Free-flow em rodovias brasileiras: sandbox regulatório e o Rio Grande do Sul como a primeira experiência de funcionamento integral do sistema

Carlos Eduardo da Silveira*, Cesar Kasper de Marsillac**, Gabriel Ribeiro Fajardo*** e Pedro Maciel Capeluppi****

O governo do Estado do Rio Grande do Sul capitaneia a primeira experiência de funcionamento integral, em uma concessão rodoviária, do fluxo de livre passagem, através da cobrança automática de tarifas dos usuários. A medida se valeu do sandbox regulatório – também vivenciado em iniciativas da ANTT (Agência Nacional de Transportes Terrestres) – como estratégia para o início de uma transformação inovadora. O presente artigo busca demonstrar como o desenho regulatório foi realizado para recepcionar e viabilizar esta iniciativa que, ancorada na tecnologia, vem alterando a realidade das concessões de rodovias no Brasil.

Do free-flow (sistema de livre passagem) e da sua importância para o usuário
Classicamente, as rodovias brasileiras concedidas sempre tiveram praças de pedágio como instrumento de cobrança das tarifas dos usuários. A barreira física era necessária em razão da fragilidade jurídico-regulatória para a implantação de métodos de cobrança exclusivamente eletrônicos, notadamente para mitigar o risco de evasão ou não pagamento da tarifa de pedágio.

A Lei 14.157/2021, inspirada em experiências já adotadas em diversos países[1], introduziu no ordenamento jurídico brasileiro a previsão para adoção do chamado Sistema de Livre Passagem e estabeleceu condições para a sua implementação, alterando o Código de Trânsito Brasileiro (Lei 9.503/1997) e a lei de criação da ANTT (Lei 10.233/2001).

O modelo foi implantado nos mais diversos países (Estados Unidos, França, Portugal, Malásia, Rússia, Austrália, Canadá, Israel, Alemanha, Suécia, Chile, Eslováquia, Índia, entre outros), seguindo como tendência na estruturação de projetos também no Brasil.

A partir deste marco legal de âmbito nacional, as gestões públicas responsáveis pelas concessões de rodovias pedagiadas no país passaram a avaliar a introdução deste novel mecanismo em seus projetos de concessões rodoviárias, assim como a estudarem uma forma de adequar os contratos do gênero já em execução.

A exemplo disso, a ANTT e a ARTESP (Agência de Transporte do Estado de São Paulo), reconhecidas em âmbito nacional pelo volume de concessões de rodovias que levaram a efeito, passaram a contemplar em seus editais de licitação a possibilidade de implantação do free-flow[2].

Mais recentemente, as agências publicaram projetos com a introdução do sistema já na partida, notadamente pelos benefícios que a modernização tecnológica pode propiciar aos usuários, relacionados ao aumento da velocidade de deslocamento, tarifa mais justa, proporcional ao trecho efetivamente percorrido, melhora no rendimento dos veículos (redução de consumo de combustível, menor desgaste de pneus e motor), diminuição do risco de colisão na proximidade das praças físicas, diminuição da poluição do ar por fumaça e fuligem de lonas de freio, dentre outras.

Não foi diferente com o Estado do Rio Grande do Sul, que estabeleceu no contrato de concessão do Bloco 3 mecanismos para a implantação do free-flow ao longo da sua execução.

O desafio dos gestores públicos para a introdução de forma definitiva do sistema nas rodovias concedidas ou a serem concedidas estava atrelada à ausência de ambiente jurídico-normativo apto a elidir ou mitigar o risco de evasão. Contudo,  recentemente, com a regulamentação pela Resolução Contran 984/2022, com eficácia a partir de 2 de janeiro de 2023, foi suprimida essa lacuna e implementadas as condições necessárias para a implantação do sistema nas rodovias nacionais.

