordou que a proteção à navegação nacional é necessária.
De acordo com o relatório do TCU, 80% das linhas costeiras dos países da ONU (mais de 90 nações) têm regras para proteção de sua marinha mercante. Nos EUA, o Jones Act, lei que protege a cabotagem deles com regras mais restritivas que as do Brasil, vai completar 100 anos.
Ter navios próprios é a forma que os países encontram para garantir o transporte mais barato via marítima, sem estarem totalmente dependentes de poucos conglomerados internacionais de navegação, flagrados com certa frequência em práticas anticompetitivas por órgãos de regulação ao redor do mundo.
Isso ocorre porque é fácil tirar um navio de uma região e levá-lo para outra onde o faturamento está maior no momento. Afinal, o mar não tem muros. No setor aéreo, a cabotagem é 100% restrita no Brasil. Aviões em viagens do exterior não podem transportar qualquer pessoa ou mercadoria enquanto passam no território nacional.
Para o Brasil, no caso da navegação, a questão da proteção é ainda mais relevante. Mais de 80% do comércio marítimo está no eixo norte-norte, entre as nações desenvolvidas da Europa e da América do Norte, e entre essas e os países asiáticos.
“Somos ponta de linha”, alerta Resano, do Syndarma.
O secretário nacional de Portos do Ministério da Infraestrutura, Diogo Piloni, diz que o governo não é contra mais abertura para o mercado de cabotagem, mas acredita que isso deve ser feito com precaução. O maior receio demonstrado pelos agentes do governo é que o país fique sem capacidade de transporte marítimo, caso se abra totalmente o mercado para estrangeiros.
“Em transporte, caro mesmo é não ter”, disse Piloni.
O exemplo do passado mostra que essa proteção aos estaleiros e empresas de navegação nacional, contudo, precisa ser bem calibrada. Por duas vezes em quatro décadas ela resultou em escândalo de corrupção.
Histórico da Navegação
Mesmo sendo um grande exportador de commodities desde o século XIX, o Brasil tinha uma frota mercante incipiente. A partir da década de 1950, a criação do FDMM (Fundo de Desenvolvimento da Marinha Mercante) começa a fomentar o desenvolvimento da navegação e da construção naval.
Pela lei que criou o FDMM (3.381/1958), o fundo deveria “ser aplicado na reposição e ampliação da frota das empresas de carga geral, em investimentos e em financiamentos destinados à construção e ampliação dos estaleiros de construção naval”.
O boom do setor veio no início dos anos 70, mas as crises do petróleo e da dívida externa tiraram a competitividade dos estaleiros nacionais. A solução encontrada foi através de subsídios, que viraram escândalo de corrupção na década de 1980, na então Sunaman (Superintendência Nacional de Marinha Mercante), já extinta.
No governo Collor (1990-1992), foi autorizada uma abertura radical do setor ao mercado estrangeiro, o que resultou em praticamente a extinção de uma frota nacional.
O resultado, em números, foi uma participação de navios de bandeira brasileira de apenas 23,4% em 1993, sendo a de navios próprios de míseros 8,2% do mercado nacional. A queda continuou nos anos seguintes. Em 1995, a participação de navios brasileiros foi de 7,6%, e caiu para 5,4% no ano seguinte. Na navegação de longo curso (entre países diferentes), a frota mercante brasileira reduziu em quase 50% entre 1986 e 1995.
Estaleiros na Lava Jato
A partir de 1998, o Congresso restabelece com a lei de 9.432/1997 a proteção à cabotagem nacional, reservando-a apenas a empresas e navios nacionais. Novamente, houve tentativa de fomento ao setor ao longo dos anos gordos de 2000, utilizando-se o agora remodelado FMM (Fundo da Marinha Mercante).
Mas, relembrando o caso Sunaman, os investimentos resultaram em escândalos de corrupção, desta vez revelados pela Operação Lava Jato, que apontou corrupção na contratação de navios e sondas junto a estaleiros nacionais.
Com a crise provocada no setor, não houve a construção de navios em quantidade adequada para atender à demanda por cabotagem, na opinião do diretor da Secretaria de Portos, Dino Antunes. Segundo dados do governo, há 17 navios de cabotagem nacional de contêineres no país. Dezessete navios. Para Resano, no entanto, a quantidade de navios é a que atende ao mercado nacional e obedece a lei da oferta e da procura.
