THC, THC2, THC3, THC4… “todas essas cobranças não têm paradigma no mercado Internacional, só o Brasil que faz essas coisas, o que é um absurdo”, como dito pelo ministro Walton Alencar
Bruno Burini*
Após 24 anos de disputas, o STJ (Superior Tribunal de Justiça) deu início à primeira análise na história de mérito da ilegalidade da THC2 (Terminal Handling Charge 2 ou Taxa 2 de Movimentação no Terminal), sinalizando para a consolidação do fim dessa cobrança, proibida no Brasil desde 2022 e que, de acordo com o então Ministério da Economia, gera um impacto sobre o “custo Brasil” de R$ 1 bilhão ao ano.
Com o início do julgamento, igualmente surgem opiniões oportunistas sobre o tema, alinhadas com a posição moribunda dos operadores portuários.
Sabe-se que a THC2 foi um preço espúrio criado pelos operadores portuários a partir do fracionamento da capatazia/THC, que por definição legal remunera toda a movimentação lateral do contêiner em trânsito na área do operador portuário até sua entrega ao destinatário, na forma do art. 40, §1º, I, da Lei 12.815/2013:
“I – capatazia: atividade de movimentação de mercadorias nas instalações dentro do porto, compreendendo o recebimento, conferência, transporte interno, abertura de volumes para a conferência aduaneira, manipulação, arrumação e entrega, bem como o carregamento e descarga de embarcações, quando efetuados por aparelhamento portuário”.
Durante esse período, a responsabilidade pela movimentação e conservação dos contêineres é do operador portuário, que auxilia o armador (e é por ele contratado) no cumprimento do contrato de transporte e na entrega da mercadoria ao destinatário, na forma dos artigos 629 e 750 do CC (Código Civil).
Contudo, os operadores portuários, desde o final da década de 1990, tentam o fracionamento da capatazia/THC, afirmando que tal preço pago pelo armador (cliente, às vezes do mesmo grupo econômico) remunera os custos apenas até a colocação do contêiner numa ficcional pilha intermediária, a partir do que os “serviços adicionais”, a título de THC2, estariam lastreados no conceito de depósito necessário (art. 647 do CC) e poderiam ser cobrados dos recintos alfandegados (os concorrentes no mercado de armazenagem de contêineres).
Tal fracionamento é ilegal, está proibido desde 2022 por decisão de efeitos erga omnes e por decisões específicas em diversas esferas do direito que sindicaram a THC2 – TCU (Tribunal de Contas da União), ANTAQ (Agência Nacional de Transportes Aquaviários), CADE (Conselho Administrativo de Defesa Econômica), justiça federal e estadual, por óticas civil, concorrencial e regulatória.
Análises contratuais e aduaneiras reforçam essa ilegalidade e dão contexto.
A ilegalidade do fracionamento prevalece sobre qualquer disposição contratual entre armadores e operadores em sentido contrário, no sentido de “encurtar” a extensão da capatazia/THC (especialmente se provenientes de empresas como MSC e Maersk).
Argumentos dessa natureza têm sido cada vez menos relevantes. Isso porque em décadas passadas, os armadores eram uníssonos em afirmar que a Capatazia/THC cobria toda a movimentação lateral de contêineres em trânsito na área do operador portuário.
Contudo, há um movimento recente de integrações verticais envolvendo armadores e operadores – fato inclusive investigado pelo CADE. Nesse cenário, seria de se esperar o “auxílio” dos armadores aos seus controlados ou contratados.
Ademais, qualquer análise fiscal ou aduaneira não ajudaria os operadores portuários. O regulamento aduaneiro estabelece ser o recinto alfandegado o responsável pela solicitação do contêiner para fins de armazenamento alfandegado, na forma da IN (Instrução Normativa) 248/2002.
Isso decorre de duas obviedades inerentes às operações de importação: os recintos fazem a solicitação porque:
a) recintos alfandegados podem solicitar contêineres descarregados para realizar a armazenagem alfandegada – no porto de Santos (SP), por meio do sistema DT-e (Documento Eletrônico de Transportes) da ABTRA (Associação Brasileira de Terminais e Recintos Alfandegados), com autorização da Receita Federal que dá cobertura ao transporte da carga dentro da mesma jurisdição;
b) a nacionalização das cargas pode ser feita em operadores ou recintos alfandegados, em razão da concorrência entre eles no mercado de armazenagem alfandegada;
c) os importadores jamais poderiam fazer a solicitação, porquanto não autorizados pela receita para o processo de nacionalização;
d) não há uma norma sequer da Receita Federal que autorize a cobrança pela solicitação do contêiner, dado que em qualquer das hipóteses acima o Estado está salvaguardando mecanismos alternativos de nacionalização de carga no Brasil.
Portanto, a solicitação ser feita pelos recintos alfandegados não é a “solicitação de um serviço”, mas uma inerência das exigências da Receita Federal brasileira dentro de uma política pública de interesse nacional.
