Amanda Pupo, da Agência iNFRA
Os juízes brasileiros devem ter à disposição a partir do próximo ano uma plataforma com informações sobre a malha aérea dispostas de forma simples e “amigável”, que os ajudem na tomada de decisão em processos contra companhias de aviação. Em desenvolvimento numa parceria entre ANAC (Agência Nacional de Aviação Civil) e CNJ (Conselho Nacional de Justiça), a estratégia faz parte da agenda de enfrentamento ao alto índice de judicialização contra as aéreas no Brasil, parte da chamada “agenda de custo” que, segundo o setor, impede preços mais acessíveis e a entrada de novas empresas no mercado doméstico.
A reguladora também promete atuar para evitar a quantidade excessiva de ações que chegam à Justiça, com possível revisão da Resolução 400. O normativo trata das condições gerais do transporte aéreo e estabelece as obrigações das empresas e os direitos dos passageiros. “Nós estamos numa fase agora de de tomada de subsídio, mais informal, de ouvir, de conversar com as companhias aéreas, para poder entender qual é a dor”, disse à Agência iNFRA o diretor-presidente da ANAC, Tiago Faierstein, que já tinha tocado no tema numa entrevista em agosto deste ano, após ser nomeado para o cargo.
Já a plataforma partiu do diagnóstico de que os dados enviados pelas companhias, que municiam o Judiciário em processos referentes a atrasos e cancelamentos, são, muitas vezes, de leitura e compreensão difíceis, tornando o argumento das aéreas menos palatável para a decisão judicial.
“Em qualquer ação que nós tomarmos aqui, nós não estamos querendo inviabilizar o direito constitucional do viajante, do consumidor, de entrar na Justiça. O que nós queremos é que isso seja feito de maneira responsável. Ao se criar uma indústria de judicialização, um ecossistema, começa-se a banalizar as ações e tornar os questionamentos irresponsáveis”, comentou Faierstein, lembrando, por exemplo, da prática em que o consumidor vende a escritórios ou advogados seu direito de judicializar uma causa.
A princípio, a plataforma que a ANAC está desenvolvendo – e que nesta semana deve ficar disponível para teste de alguns juízes – não vai apresentar uma certidão para atestar a causa do que motivou o cancelamento ou atraso, pela agência, do problema enfrentado pelo passageiro, o que pode ser desenvolvido num segundo momento.
Nessa primeira fase o foco será dar ao magistrado um panorama de informações de maneira acessível, a partir do cruzamento de uma série de banco de dados já existentes da ANAC e do DECEA (Departamento de Controle do Espaço Aéreo), explicou à reportagem o superintendente de Acompanhamento de Serviços Aéreos da ANAC, Adriano Miranda.
Segundo ele, na plataforma vão constar informações como: horário previsto e efetivamente operado; horário de pouso e decolagem; condições meteorológicas; justificativas apresentadas pelas companhias para o caso de atraso e cancelamento; informações gerais sobre ocorrências nos aeroportos, como fechamento de pistas (ex, colisão de pássaros) entre outros dados; sobre o trajeto da aeronave no longo do dia; e condições operacionais dos aeroportos de origem e destino.
“E num formato amigável”, comentou Miranda. Embora a plataforma esteja prevista para estrear oficialmente em 2026, o superintendente avalia ser possível a disponibilização ao Judiciário ainda neste ano.
A ferramenta foi prevista por um ACT (Acordo de Cooperação Técnica) assinado em setembro pela ANAC, CNJ e a Secretaria de Aviação Civil do MPor (Ministério de Portos e Aeroportos). Ele também projeta outras iniciativas, como produção de estudos, organização de eventos e promoção de ações educacionais, como campanhas, oficinas e capacitações. Um dos planos, por exemplo, é ter um diagnóstico mais preciso de qual tipo de demanda mais é apresentada ao Judiciário, se são atrasos, cancelamentos ou outros tipos de incidentes.
A alta judicialização no país é atribuída à possibilidade dos passageiros processarem as empresas aéreas por danos morais sem que tenham que necessariamente provar um dano efetivo, o que possibilita o que é chamado de indústria de judicialização, com ações automáticas contra as companhias por atraso ou cancelamentos. As companhias argumentam que não poderiam ser punidas por atrasos que não foram causados diretamente por ela, como os que ocorrem por condições climáticas ou de segurança operacional.
Brasil lidera judicialização
Dados da Abear (Associação Brasileira das Empresas Aéreas) apontam que o Brasil responde por 95% das judicializações contra companhias aéreas em todo o mundo. Como consequência, as empresas aéreas nacionais projetam gastar aproximadamente R$ 1,2 bilhão neste ano apenas com o pagamento de indenizações judiciais. Segundo a entidade, a taxa de judicialização no Brasil cresceu 190% de 2020 a 2024.