Trata-se de um avanço importante na substituição das praças físicas de pedágio por sistemas eletrônicos de cobrança, notadamente pelos benefícios que advirão aos usuários em decorrência da introdução desta tecnologia, dentre os quais, destacam-se as seguintes dimensões:

Primeiro, o sistema de livre passagem soluciona o problema regulatório do subsídio cruzado, especialmente no que respeita ao movimento metropolitano pendular diário. Ele permite a cobrança proporcional do trecho percorrido por cada usuário, ampliando a base de pagantes. Com isso, suplanta-se a discussão sobre isenção tarifária de moradores ou profissionais em cidades e regiões metropolitanas cortadas por praças de pedágio.18 Além disso, a modalidade free flow gera benefícios em termos de segurança do tráfego e eficiência logística. Sua implantação está diretamente relacionada aos três eixos da Política de Modernização da Infraestrutura Federal de Transporte Rodoviário (Inov@BR), criada pelo Decreto no 10.648/2021 e já qualificada no âmbito do Programa de Parcerias de Investimentos (PPI): segurança viária, fluidez e tecnologia (art. 5o). No que respeita à segurança, o monitoramento constante que a tecnologia do sistema free flow viabiliza gera significativo volume de dados dos usuários, permitindo compartilhamento com outras entidades (por exemplo, responsáveis pela segurança pública). Isso viabiliza o monitoramento de cargas e a detecção de veículos irregulares (furtados, clonados ou com pendência judicial). Ainda, permite que a concessionária tenha controle mais amplo da rodovia através das câmeras instaladas nos pórticos, aperfeiçoando a prestação dos serviços de assistência médica e mecânica. Por prescindir de cabines de cobrança e cancelas, que implicam a redução de velocidade ou parada total dos veículos, o sistema viabiliza melhor fluidez do tráfego[3].

Além dos benefícios supramencionados, destacam-se o aumento da velocidade e fluxo da rodovia, economia de combustível, menor desgaste dos veículos, redução do tempo de viagem e da poluição ambiental, segurança e redução de acidentes.

Outrossim, o sistema confere um conjunto informacional extremamente relevante para o monitoramento da rodovia e qualificação do serviço ofertado ao usuário, permitindo a identificação da ocorrência de acidentes, prestação de serviço socorro imediato, correção do fluxo e gerenciamento dinâmico de tráfego[4].

Além disso, as informações geridas pela concessionária podem ser um importante insumo para a administração pública, visando ao aprimoramento da segurança pública, da acessibilidade e mobilidade urbana, bem como para a administração tributária.

Por tais razões, o governo federal vem colocando o free-flow como premissa de modelagem das concessões rodoviárias, considerando a nova premissa regulatória da política de rodovias do Ministério dos Transportes[5].

No mesmo sentido, a experiência implementada pelo Estado do Rio Grande do Sul, por intermédio da alteração de um contrato de concessão rodoviária já em curso, a ser gerida exclusivamente pelo sistema de cobrança de pedágio de livre passagem, configura-se em uma relevante fonte de informações não apenas para subsidiar a estruturação, já em fase de elaboração, de outros blocos de concessão de rodovias estaduais, como para inspirar outros entes subnacionais na modernização das rodovias.

Do período experimental – sandbox regulatório
A partir da edição da Lei 14.157/2021, a administração pública foi instigada a introduzir nas modelagens de concessões de rodovias disciplinas contratuais que, mesmo que não permitam a imediata implantação do sistema, viabilizem a futura adequação dos contratos.

Evidentemente que, por envolver um sistema incipiente no Brasil, para o qual recém houve a regulamentação pelo Contran (Conselho Nacional de Trânsito), há obstáculos regulatórios a serem transpostos para a implantação definitiva em rodovias concedidas, necessitando de uma maior experimentação, especialmente para a mitigar o volume   de evasão.

Ante à ausência de dados acurados e à necessidade de uma grande sensibilização dos usuários para a implantação efetiva do sistema, a fim de fomentar a cultura de adesão ao pagamento eletrônico, o Estado do Rio Grande do Sul entendeu por constituir um ambiente regulatório experimental (também chamado de sandbox regulatório) de dois anos, passível de ser aplicado aos dois contratos de concessão de rodovias já em fase de execução.

O sandbox regulatório tem como objetivo proporcionar que determinadas soluções possam ser testadas antes de sua efetiva implementação. O benefício da medida está em permitir que determinadas condições em vigor sejam sobrestadas enquanto novas regras são aplicadas em período experimental[6].

Tratando-se o free-flow de medida inovadora, é importante que antes de sua instituição em definitivo, sejam realizados testes e medidas que possam trazer elementos para a posterior tomada de decisão.

Em concessões rodoviárias, a medida se aproxima da iniciativa realizada pela ANTT e pela CCR, na rodovia BR-116/101/SP/RJ, na qual foi concedida autorização para, em caráter temporário, implementar e colocar em funcionamento o sandbox regulatório para o desenvolvimento de serviços, produtos ou soluções regulatórias do free flow na rodovia BR-101/RJ, no trecho que interliga a cidade do Rio de Janeiro (RJ) – no entroncamento com a BR-465/RJ-095 até Praia Grande (Ubatuba, SP)[7].

