Marco Aurélio Barcelos*
Já se viu que o ano de 2023 trouxe conquistas e avanços importantes para a agenda das concessões de rodovias no Brasil. Existe, além do mais, a expectativa de que o setor duplique de tamanho no horizonte próximo, mobilizando bilhões de reais. Só o Ministério dos Transportes prevê realizar até 13 leilões em 2024, com investimentos da ordem de R$ 120 bilhões, havendo, ainda, outros R$ 110 bilhões que adviriam dos processos de otimização dos contratos em crise, no âmbito da Secex Consenso do TCU (Tribunal de Contas da União). Poucos mercados no país serão capazes de impulsionar o volume de recursos relacionados às rodovias brasileiras, e o Brasil caminha para se tornar líder mundial em concessões rodoviárias. Essa, sem dúvida, é uma notícia positiva. Contudo, ela pressupõe o enfrentamento de grandes desafios para poder se tornar realidade.
A quantidade de projetos em carteira, não só no plano federal, mas no nível infranacional (lembrando que, entre outros, São Paulo, Rio Grande do Sul, Mato Grosso do Sul e Minas Gerais anunciaram novos pacotes de concessões) traz à tona a questão da atratividade dos leilões. A existência de tantas oportunidades de negócios suscita a pergunta sobre se haverá suficiente atores para atender a tudo o que ocorrerá.
É bem verdade que os governos têm se mostrado sensíveis a esse contexto, buscando construir fórmulas para melhorar a sustentabilidade financeira dos projetos e o apetite dos possíveis licitantes. A modernização da matriz de riscos dos contratos de concessão e as ações regulatórias empreendidas, especialmente no campo federal (Nova Política de Outorgas, o RCR etc.), são bons demonstrativos disso.
Entretanto, remanescem fronteiras a desbravar, cuja superação será crucial para o ano de 2024 e a robusta agenda de concessões rodoviárias que ele concentra. Dois aspectos, nesse particular, sobressaem no horizonte dos projetos futuros: o custo médio ponderado de capital aplicável às concessões do setor (no jargão: o “WACC”, de “weighted average capital cost”); e a precificação dos investimentos – que há anos é objeto de discussão.
Sobre o primeiro, tem-se a percepção do mercado de que as taxas internas de retorno das concessões de rodovias estariam insuficientes para estimular o direcionamento de capitais para os novos projetos. O WACC regulatório sinaliza, em alguma medida, o valor da concessão, dado um conjunto de premissas em um determinado contexto. É certo que o custo de oportunidade de quem investe depende da assimilação que cada um faz da relação retorno/risco da iniciativa. Pois o que se tem entendido, na atualidade, é que os riscos das concessões de infraestrutura rodoviária no País estão elevados em face da remuneração que um empreendimento do tipo (que é profundamente complexo) possa prover. A corroborar o entendimento, vale citar, entre outras, as ocorrências climáticas e geológicas extraordinárias recentes (entre inundações e deslizamentos de encostas), que agravam a situação.
Frente a esse cenário, a boa notícia é que a ANTT (Agência Nacional de Transportes Terrestres) sinalizou estar engajada em promover a revisão do WACC para o setor rodoviário, ainda este ano. Logo, o desafio a se enfrentar parece ser menos o de se revisitarem os parâmetros do custo médio ponderado de capital dos projetos (trazendo as balizas até então adotadas para patamares mais razoáveis) e, sim, promover os ajustes necessários o quanto antes, a fim de permitir que eles sejam aproveitados nos leilões marcados já na primeira metade de 2024.
Em outro polo, quanto ao tema “precificação dos investimentos”, o problema reside na inadequação dos custos referenciais utilizados nas concessões para se definir, por exemplo, o valor das obras de melhorias, restauração, ampliação das vias etc. (o “Capex”, da expressão em inglês “capital expenditure”). Tradicionalmente, a estruturação dos projetos de engenharia e os Evtea (estudos de viabilidade técnica, econômica e ambiental) das concessões de rodovias tomam como base referências provenientes de sistemas oficiais, especialmente o Sicro (Sistema de Custos Referenciais de Obras), elaborado pelo DNIT (Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes).
Com efeito, é equivocado interpretar o Sicro como uma tabela, cujas composições de custos seriam cláusula pétrea oponível aos órgãos públicos responsáveis pelo planejamento de obras – assim como à própria ANTT. O Decreto nº 7.983/13, que traz regras para a elaboração dos orçamentos de referência de obras públicas e serviços de engenharia, já admite, no art. 8º, as devidas exceções às referências daquele sistema.