Obter navios não é algo simples. Os estaleiros nacionais não conseguem entregar todas as encomendas, mesmo com a proteção legal, além de seus preços serem mais caros que os dos principais concorrentes. E os navios comprados no exterior exigem pagamento de 50% do seu valor, à vista, na nacionalização, como taxa de importação.
Dino Antunes, diretor da secretaria, diz que será necessário alterar a lógica do FMM. Por ser um fundo constituído com recursos de clientes das empresas de navegação (que pagam uma taxa extra pelo frete para incentivar a manutenção e ampliação da frota), ele tem regras de uso que privilegiam a empresa de navegação que fez o frete.
Com isso, o fundo de R$ 10 bilhões acaba mantendo a lógica de concentração do mercado, já que a empresa que faz mais frete tem mais disponibilidade de recurso para financiar manutenção e compra.
“Esse é o nosso maior desafio. Que o fundo atenda o setor de construção, mas com foco na redução dos custos da cabotagem”, disse Antunes.
Regulação inadequada
Os poucos navios de cabotagem circulando no país também decorre, na avaliação do relatório do TCU, de a ANTAQ não fomentar a competição entre operadores e não reprimir a concentração de mercado na navegação de cabotagem de contêiner.
“Embora tenha conhecimento de que o mercado é dominado por três empresas, a ANTAQ não produz regulamentações no sentido de fomentar a competição entre os operadores visando a desconcentração de tal mercado”, escrevem os auditores.
A forma como essas três empresas trabalham no Brasil dá a dimensão da concentração. De acordo com o levantamento, a Aliança tem 50% do mercado. A empresa pertence ao grupo internacional Maersk, o maior operador de navegação do planeta.
Ainda segundo o relatório, a Aliança opera levando cargas, trazidas do exterior por navios do conglomerado Maersk, que ainda não foram desembaraçadas pela Receita Federal. Ou seja, a Maersk concentra a carga em um porto e a Aliança vai redistribuindo-a pelo país. A prática, legal, é chamada de feeder.
A Mercosul Line, com 26% do mercado, faz o mesmo com as cargas da sua controladora CMA CGM, outra grande operadora internacional. A terceira empresa do mercado, a Log In, com 24%, de acordo com o trabalho, faz o restante das cargas. O restante não chega a 1%. Para o TCU, não existe competição nesse serviço.
“Verificou a equipe que, nas navegações feeder, nas quais as empresas brasileiras transportam cargas de empresas controladoras ou parceiros comerciais estrangeiros, não existe, como regra geral, competição entre operadores brasileiros”, informa o texto, lembrando que o processo de verticalização está se ampliando, já que as empresas de navegação estão se tornando também operadoras de terminais portuários ao redor do mundo, fazendo com que o local para onde vão as cargas sejam de sua operação.
“Cada empresa tem seu nicho e atuação, baseado em contratos privados, que, por um lado, garantem carga às EBNs de cabotagem para prestar o serviço até o ponto de destino e, por outro, limitam o preço praticado nos fretes na costa brasileira, em razão do volume de carga envolvido”, segue o relatório que recomenda aos ministros que, num prazo de 180 dias, determinem que a ANTAQ elabore um estudo para fomentar a competição no setor. A recomendação precisa ser referendada pelo plenário do TCU para ter validade.
A junção de custos elevados e concentração de mercado cria situações de fato inusitadas. O frete de uma carga transportada pela costa brasileira chega a custar de 7 a 10 vezes mais do que a mesma carga saindo de Xangai, na China, e vindo para o Brasil, de acordo com a CNA.
Um exemplo é o óleo de palma, que é transportado a US$ 150 a tonelada do Pará a São Paulo, por meio do modal rodoviário. Pelo modal aquaviário, esse preço seria ainda mais caro, segundo a Confederação. A mesma mercadoria vinda da Malásia para o Brasil custa U$ 65 a tonelada.