No caso em questão, a concessionária apresentou proposta alternativa para o pedagiamento da rodovia BR101/RJ, por meio de implantação dos pórticos de cobrança automática do sistema fluxo livre, em substituição às praças de pedágio físicas previstas no contrato[8].

Não foi diferente no Estado do Rio Grande do Sul, o qual, a fim de levar a efeito modernizações tecnológicas que venham em proveito ao usuário das rodovias, editou o Decreto Estadual 57.149/2023 estabelecendo as condições para a futura implantação do free-flow.

Para tanto, o decreto autorizou a criação de um período experimental, com a substituição das praças físicas de pedágio por pórticos, sem que isso acarretasse, durante o sandbox, na alteração das tarifas ou na ampliação dos locais de cobrança eletrônica.

Além disso, estabeleceu que, ao longo do período de testes, deverão ser realizados novos estudos para a ampliação do número de pórticos com o intuito de conferir maior justiça tarifária, conferindo proporcionalidade à tarifa de pedágio e à quilometragem efetivamente percorrida pelo usuário.

Vale dizer que o Decreto Estadual 57.149/2023 não se restringiu a uma concessão específica, tratando-se, em verdade, de norma geral, apta à aplicação em qualquer das rodovias concedidas pelo Estado, desde que cumpridos os requisitos lá estabelecidos.

A utilização de tal instrumento constitui, portanto, uma forma de viabilizar a implementação de novas tecnologias, em um ambiente de testes, aferindo a concreta adesão dos usuários ao sistema e o respectivo impacto de evasão.

Da implementação do período experimental em uma rodovia concedida pelo Estado
A primeira concessionária a propor ao Estado a aplicação do sandbox regulatório em um contrato existente foi a Caminhos da Serra Gaúcha, delegatária do Contrato 50/2022 (ERS-122, ERS-240, ERS-446, RSC-453 e BR-470).

Com essa provocação, iniciou-se uma série de tratativas entre o poder concedente, a concessionária, a AGERGS  (Agência Estadual de Regulação dos Serviços Públicos Delegados do Rio Grande do Sul) e o órgão estadual de trânsito. O objetivo era o de fixar as condições técnicas, operacionais e econômicas para a realização do ambiente regulatório experimental e a formalização de uma alteração contratual, viabilizando a instalação de um ambiente seguro tanto à concessionária, quanto ao Estado do Rio Grande do Sul que, na forma do termo aditivo firmado, passa a ser o responsável pelo risco de evasão.

Ponto importante a considerar é que o contrato de concessão administrado pela Caminhos da Serra Gaúcha apresentava condições favoráveis à implantação de um período experimental, já que se encontrava num estágio incipiente da execução contratual (quando não iniciadas as obras das novas praças físicas de pedágio). Assim, permitindo a suspensão de determinadas obrigações a fim testar a nova solução, sem que isso acarretasse grandes impactos contratuais.

Com isso, propicia-se que, ao final dos dois anos, as partes tenham insumos suficientes para deliberar pela solução que melhor atenda ao interesse público e resguarde igualmente os interesses da concessionária.

A partir de um amplo e transparente processo dialógico, que buscou equacionar as premissas entre a concessionária, poder concedente e agência reguladora, foram estabelecidas as seguintes condições para a formalização de um termo aditivo ao contrato de concessão, criando-se o sandbox regulatório:

• Suspensão das obrigações originais de construção de praças físicas de pedágio pelo prazo máximo de 02 anos, incluindo-se a obrigação da concessionária substituí-los por pórticos de cobrança, observadas as mesmas regras de localização descritas no contrato.

• Encerrado período experimental, possibilidade de a) tornar o sistema automático de livre passagem definitivo; b) retomar as obrigações originais, com a instalação de praças físicas de pedágio; e c) ampliação do número de pórticos e revisão das tarifas, após a realização de estudos e discussão com a sociedade.

• Compartilhamento do risco de evasão do pedágio, caracterizada pelo não pagamento da tarifa do pedágio em até 15 (quinze) dias da passagem pelo pórtico de cobrança, nas seguintes proporções: 5% para a concessionária e 95% do poder concedente.

• Adimplemento do risco de evasão assumido pelo poder concedente prioritariamente com recursos da conta multa.

