Luiz Afonso dos Santos Senna*
Com a entrada em vigor do novo marco do saneamento, o Brasil dá um salto civilizatório fundamental para o desenvolvimento. Saneamento básico, assim como energia, transportes e comunicações, entre outras utilities, compõe o setor de infraestrutura, qual seja, a base sobre a qual a economia acontece.
As concessões de serviços públicos para entes privados existem na Europa desde o século XIX, tendo sido utilizadas tanto em decorrência de falta de capital quanto de mão de obra. As concessões são capazes de contribuir para a melhoria da situação fiscal, para aumentar investimentos na infraestrutura, para estimular o lucro através do reinvestimento e para aumentar a qualidade dos serviços.
No caso de infraestrutura, uma de suas caraterísticas básicas é o fato de serem redes, exigirem coordenação e planejamento, e que possuem custos enterrados (sunk costs), o que determina que, nesses casos, a competição ocorra pelo mercado e não no mercado.
Os princípios econômicos básicos que justificam a realização da competição pelo mercado foram inicialmente identificadas por Chadwick (1859)1, reproduzidos também em Senna e Michel (2006)2.
Chadwick discutiu a base de competição pelo mercado, vis-à-vis a competição dentro do mercado. Demsetz (1968)3 também apresentou uma contribuição importante para a compreensão dos processos licitatórios de franquias. Conforme Demsetz, a teoria do monopólio natural não revela as etapas lógicas que transportam desde economias de escala na produção até os preços de monopólios no mercado. O ponto básico é que pode ser possível ter uma licitação pelo direito de atender à totalidade da demanda.
O estudo de Chadwich foi lido diante da Statistical Society de Londres em 1859, endereçando a questão básica do benchmarking, ao continuamente comparar o desempenho dos dados ingleses com os dados de outros países europeus. A análise de Chadwick claramente mostra a necessidade de identificar as causas para diferentes resultados contra a posição inglesa em relação às condições de saneamento. Princípios legislativos e administrativos deficientes foram apontados, mas o defeito principal, a partir do qual os demais surgiram, foram as deficiências dos princípios e da ciência econômica, ou, segundo as palavras de Chadwick:
“..a ignorância pública de que existem diferentes condições de competição – sadias e não sadias; que enquanto existem condições de competição que asseguram à população o serviço mais responsável, o mais barato e o melhor, e que são requisitos para melhorias da maior magnitude, existem condições de competição que criam inevitáveis perdas e insegurança quanto à propriedade, as quais aumentam os preços e põem em cheque melhorias, os quais engendram fraudes e violência, e sujeitam a população a monopólios irresponsáveis da pior sorte”.
Quando examinando as condições sanitárias da população urbana, Chadwick encontrou distritos na Inglaterra onde existiam duas ou três canalizações para distribuição de água transportadas por ruas que poderiam ser melhor servidas apenas sob um único ofertador, e a competição acabando em monopólios, com oferta deficiente, cobranças elevadas, com baixos dividendos para os acionistas e uma quase impraticabilidade de melhorias em suas condições separadas sem aumentar a já excessiva cobrança dos usuários, ou maiores reduções dos já baixos retornos dos investidores. Chadwick denominou esse tipo de competição de “competição dentro do campo de serviço”. Como oposição a essa forma de competição, Chadwick propõe como um princípio administrativo a competição “pelo campo de serviço”, ou, em outras palavras, o campo de serviço como um todo deve ser colocado para competição. Chadwick acreditava que esta última era a única condição na qual a eficiência, assim como as formas mais baratas, seria praticável, caso em que a posse do mercado inteiro seria de uma única firma. Sob essas circunstâncias, poderia ser mais eficiente e administrado economicamente por uma única entidade, com plena segurança para desempenhar os serviços requisitados durante um determinado período.
Para Viscusi et al (2000)4 a força motivadora das propostas pela franquia é a competição ex ante na etapa de licitação, que mantém o preço e o lucro em níveis competitivos. Assim, a competição ex ante substitui o papel da competição ativa na indústria.