Não há um benefício aos recintos alfandegados, porque tal regime foi criado pela Receita para o exercício indispensável do serviço essencial prestado pelos recintos alfandegados em relação ao fluxo de nacionalização ágil e eficiente de cargas, em regime de plena concorrência, sabidamente sempre benéfico ao interesse público.
Não são criadas relações jurídicas; não existem contratos firmados. Mantêm-se então todos os feixes de relações jurídicas, que não incluem uma entre operadores portuários e recintos alfandegados. Todas as regras de responsabilidade civil e regulatória pelas cargas se mantêm.
Existe outro dado aduaneiro relevante. Antes da potencialização dos conflitos, os contêineres eram liberados de forma eficiente pelos operadores portuários em menos de 6 horas. Após os conflitos e com arrimo em normas que seguiram a linha da IN 248/2002, os operadores portuários passaram a ter até 48 horas para a liberação dos bens. Tal fato vem sendo comumente utilizado por operadores para retardar a liberação desses contêineres “em respeito do máximo permitido pela norma”, para que possam se beneficiar na competição pelo tempo de liberação.
Essa permanência motivou os operadores portuários na criação de um novo fracionamento da capatazia/THC, a chamada guarda provisória/THC3, justificada mais uma vez no mesmo “depósito necessário” dos contêineres (de novo, com base no art. 647 do CC) e em razão, conforme os operadores portuários, dos custos da guarda dos contêineres enquanto eles estão sendo segregados e movimentados – como se fosse possível segregar movimentação da guarda.
Tal preço, por óbvio, foi suspenso por determinação da ANTAQ, em razão dos indícios de que se tratava de uma tentativa de fraudar o comando do TCU que suspendera a cobrança da THC2.
A história piora. As 48 horas mencionadas na IN 248/2002 servem ainda como motivo espúrio para a cobrança da aqui chamada “Entrega Postergada/THC4”.
Ela é cobrada por operadores portuários por dia, retroativa ao dia da descarga, quando os contêineres forem retirados após o prazo de 48 horas.
Tal verba incorre no mesmo problema exposto para as anteriores: ela é cobrada com amparo no mesmo art. 647 do CC em razão do aludido “depósito necessário”, por conta da conservação ou movimentação do contêiner que está em trânsito, por conta de mais um fracionamento da capatazia/THC.
Tal preço é utilizado de forma ilegítima, porquanto o operador portuário:
a) tem 48h para colocar os contêineres na pilha intermediária e liberá-los aos recintos alfandegados, mas oferecem presença de carga imediata quando tais contêineres são armazenados em sua própria área, valendo-se da pilha e do tempo como vantagem competitiva;
b) não abre janelas para retirada de contêineres dentro do período de 48h em montantes compatíveis com o volume em trânsito;
c) abre janelas de forma não vinculada aos contêineres e navios atracados, mas sim ao recinto alfandegado, criando distorções no prazo de 48h estipulado, especialmente quando há mais de um navio atracado;
d) não raras vezes antecipa o horário previsto de atracação e de início de operação de descarga, de forma a fragilizar a previsibilidade das operações dos recintos alfandegados, reduzir o tempo de acesso aos contêineres e propiciar condições adversas para o esgotamento do prazo de 48hs e cobrança da entrega postergada.
Essas situações são agravadas em razão de um vácuo regulatório e anti-isonômico: quando o atraso é supostamente imputado aos recintos alfandegados, cobra-se a “entrega postergada”. Mas quando é o próprio operador portuário que retarda o acesso dos recintos alfandegados aos contêineres, não paga qualquer valor ou sofre qualquer sanção pela “liberação postergada” de contêineres.
Não há notícia de que a Receita Federal tenha sancionado de forma contundente ou eficiente os operadores por tal conduta, que gera conhecidos prejuízos ao fluxo de nacionalização de contêineres, além de prejuízos financeiros, reputacionais aos recintos alfandegados.
Tenho especial apreço pela premonitória fala do ministro Walton de Alencar em julgamento sobre a THC2 perante o TCU, quando menciona a existência de:
“Privilégios extensivos, absolutos, que são dados a alguns entes que fazem parte do mercado. Então isso ocorre de maneira muito evidente, ou ocorria, ocorre, mas ocorre ainda hoje em relação a outras agências reguladoras. No caso, nós temos essa THC e a THC 2. Se deixarmos, senhora presidente, já não me surpreenderia se viesse até THC 3, THC 4 e 5. Agora, não só isso. Todas essas cobranças não têm paradigma no mercado Internacional, só o Brasil que faz essas coisas, o que é um absurdo”.
Não se pretende um serviço gratuito. A movimentação de contêineres do costado “até o portão” é remunerada pela capatazia/THC, paga pelos armadores. O que se busca enterrar, após 24 anos de disputa, são cobranças ilegais, sem lastro em relação jurídica, de natureza anticompetitiva, não legitimadas pela regulação aduaneira, que geram impacto bilionário para o “custo Brasil” e criadas com o fim último de encarecer os serviços dos recintos alfandegados e excluí-los do mercado de armazenagem alfandegada de contêineres.