“É crucial notar que esse aumento ocorre em um período em que os padrões de serviço da indústria no país se mantiveram entre os mais altos globalmente. Nesses quatro anos, a aviação comercial registrou uma média de pontualidade e regularidade de 90% e 97%, respectivamente, indicadores equivalentes aos padrões registrados, por exemplo, nos dos Estados Unidos”, disse a Abear em nota.
Ainda segundo a associação, a maior parte das condenações contra companhias aéreas está relacionada a danos morais, cuja comprovação objetiva não é exigida pela legislação em vigor. “Essa lacuna legal estimula um cenário de insegurança jurídica e o ajuizamento oportunista de ações contra o setor. É fundamental ressaltar que a maior parte dos cancelamentos de voos ocorre por questões atreladas à segurança operacional, que representa um pilar inegociável para todas as companhias aéreas”, completou a entidade.
Miranda, da ANAC, reforça que um dos grandes incômodos da indústria de aviação são as ações por dano moral, já que o país tem baixos índices de atraso e cancelamento, o que, paradoxalmente, gera para o passageiro uma percepção comparativa negativa quando o itinerário sai fora do previsto.
Do começo do ano até agora, menos de 2% dos voos foram cancelados e os atrasos superiores a 30 minutos giram em torno de 6%. “É um sistema confiável. Aí a pessoa confia nisso e marca, por exemplo, uma reunião para um hora depois que ela pousaria, viaja no mesmo dia que teria um evento importante”, exemplificou o superintendente a cultura que leva o passageiro a pedir indenizações por dano moral.
Pré-judicialização
“Companhia aérea não vem por amor, vem por negócio. Então ela tem que ter um ambiente saudável, uma economia estável, uma judicialização baixa”, comentou o diretor-presidente da ANAC sobre as reclamações de que o mercado é muito concentrado no Brasil e as passagens são caras. Um dos principais motivos que afastam novas companhias de entrar no país é a judicialização.
Recém-empossado no cargo, Faierstein diz que toda atuação que a reguladora terá para reduzir a judicialização excessiva vai se pautar por, ao fim da cadeia, reduzir o custo do ticket aéreo. É com essa mensagem que a agência vai trabalhar para também sensibilizar o Congresso, afirmou.
Dentro da reguladora, um dos focos será a revisão da Resolução 400. Os diretores estão fazendo consultas informais com as aéreas para tratar do assunto, assim como a área técnica vem estudando como é possível atualizar o normativo para enfrentar o problema do alto número de processos na Justiça.
“Não significa que a gente vai tirar do consumidor certos direitos. O problema é a indústria, não é o direito do consumidor em judicializar, em ter o código de defesa do consumidor, ter a sua possibilidade do contraditório”, disse o diretor-presidente, segundo quem a agência vai “comprar a briga” para reduzir a judicialização, agenda que tem apoio do MPor, mesmo sendo uma “decisão difícil” que invadirá o calendário eleitoral.
“Pode parecer impopular num primeiro momento, mas [é uma agenda] com perenidade de redução de custo, de atração, de melhoria de competitividade, de segurança econômica para outras companhias aéreas entrarem no Brasil”, disse o diretor-presidente.
Resposta no STF
Há um processo que tramita no STF (Supremo Tribunal Federal) que pode, a depender da decisão da Corte, dar respostas a questões que a ANAC estuda para revisões internas e também de legislação. Em agosto, o tribunal reconheceu a chamada repercussão geral de uma ação da Azul (ARE 1560244) que discute a responsabilidade das companhias aéreas por cancelamento, alteração ou atraso de voos.
Ao definir que o caso tem repercussão geral, o entendimento que a corte terá nesse processo vai ser espelhado nas ações judiciais de todo o país. O caso discute se essa responsabilidade da empresa deve ser regida pelo CBA (Código Brasileiro de Aeronáutica) ou pelo CDC (Código de Defesa do Consumidor), “considerando o princípio da livre iniciativa e as garantias de segurança jurídica, de proteção ao consumidor e de reparação por dano material, moral ou à imagem”.
A discussão chegou ao Supremo porque a Azul foi condenada em instâncias inferiores a indenizar passageiro por danos materiais e morais em razão de alterações e atrasos no itinerário de um voo. Ao STF, a companhia argumentou que o CBA deveria prevalecer sobre as normas de proteção ao consumidor. O primeiro afasta a responsabilidade civil do transportador por atrasos decorrentes de caso fortuito ou de força maior, como em situação de condições meteorológicas adversas.
Ao votar para que o caso tivesse repercussão geral, o ministro Luís Roberto Barroso apontou que o Brasil convive com um “índice elevadíssimo” de judicialização no setor aéreo, cenário que, em sua avaliação, gera insegurança jurídica, cria obstáculos para o desenvolvimento econômico e onera os custos da atividade no país. “Cuida-se, pois, de matéria com repercussão geral, sob todos os pontos de vista (econômico, político, social e jurídico), em razão da relevância e transcendência dos direitos envolvidos”, escreveu o ministro. Ainda não há data para o caso ser julgado no STF.