Ainda assim – e mesmo com consensos sobre as distorções decorrentes do uso do Sicro no ambiente das rodovias concedidas (os fatores de produtividade sendo, talvez, os mais ilustrativos) –, a verdade é que não se conseguiu até o momento validar uma alternativa que traduzisse melhor o dimensionamento dos custos das obras nas concessões. E o resultado: o subdimensionamento dos valores do capex nos Evtea dos projetos concessórios – o que, na ponta do lápis, impacta o cálculo de viabilidade do negócio (ele custará muito mais do que é mostrado) e afugenta investidores.
É importante evoluir com a construção de uma fórmula eficaz e definitiva sobre o problema, o quanto antes. Para tal, vários atores devem atuar de forma articulada (ANTT, Ministério dos Transportes, Infra S.A. e o próprio DNIT), não podendo se esquecer do TCU e do setor privado. O ano de 2024, com a vigorosa carteira de leilões que carrega, terá de ser capaz de dar conta dessa tarefa.
Afora o tema da atratividade dos novos leilões, outro assunto a ser acompanhado nos próximos meses são as otimizações dos contratos em crise, sob o rito da Instrução Normativa 91 do TCU, que criou a Secex Consenso. A conclusão dos primeiros processos nessa seara servirá de precedente histórico, solidificando o paradigma do consensualismo e reforçando conceitos e princípios inovadores que haviam sido antecipados na LINDB (Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro). Para concessões que atravessavam, por exemplo, o caminho difícil e em alguns casos desacreditado da relicitação, será possível alcançar soluções definitivas e viabilizar uma onda adicional de investimentos na malha rodoviária no curto espaço de tempo.
Também a pauta tecnológica trará novidades no ano a acompanhar. O free-flow, tornado realidade em rodovias federais e estaduais, deverá aparecer em mais trechos. Aguarda-se, além disso, aprimoramentos normativos para o instituto (até como resultado do 1º “sandbox” regulatório da ANTT), o que pressupõe a revisita à Resolução nº 984 do Contran (Conselho Nacional de Trânsito), com a extinção, especialmente, daquilo que se previu como infração continuada por duas horas, que traz disfuncionalidades operacionais graves, além de ser uma válvula de escape para a frustração de receitas tarifárias. Em paralelo, devem começar a ser testadas ferramentas tecnológicas mais sofisticadas para facilitar a vida dos usuários, ampliando os mecanismos de pagamento do pedágio sob o sistema de livre passagem. Tais ferramentas tanto poderão vir na forma de um portal único de acesso, quanto poderão incluir novas funcionalidades na Carteira Digital de Trânsito, fazendo com que os usuários, por exemplo, acessem diretamente canais de pagamento válidos para liquidar as tarifas em aberto.
Sob o mesmo contexto tecnológico, esperam-se os resultados do “sandbox” regulatório da ANTT sobre a pesagem em movimento, que tende a revolucionar a forma de fiscalização do limite de peso nas rodovias brasileiras. Com os dados a serem consolidados, será possível identificar a necessidade de alterações normativas para o funcionamento da metodologia, assim como confirmar a viabilidade técnica do aparato tecnológico disponível hoje.
Em outro frente, seguem como desafio para 2024 as respostas aos efeitos da Covid-19. Aguardam-se soluções definitivas para os desequilíbrios desencadeados pela pandemia, tanto em relação à demanda (é o caso que tramita na Artesp – Agência de Transporte do Estado de São Paulo, já em fase de definição do método de cálculo), quanto em relação ao estouro do preço dos insumos para as obras rodoviárias (que vem sendo discutido, por exemplo, na Agergs – Agência Estadual de Regulação dos Serviços Públicos Delegados do Rio Grande do Sul e na própria ANTT).
Sobre possíveis desequilíbrios, além do mais, a promulgação recente da Reforma Tributária intensificou alguns alertas: a não-inclusão dos contratos de concessão de rodovias no âmbito dos regimes específicos de tributação constantes do art. 156-A, § 6º, VI, da Constituição Federal, fez com que a leis complementares regulamentadoras do assunto se tornassem algo crítico para o ano.
Com efeito, o possível aumento das alíquotas efetivas em concessões de infraestrutura por força das novas regras aprovadas induz à priorização dos processos de reequilíbrio econômico-financeiro dos contratos afetados. No setor de rodovias, antevê-se impacto da ordem de 98% sobre a carga a ser suportada por algumas concessionárias, circunstância que exigirá providências regulatórias céleres para atenuar o efeito sobre o caixa e evitar, até mesmo, o comprometimento da higidez financeira dos projetos. Mais que a mera priorização dos reequilíbrios, na verdade, deve-se cristalizar o emprego de medidas cautelares ou antecipatórias, fixando-se prazos para que elas ocorram, a fim de afastar a inércia dos poderes concedentes ou dos reguladores em todo o Brasil.