Mercado não é atrativo, diz ANTAQ
Em nota à Agência iNFRA, a ANTAQ informou que destacou, em suas respostas ao TCU sobre a auditoria, que “no Brasil, ainda, não há um mercado atrativo para a navegação de cabotagem” e que os esforços da agência promovem “adequada atratividade, melhores resultados e estímulo para outros grupos ingressarem no setor”.
A nota também fala sobre um dos aspectos apontados pelo TCU, a falta de uma política setorial, atribuição do governo, e que a “ANTAQ tem dado total prioridade ao desenvolvimento da navegação de cabotagem”, relembrando das resoluções editadas nos últimos anos.
“Pode-se dizer a respeito das normas que elas foram dotadas de uma regulação cirúrgica e refinada, praticamente sem barreiras de entrada, servindo de estímulo às empresas que efetivamente estejam investindo em frotas que arvorem bandeira brasileira, assegurando aos usuários do setor a prestação do serviço adequado”, diz o texto.
Em recente audiência pública na agência, que tratava do tema de terminais portuários, o diretor-geral Mário Povia argumentou que a autarquia tem apanhado e que a regulação é muito incompreendida.
“É fácil taxar a agência de negligente quando em ela pode estar optando por não regular, seja pelo custo benefício da regulação, seja pela desnecessidade de regular. Não está dito em lugar nenhum que tem que regular tudo”, lembrou Povia dizendo que os recursos para a regulação são cada vez mais escassos no país. “Regulação é um processo que dura anos. A agência é nova ainda e estamos evoluindo.”
Concorrência ruidosa
Obviamente que, com uma concentração tão brutal, haveria de surgir concorrência mesmo para um mercado que a agência considera “não atrativo”. Como a solução não veio pelo governo, chegou pelo mercado, o que resultou numa ruidosa disputa que levou a cabotagem para as páginas policiais, com abertura de inquéritos para apurar possíveis crimes por agentes públicos na ANTAQ.
A Lei 9.432/97 estabelece que as EBNs (Empresas Brasileiras de Navegação) podem afretar navios estrangeiros quando não houver ou estiverem indisponíveis os de bandeira brasileira para cabotagem. Utilizando-se de embarcações herdadas de uma antiga companhia de seu pai, a Transnave, o empresário Abrahão Salomão, registrou uma EBN, a Posidonia Shipping.
A partir dessa EBN e de sistemas de alta capacidade de informação, começou a operar fazendo cabotagem também com navios estrangeiros que estão passando no país em regiões onde há cargas para serem transportadas. É a chamada consolidação de carga, uma espécie de Uber do transporte marítimo. Mas os concorrentes chamam de “empresa de papel”.
A fórmula resultou em forte pressão das companhias estabelecidas contra o que eles chamam de concorrência desleal e desrespeito à Resolução Normativa 01/2015 da ANTAQ, que estabelece as normas para a cabotagem no país. A Posidonia começou a ter suas cargas impedidas de trafegar e entrou com denúncias em órgãos como MPF, Cade e TCU.
Uma das denúncias tornou-se um inquérito da Procuradoria Federal no Rio de Janeiro que apura se houve crimes de servidores da ANTAQ em atos adotados pela agência contra a empresa. Até o momento, não houve denunciados à Justiça no caso.
Um depoimento de um dos diretores da agência, Adalberto Tokarski, referendou que havia pressão contra a empresa, no que foi retrucado pelo atual diretor-geral, Mário Povia, alegando esse que os servidores estavam cumprindo com o que determina a lei.
No TCU, a análise da denúncia resultou em uma medida cautelar do ministro Bruno Dantas restringindo a ANTAQ de aplicar partes da resolução. Dantas, em geral um ministro tranquilo, fez duras críticas à agência no dia da votação.
Na semana passada, o Ministério Público de Contas deu parecer nesse processo pela manutenção da Resolução 01/2015, entendendo que a ação é parte da discricionariedade da agência e não haveria ilegalidade na ação. O processo ainda depende de julgamento do plenário.
Competição complexa
As regras de competição na cabotagem, mesmo para o uso de embarcações estrangeiras, são complexas. A empresa que obtém um frete e não tem navio nacional para fazê-lo deve realizar uma consulta ao mercado, através do procedimento eletrônico na ANTAQ denominado “circularização”, para saber se há navios disponíveis.
