Análise: TCU deixa porta aberta para que contratação total dos 8 GW não seja levada adiante

Roberto Rockmann*

O relatório do TCU (Tribunal de Contas da União) e o voto do ministro Benjamin Zymler criam várias incertezas em relação ao andamento da contratação dos 8 GW de térmicas a gás natural com 70% de inflexibilidade, como estipulado pela Lei 14.182/2021, que autorizou a capitalização da Eletrobras. Deixam-se portas abertas para que o processo não seja levado adiante por colocar algumas considerações que poderão levar a futuros questionamentos.

Destaca-se em vários trechos, seja do relatório, seja do voto, que o processo poderá ser conduzido, mas que, ao se levá-lo adiante, correm-se vários riscos, como o de onerar ainda mais a tarifa, já que não há demanda para tanto e consequentemente pode-se aumentar a sobrecontratação das distribuidoras.

Ressalta-se ainda que a contratação imposta pela lei não foi embasada em estudos técnicos, ambientais ou tarifários. Isso abre a porta para eventuais questionamentos futuros se os gestores públicos forem adiante porque a decisão traria aumentos de custos aos consumidores.

No relatório, propõe-se comunicar à Comissão de Fiscalização Financeira e Controle da Câmara dos Deputados e ao MME (Ministério de Minas e Energia) “que a aplicação do §1º do art. 3º do Decreto 11.042/2022, sem que os estudos a que se refere o art. 6º do Decreto 6.353/2008 indiquem a efetiva necessidade de contratação de energia de reserva para garantia de suprimento do sistema elétrico, possui potencial de causar prejuízo aos consumidores, em razão do seu conflito com os princípios que regem a Administração Pública em geral e o setor elétrico brasileiro”.

Os leilões poderão onerar as tarifas e “podem não estar aderentes ao planejamento setorial e aos princípios legais e constitucionais que regem a Administração Pública e o Setor Elétrico Brasileiro, em especial o da eficiência e modicidade tarifária”.

Já o voto do ministro Benjamin Zymler ressalta por sua vez recomendações ao Ministério de Minas e Energia sobre essa contratação: de “possibilidade jurídica de ultrapassar a sua literal determinação”, uma vez que ela pode ser prejudicial ao consumidor de energia do país.

Essas orientações surgem porque “a contratação do montante total determinado pela Lei 14.182/2021 não tem respaldo em necessidade sistêmica na forma de energia de reserva: constatou-se que, atualmente, não existe estudo oficial indicando a necessidade sistêmica para contratação de 8.000 MW de térmicas na modalidade energia de reserva para início de suprimento no horizonte de 2026 a 2030, previsto na Lei 14.182/2021, pois, segundo estudos desenvolvidos pelos órgãos envolvidos, nomeadamente a EPE [Empresa de Pesquisa Energética], a necessidade do sistema para energia de reserva, para início de suprimento em 2026 a 2030, é de aproximadamente 2.200 MW médios”.

O TCU ressalta que o Poder Legislativo ocupou espaço que pela lei é da EPE. No relatório, está descrito que “identificou-se carência de estudos quanto às consequências tarifárias e ambientais da contratação: no que se refere aos impactos tarifários e consequências ambientais do comando legal de contratação de 8.000 MW de termelétricas movidas a gás natural, não houve estudos oficiais a respeito. Verificou-se que as emendas à MPV 1.031/2021, convertida na Lei 14.182/2021, não foram objeto de estudos prévios ou posteriores por parte dos órgãos do Setor Elétrico Brasileiro. Tais demandas foram inseridas pelo Poder Legislativo a despeito do planejamento setorial”.

Para Edvaldo Santana, ex-diretor da ANEEL e ex-presidente da Abrace (Associação Brasileira dos Grandes Consumidores), o TCU fez o que podia fazer. “Mas disse que a lei é constitucional, porém a contratação tem grandes chances de ser danosa. E será”, analisou. “Naqueles itens que o TCU utiliza, são alertados diversos aspectos já divulgados em artigos e em relatórios especializados há um bom tempo. E é ali que o TCU põe o problema no colo do MME e da ANEEL, que ficam em situação difícil, pois, ninguém é obrigado a cumprir orientações e ordens erradas, muito menos quando foram objetos de alertas”, complementa. 

STF e ADIs
No relatório, aponta-se que ainda existem quatro ADIs (Ações Diretas de Inconstitucionalidade) que questionam a Lei 14.182/2021 no STF (Supremo Tribunal Federal): ADI 6929, ADI 6932, ADI 7033 e ADI 7167. Os principais questionamentos delas referem-se à inclusão de emendas de matérias estranhas ao texto original encaminhado pelo Executivo Federal.

Uma outra crítica presente nas ações diz respeito à técnica legislativa aplicada no §1º do art. 1º da Lei 14.182/2021, que contempla uma extensa redação, contendo tanto a matéria voltada à privatização da Eletrobras quanto à relativa à construção das térmicas a gás (apelidada pelos empresários nos bastidores de emenda “à la Saramago”, referência ao autor português que escrevia em períodos longos, ela não foi separada por vírgulas para evitar que pudesse ser vetada pelo presidente).

No relatório, o TCU destaca que “a avaliação quanto à inconstitucionalidade da Lei 14.182/2021 e a existência de possível violação ao princípio da separação dos Poderes cabe ao STF”, o que é visto por especialistas como outra janela de derrubar a contratação, se o processo for visto pelo STF antes da execução dos leilões.

Ao analisar os recados dados no material, ficam algumas perguntas: o governo Lula vai contra a contratação mesmo com a economia em possível recessão e a crise político institucional? Como ficará a relação com o Centrão? Se for adiante, os responsáveis pela condução do processo não temerão correr riscos futuros?

*Roberto Rockmann é escritor e jornalista. Coautor do livro “Curto-Circuito, quando o Brasil quase ficou às escuras” e produtor do podcast quinzenal “Giro Energia” sobre o setor elétrico. Organizou em 2018 o livro de 20 anos do mercado livre de energia elétrica, editado pela CCEE (Câmara de Comercialização de Energia Elétrica), além de vários outros livros e trabalhos premiados.

As opiniões dos autores não refletem necessariamente o pensamento da Agência iNFRA, sendo de total responsabilidade do autor as informações, juízos de valor e conceitos descritos no texto.

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