• Considerando uma sensível redução do CAPEX (Capital Expenditure ou Despesas de Capital) com a substituição do método de cobrança, bem como uma expectativa de redução do OPEX (Operational Expenditure, o capital utilizado para manter ou melhorar os bens físicos de uma empresa) em maiores proporções, em especial a despesa de pessoal. O termo aditivo prevê que ao término da vigência do ambiente regulatório experimental será procedida a apuração de tais diferenças, utilizando-se de tais recursos para suportar os ônus de eventual saldo de inadimplência, não compensado com recursos da conta multa, conforme cláusula[9] 5.5:

• A concessionária promoverá controle dos pagamentos pelos usuários das tarifas de pedágio feitos após o prazo normativo de pagamento, sendo a arrecadação respectiva compensada do compartilhamento dos riscos descritos acima, tanto pelo poder concedente como pela concessionária, na proporção dos riscos assumidos por cada parte.

• A concessionária implantará sistema automatizado para suprir de informações necessárias ao órgão governamental estadual competente para a lavratura da multa de trânsito prevista no Art. 209-A da Lei 9.503/1997.

• A partir do 18º mês da vigência do termo aditivo, deverá ser instaurado procedimento de revisão extraordinária do contrato, na forma da cláusula 18.9 do contrato de concessão, ocasião em que será apurada a diferença entre as obrigações originalmente previstas e as pactuadas no termo aditivo em comento.

• Caso, ao final ou durante o período experimental, o sistema de livre passagem não se mostre adequado aos parâmetros a serem definidos em novo termo aditivo, apenas 70% dos investimentos com o sistema de pórticos será objeto do reequilíbrio, respondendo a concessionária por 30% desse risco. Outrossim, em tal hipótese, será retomado o prazo de 12 meses para a implantação das seis praças físicas de pedágio, previstas no contrato de concessão.

Veja-se, portanto, que o 3º termo aditivo ao contrato de concessão viabilizou a suspensão de obrigações originárias da concessionária, atinentes à construção de praças de físicas de pedágio, substituindo-se pela implantação de pórticos, sem que isso ocasionasse grandes impactos contratuais.

Por envolver um período experimental, não se pretendeu rediscutir as premissas que balizaram o estabelecimento da tarifa quilométrica em pedágios de bloqueio, posto que demandaria interlocução com a sociedade e revalidação dos estudos, em decorrência da pulverização do número de locais de cobrança, com a instalação de novos pórticos.

Isso porque, o acréscimo de pontos de cobrança pela instalação de pórticos ao longo da rodovia pode tanto capturar um maior número de usuários, em especial aqueles que percebam redução nos custos de pedágio (maior proporcionalidade), quanto incentivar a utilização de novas rotas de fuga, rodovias alternativas, ou até mesmo intensificar a migração para outros modais, para aqueles que até então não eram capturados pelas praças de bloqueio.

Em razão disso, espera-se que a experiência prática com o sandbox e a realização dos estudos ao longo dos dois anos de sua vigência alcance às partes maiores subsídios para a tomada de decisão para a implantação definitiva do sistema e ampliação do número de pórticos, equalizando maior proporcionalidade tarifária.

Como corolário lógico, o termo aditivo em questão promoveu alterações pontuais no contrato, preservando o equilíbrio econômico-financeiro e disciplinando formas de mitigar os riscos, notadamente o de evasão.

Da compensação à concessionária pelo inadimplemento dos usuários
Ao promover alterações no método de cobrança a ser realizado pela concessionária, suprimindo as barreiras físicas e substituindo-as por equipamentos eletrônicos de livre passagem, há que se observar um sistema de garantias públicas que não acarrete alteração na distribuição dos riscos do contrato, conforme CARVALHO[10].

É cediço que o risco de inadimplência e de evasão é alocado aos concessionários nos contratos de concessão rodoviária cujo mecanismo de cobrança de pedágio envolve praças de bloqueio. Igualmente é certo que a exigência de implantação de uma tecnologia que promova alterações significativas para a concessionária na sistemática de cobrança, sem conferir a adequada segurança regulatória quanto à adimplência, não poderia ser a ela atribuída ao total arbítrio do concedente.

De qualquer modo, não se está, com isso, alterando a relação do binômio risco x retorno, uma vez que com a alteração do método de pagamento – sem o fracionamento do valor do pedágio e consequente maior pulverização dos trechos – não se vislumbra aumento ou diminuição da quantidade de usuários.