Qualquer empresa brasileira de navegação que disponha do navio do tipo e porte adequados ao transporte pretendido pela empresa que vai alugar um navio estrangeiro pode oferecer o transporte. É o chamado “bloqueio à circularização”.
Há registros de empresas que mantêm embarcações brasileiras com o mínimo necessário e usam navios estrangeiros, chegando a cerca de 70% de suas frotas sendo de bandeira estrangeira. Essa é uma das principais queixas de empresas que buscam entrar no mercado de cabotagem e que não conseguem se desenvolver.
A Posidonia Shipping reclama que, em setembro de 2018, iniciou um processo de circularização a fim de consultar o mercado para o transporte de etanol em diversos portos do Brasil. Houve uma contestação de outra empresa de navegação, a Flumar. A alegação foi de que o afretamento da Posidonia seria feito por embarcação estrangeira e que a Flumar dispunha de embarcação de bandeira brasileira.
Em resposta, a Posidonia Shipping argumentou que a Cia de Navegação Norsul estava fazendo transporte com navio estrangeiro, no mesmo período, com entrega nos mesmos portos de Paranaguá (PR) e Rio de Janeiro (RJ), da mesma carga da Posidonia. Mas apenas a Posidonia foi bloqueada. A Posidonia acusou a Flumar de fazer um bloqueio seletivo a ela. No pedido de intervenção da Posidonia à ANTAQ no caso, a agência julgou correto o bloqueio.
A Posidonia relata que esse tipo de situação é recorrente não só com ela, mas com outras empresas que não fazem parte de um grupo de grandes corporações que dominam o mercado de cabotagem no Brasil.
O que diz o Syndarma
Luis Fernando Resano, o vice-diretor do Syndarma, diz que o problema dos novos entrantes não está na Resolução 01 da ANTAQ e sim na Resolução 05 – ou na falta de fiscalização dela. A Resolução 05 é a norma que prevê quais empresas podem operar como EBN, com necessidade de cumprimento de requisitos técnicos e econômicos.
Pelas normas da Resolução 05, a empresa deve “ser proprietária de pelo menos uma embarcação de bandeira brasileira que não esteja afretada a casco nu a terceiros, adequada à navegação pretendida e em condição de operação comercial; ou apresentar contrato de afretamento de embarcação de propriedade de pessoa física residente e domiciliada no país ou de pessoa jurídica brasileira, a casco nu, adequada à navegação pretendida e em condição de operação comercial, por prazo igual ou superior a um ano, celebrado com o proprietário da embarcação”.
“Tem empresa que vai lá e apresenta coisas que não são reais. Quem dribla a Resolução 05, vai lá e abusa na Resolução 01”, diz Resano, cobrando mais fiscalização da ANTAQ quanto ao cumprimento dos requisitos para ser EBN.
Segundo Resano, a falta de cumprimento desses requisitos coloca em risco usuários. Em casos de acidente com a carga, por exemplo, são necessários seguros de alto valor que, sem o cumprimento de requisitos econômicos, a empresa não teria como obter.
Sobre o sistema de circularização da carga, Resano diz que ele funciona adequadamente e que protege o usuário. Pela regra, o usuário não tem que pagar a mais se a empresa nacional fizer o bloqueio de um frete com navio estrangeiro que está passando no Brasil, explica.
Sobre o tema, ele também cobra mais agilidade da ANTAQ no que ele chama de “blefe”, ou seja, empresas que dizem ter uma carga para fazer quando há navios estrangeiros passando no porto mas que desistem do serviço quando um navio nacional se dispõe a transportar.
Burocracia setorial
Custos inadequados e falta de concorrência, de acordo com o TCU, se juntam a um outro problema para a cabotagem no país, a burocracia. De acordo com o relatório, a Receita Federal não reconhece documentos que poderiam facilitar a chamada multimodalidade, ou seja, quando uma mesma carga pode andar em diferentes meios de transporte com um mesmo documento.
“Os sistemas da Receita Federal do Brasil não reconhecem o Conhecimento de Transporte Multimodal de Cargas (CTMC), apesar de haver esforços para agilizar e reduzir os custos burocráticos na liberação de cargas por parte do órgão fiscalizador”, diz o trabalho.