Os mesmos princípios discutidos para o saneamento são válidos para a maioria das indústrias de rede, que incluem as várias infraestruturas. Neste contexto, as agências reguladoras desempenham um papel fundamental de regulação do mercado e de preservação do equilíbrio econômico-financeiro dos contratos de prestação de serviços.
As agências reguladoras são órgãos criados por leis específicas na condição de autarquias especiais, dotadas de autonomia administrativa, financeira e patrimonial. A independência tem um significado mais abrangente, visto que também pressupõe a harmonia com a estratégia e o funcionamento dos demais órgãos da máquina de estado, dos vários poderes: Executivo, Legislativo e Judiciário, assim como de seus órgãos de acompanhamento e controle.
Ao regular mercados, as agências devem atuar de forma equidistante em relação aos interesses dos vários stakeholders: consumidores, prestadores dos serviços concedidos e do próprio Poder Executivo, de forma a evitar eventuais pressões conjunturais.
Acabo de assumir o cargo de conselheiro-presidente da AGERGS, uma agência que regula múltiplos mercados (saneamento, transporte de passageiros, e rodovias, entre outros). A AGERGS possui uma vasta experiência, que lhe deu a capacidade de permanentemente aprender e se adaptar ao novo. Essa é uma condição fundamental para a preservação do equilíbrio econômico-financeiro de contratos de longa duração, como os de serviços públicos delegados, que passam por vários períodos de governo, vários ciclos econômicos e tecnológicos, assim como permanentes mudanças sociais e culturais.
A sociedade deve demandar da atuação das agências um alto nível de competência, credibilidade e isenção. Para os consumidores e a própria sociedade, a atuação da agência deve estar voltada primordialmente para: garantia dos seus direitos, devidamente explicitadas em regulamento e nos contratos de concessão de serviços públicos; prática de tarifas ou preços justos; melhoria contínua da qualidade do serviço e do atendimento prestado pelos concessionários; desenvolvimento tecnológico e práticas eficientes que contribuam para a modicidade tarifária; proteção ao meio ambiente; implementação das políticas setoriais como a universalização dos serviços; e atuação eficiente, de forma a aproximar a ação reguladora dos consumidores.
Para os investidores e operadores (concessionários), a atuação da agência reguladora deve repercutir em: regras claras e estáveis; remuneração adequada de seus investimentos, que devem estar consubstanciados em fluxos de caixa claramente definidos nos contratos de concessão; e cumprimento dos contratos e dos regulamentos.
Para que essas expectativas se configurem, é necessário que a agência atue de forma a assegurar: equilíbrio de interesses (neutralidade); tratamento isonômico; prestação de contas; transparência; imparcialidade; gestão ágil e eficiente; diálogo e comunicação permanente com todos os segmentos que interajam com o setor regulado.
É fundamental também que a agência se faça compreender pela sociedade, bem como buscar reduzir e eliminar a assimetria de informação existente entre consumidores e entes regulados no processo de participação na atividade regulatória.
Por fim é fundamental que a agência disponha de mecanismos eficientes de transparência, propiciando ampla visibilidade e compreensão das ações regulatórias, dada a heterogeneidade existente na sociedade em termos de recursos e conhecimentos.
Algumas palavras-chave devem acompanhar permanentemente as decisões colegiadas de nossa agência e dos entes regulados: governança; compliance; ética; eficiência de gestão; competência; equidistância dos vários stakeholders; busca permanente de aperfeiçoamento; transparência; mercados eficientes; respeito aos contratos; sustentabilidade; equilíbrio; serenidade; credibilidade (que significa, entre outras coisas, assegurar aos investidores, consumidores, governo e sociedade em geral, de forma inequívoca, o compromisso com o pleno cumprimento dos contratos); e, por fim, senso de justiça.
O tratamento inteligente da área de infraestrutura, com base na racionalidade e no uso de incentivos econômicos eficientes propiciará formas sustentáveis de promover o desenvolvimento econômico e social.
Que os novos e bons ventos nos conduzam.