Assim, há que se distinguir, inicialmente, o risco de demanda com o risco de evasão. Mesmo com a substituição do mecanismo de cobrança, o risco de demanda permanece alocado à concessionária, preservada a matriz original do contrato de concessão. O poder concedente não responderá por eventual variação do número de usuários que utilizarem a rodovia, tendo em vista que não introduziu nenhum elemento superveniente apto a alterar a premissa deste modelo.

O risco de evasão, por outro lado, deve ter, agora, tratamento diferenciado. Primeiro porque, como dito, a retirada das barreiras físicas atrai um novo dificultador, tendo em vista que a concessionária não estará municiada de instrumentos tangíveis para impedir que o usuário realize o adimplemento de sua obrigação.

Em vista disso, na formalização do 3º termo aditivo ao contrato de concessão, procurou-se identificar quais as partes que detinham melhores condições de gerir o risco de evasão ou de mitigar os seus efeitos. Sendo assim, em consenso com a Concessionária, estabeleceu-se um compartilhamento de riscos, conforme referido alhures, o qual foi resultado de análise de projetos congêneres, ressalvadas especificidades dos ativos delegados[11].

Para tanto, considerando que o sucesso do sistema e a redução do percentual de evasão têm estreita relação com a efetividade do processo sancionatório de trânsito, notadamente quanto à lavratura e cobrança da infração de trânsito prevista no art. 209-A do CTB, identificou-se que o Estado possui maior capacidade de gerenciar o risco de evasão e mitigar os seus efeitos. Importante ainda destacar que o Poder Concedente terá a sua disposição a receita advinda com a imposição da penalidade de trânsito, a qual será alocada em uma conta bancária segregada justamente com a finalidade primeira de compensar a concessionária pela inadimplência dos usuários, minimizando sobremaneira ou, até mesmo, neutralizando os efeitos que a materialização desse risco pode acarretar ao ente delegante.

Além disso, no estudo específico dos fluxos criados para mapeamento e mitigação da inadimplência dos usuários, também foi considerado o nível de adesão nas estradas estaduais às TAGs.

Por outro lado, a preservação de parcela do risco com a concessionária justifica-se pela necessidade de gerar incentivo para que ela mantenha durante todo o período experimental métodos alternativos e administrativos para a cobrança da tarifa do pedágio no período posterior ao registro da passagem do veículo pelos pórticos, inclusive após o transcurso do prazo de 15 dias de que trata o art. 8º da Resolução Contran 984/2022[12]. Ademais disso, relaciona-se com a manutenção ativa das campanhas publicitárias da concessionária.

Outrossim, há diversas circunstâncias e mecanismos mitigadores do risco assumido pelo Estado, que viabilizam as compensações à concessionária sem que haja comprometimento de recursos orçamentários do Estado. Essas evidências podem ser demonstradas em dois grupos apartados:

Quanto à mitigação do inadimplemento por parte dos usuários que trafegam nas rodovias:

(i) alto nível de adesão ao pagamento das tarifas de pedágio via TAG – atualmente, cerca de 50% dos usuários dos trechos rodoviários abarcados pelo Contrato de Concessão já se utilizam de métodos eletrônicos de pagamento das tarifas de pedágio (a exemplo dos TAGS), fator de suma importância para avaliar o grau de comprometimento do Estado quanto à alteração contratual levada a efeito;

(ii) contratualização da obrigação da concessionária de realizar campanhas publicitárias contínuas para incentivo do pagamento tempestivo, na forma da cláusula 2.7 da minuta do termo aditivo;

(iii) a obrigação da concessionária em disponibilizar plataforma para que os usuários que não efetuarem o pagamento automático, de imediato, da tarifa de pedágio o façam posteriormente.

– Quanto à mitigação de comprometimento de recursos orçamentários na forma de compensação à concessionária pelo risco de evasão assumido pelo Estado:

(i) a vinculação do recurso advindo da aplicação da penalidade prevista no art. 209-A do Código de Trânsito Brasileiro, na forma autorizada pelo parágrafo terceiro do art. 320 da mesma norma c/c art. 5 do Decreto Estadual 57.149/2023;

(ii) a criação de mecanismo contratual que prevê reequilíbrio econômico-financeiro que apure a diferença entre os custos previstos originalmente para construção e operação das praças de pedágio frente aos recursos que serão utilizados no sistema automático de livre passagem;

(iii) instauração de procedimento de revisão extraordinária, no 18º mês da vigência do ambiente regulatório experimental, para fins de reequilíbrio econômico-financeiro, nos termos da cláusula décima quarta do 3º termo aditivo ao contrato de concessão.