Diante desta situação, a equipe técnica do TCU sugere determinar que o governo apresente estudo para o desenvolvimento da multimodalidade, “com estratégias e ações para superação dos entraves identificados”, diz o relatório.
Se, para quem transporta, a falta de um documento único atrapalha a velocidade com que a carga é transportada, para quem planeja o drama é outro. De acordo com o trabalho, os sistemas públicos de registro não falam a mesma língua, o que pode produzir dados equivocados sobre o transporte, além do que boa parte deles está sob sigilo por determinação da Receita Federal.
Falta de Política Setorial
Na crítica dos controladores, o ponto central dos problemas para a cabotagem está na falta de estabelecimento pelo governo de uma adequada política pública para o setor. O relatório é bem incisivo neste ponto:
“Não existe uma política pública de fomento à cabotagem no país”, diz o texto.
Há planos do governo para o setor de transportes, de acordo com o relatório, que sequer consideraram a cabotagem, como é o caso do recente PNL (Plano Nacional de Logística), apresentado em 2018.
Quando elaborado, o plano tinha intenção de privilegiar o investimento ferroviário no país. Mas a falta de dados para a cabotagem gerou números distorcidos que foram questionados por vários setores na época da apresentação do plano e levaram à sua revisão.
“Não existe no Brasil uma política pública voltada especificamente para atacar de maneira estruturada os problemas da navegação de cabotagem, o que vai de encontro às boas práticas de governança”, diz outro trecho do relatório, apontando que, mesmo quando há intenção de se fazer algo sobre cabotagem, nada tem sido operacionalizado.
Senso de urgência para o setor
O secretário nacional de Portos, Diogo Piloni, concorda com a avaliação do tribunal. Ele disse que, no momento, o governo trabalha em pontos que estão alinhados com o relatório do TCU, lembrando que está próximo de anunciar as medidas para o setor.
Um exemplo é como solucionar a diferença de preços entre o valor do combustível para navios estrangeiros e para os nacionais. Segundo ele, também será pedida ajuda ao Ministério da Economia para tentar igualar os custos de pessoal para a operação dos navios nacionais, que exige maior quantidade de tripulantes e tem regras mais rígidas para descanso, por exemplo. Outro ponto apontado no trabalho, a concentração em poucas empresas, também vai entrar em análise.
O secretário pondera que, para muitos casos, a lógica do transporte de navio, com necessidade de muita carga e longas distâncias, não atende a alguns tipos de usuários de forma adequada. Isso porque o tempo de transporte é lento, e, para cargas de alto valor agregado e baixas quantidades, as empresas preferem que os bens sejam transportados em caminhão ou até mesmo avião, por exemplo.
Mesmo assim, a aposta no setor de navegação é grande pelo atual governo. Resolver o problema da cabotagem no país poderia, na avaliação dos técnicos do ministério, elevar o patamar de qualidade de transportes no Brasil, retirando-o das indignas posições centenárias nos rankings mundiais que medem qualidade do transporte entre as nações.
Com a vantagem de que a necessidade de investimentos, seja com recursos orçamentários ou com financiamentos, é muito menor do que em outros modais. Afinal, são mais de 7 mil quilômetros de litoral e mais de 1,5 mil de vias fluviais navegáveis deixados pela natureza.
Cabotagem com o ministro
Nos dois primeiros meses do governo, os técnicos da Secretaria de Portos receberam mais de 10 empresas e tentam separar o joio do trigo nas reclamações dos usuários. O trabalho tem sido elogiado por diferentes segmentos do setor. Segundo Piloni, o relatório do TCU vai ajudar a despertar o que ele chama de senso de urgência para a questão.
“Navegação é algo de muita importância para o ministro Tarcísio de Freitas. Ele vai fazer uma viagem de navio para entender os reais problemas da cabotagem”, afirmou o secretário.
O temor entre os técnicos do TCU, ainda no início do trabalho, é de que o governo ataque apenas um dos lados do problema, os elevados custos setoriais. Sem o fomento à concorrência, uma política de ataque nos custos pode levar a resultados parecidos com os de outras áreas da infraestrutura, em que a falta de competição tem impedido uma efetiva redução de custos e melhoria de qualidade ao consumidor, que poderá ficar “a ver navios”.