Também sobre o tema, será crucial aprofundar as discussões sobre os demais aspectos operacionais da tributação pós-reforma, tal como a definição do fato gerador e da base de cálculo para os investimentos em infraestrutura; a desoneração de investimentos de bens de capital; a forma e o prazo para o ressarcimento de créditos acumulados etc. Todos esses itens informarão a elaboração das leis complementares, cuja edição é esperada em 2024.
Outro tópico emergente, e que vale o registro, refere-se à pauta da sustentabilidade. Já se tem verificado, nas concessões de rodovias, significativa evolução liderada por grupos empresariais relativamente à assunção de metas de descarbonização e neutralidade, bem como de diversidade e inclusão. A tendência, em 2024, é a amplificação desses compromissos por um número cada vez mais representativo de concessionárias, com diretrizes estabelecidas de forma voluntária dentro do próprio setor, ou indicadas pelos órgãos reguladores (destaque sendo dado à ANTT, que inseriu a temática de forma contundente na sua agenda).
No mesmo contexto, sobreleva a tarefa de pensar a resiliência das concessões rodoviárias em face de acontecimentos naturais adversos (cuja incidência, como observado, vem se pronunciando). É desejável, portanto, revisitar a matriz de riscos dos negócios concessórios, buscando integrar o tratamento das intercorrências caracterizáveis como extraordinárias aos elementos ambientais do clausulado padrão dos contratos. Uma vez que tais intercorrências extraordinárias não são previsíveis e não podem ser computadas nas propostas de potenciais licitantes, o ideal é já deixar claro que a superveniência delas ensejará reequilíbrio econômico-financeiro contratual (o que abreviará custos de transação e afastará a seleção adversa).
Em idêntica direção, é oportuno amplificar o trabalho de varredura sobre o grau de exposição dos ativos rodoviários na atualidade, frente às mudanças climáticas, a fim de conceber um plano de novos investimentos para as concessões em curso, orientados a antecipar e prevenir desastres. O rol de novos investimentos, nesse panorama, poderia compor uma política pública específica, objeto de maturação no ano corrente.
E por falar em pauta ambiental, não se pode deixar de comentar os processos de licenciamento pendentes. Mencionou-se, acima, que vários projetos serão levados a leilão nos próximos meses. Para além deles, é importante lembrar dos projetos que já estão contratados e cujas obras, para avançar, requerem a expedição das licenças estabelecidas na legislação. Diante desse panorama, tanto a Secretaria Especial para o Programa de Parcerias de Investimentos da Casa Civil da Presidência da República, quanto o Ministério dos Transportes, cumprem papel central na tutela e na coordenação dos cronogramas em curso. Em São Paulo, é a Cetesb (Companhia do Estado de São Paulo) quem se incumbe da pauta, sendo pertinente registrar a modernização que a entidade vem realizando sobre a legislação ambiental paulista, com o intuito de assegurar o licenciamento dos ativos rodoviários naquele estado.
Ainda sobre o tema, cabe citar que o início de 2024 foi marcado pela greve de servidores do Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis), cuja ocorrência deveria repercutir o mínimo possível sobre o andamento das obras previstas, para não frustrar as expectativas de implementação de melhorias nas rodovias. Por isso mesmo, seja enquanto perdurar o movimento grevista, seja depois, há de se conceber um plano especial de acompanhamento dos licenciamentos para minimizar atrasos, sendo essa uma dianteira que marcará a tônica dos trabalhos já no início do ano.
Como se pode perceber, 2024 está repleto de acontecimentos relevantes e será, por isso mesmo, determinante para o futuro das concessões rodoviárias do Brasil. Vale acompanhar de perto tudo isso, com a expectativa de grandes encontros no calendário de eventos, destacando-se a Bienal das Rodovias, organizada pela ABCR, em agosto, em Brasília, prometendo ser a maior edição já realizada – refletindo o momento pujante do mercado.
De fato, um ponto de inflexão na história do setor deverá ser traspassado no horizonte de curto prazo, contribuindo para erguer os padrões contratuais, regulatórios, e tecnológicos das rodovias concedidas no País a um patamar sem precedentes. Muitos atores, públicos e privados, vêm trabalhando para que isso se cristalize. E os sinais que existem, até agora, dão a crer que o resultado de todo o esforço empreendido nesses últimos tempos frutificará.