Observa-se, pois que o ambiente regulatório experimental em questão oportuniza que o Estado, de forma disruptiva, promova alterações no sistema de cobrança de tarifa de pedágio de um contrato já em curso, sem ocasionar grandes riscos ao poder concedente, à concessionária ou aos usuários.

Tratando-se de um ajuste provisório e temporário, não se procedimentalizou a revisão extraordinária no presente momento, sob pena de inviabilizar a substituição das praças físicas de pedágio por pórticos, já que foram mantidos os mesmos prazos para implantação das praças previstas no contrato de concessão (cláusulas 1.2.1, 2.1 e 2.4 do termo aditivo).

Em vista disso, o termo aditivo diferiu no tempo a instauração do procedimento de revisão extraordinária e a respectiva apresentação da documentação comprobatória de seus efeitos.

Nesse sentido, foram endereçadas soluções tanto para a hipótese de retomada das obrigações originais, advindas do eventual fracasso do novo sistema, quanto para a sua implantação em definitivo ou, ainda, ampliação para a futura ampliação do número de pórticos.

Sendo assim, oportuniza-se que os dados obtidos com o período experimental se prestem para a tomada de decisão da administração pública estadual, tanto no contrato sob análise, quanto nos futuros projetos de concessão rodoviária que vierem a ser deflagrados pelo estado.

Considerações Finais
A alteração contratual promovida pelo Estado do Rio Grande do Sul constitui um importante marco para a introdução do free-flow em contratos em curso. O percurso negocial de substituição de investimentos em ambiente experimental evidenciou a plasticidade dos contratos de parceria, a capacidade de internalização de novas tecnologias e a consensualidade como um ativo em prol do projeto concessório.

A experiência do Estado do Rio Grande do Sul, ainda, é um importante aceno à capacidade dos entes subnacionais de serem pioneiros em medidas inovadoras, construindo saídas e soluções jurídicas customizadas às suas realidades. Espera-se, com isso, que as alterações implementadas pelo Estado, em ambiente regulatório experimental, alcancem os objetivos almejados e permitam que o novo mecanismo de cobrança represente o presente e o futuro das concessões rodoviárias.


[1] Conforme p. 32 do relatório técnico do free-flow, produzido por um grupo de trabalho instituído pela ABEPM (Associação Brasileira das Empresas de Pagamento Automático para Mobilidade) e disponível neste link.

[2] Vide alguns editais de concorrência da ANTT relativos à matéria: Concorrências 1, 2 e 3 de 2021, neste link; e editais da ARTESP: Concorrências 1 e 2 de 2021, neste link.

[3] CAGGIANO, Heloisa Conrado. A implantação do Sistema Free Flow em concessões rodoviárias: como fica o equilíbrio econômico-financeiro? Direito, economia e reformas regulatórias [recurso eletrônico] / Armando Castelar Pinheiro, Patrícia Regina Pinheiro Sampaio (coords.). – Rio de Janeiro: FGV Direito Rio, 2023.

[4] CARVALHO, Isadora. É oficial: cobrança dos pedágios será por km rodado e podemos pagar menos. 2021a. Revista Quatro Rodas. Disponível neste link.

[5] Conforme matéria da Folha de São Paulo: “Concessões de rodovias federais terão pedágio sem parada e desconto por frequência”, disponível neste link.

[6] Vide contexto da utilização do sandbox regulatório em projetos de infraestrutura do país no artigo Sandbox regulatório – a modelagem da PPP do complexo penal de Erechim.

[7] Termo Aditivo 3/2023, do contrato referente ao Edital 3/2021, de concessão de serviços públicos precedida de obra pública que entre si celebram a União, por intermédio da ANTT e a Concessionária do Sistema Rodoviário Rio-São Paulo S/A, em Brasília (DF), de 23 de fevereiro de 2023.

[8] A ANTT publicou a Resolução 5.999/2022 por meio da qual dispõe sobre as regras para constituição e funcionamento de ambiente regulatório experimental (sandbox regulatório), em que as pessoas jurídicas participantes podem receber autorizações temporárias para testar novos serviços, produtos ou soluções regulatórias no setor de transportes terrestres;

[9] 5.5. Caso, ao final da vigência do presente 3º TERMO ADITIVO, remanesça saldo de Compensação da Inadimplência em favor da CONCESSIONÁRIA não pago por ausência de saldo disponível na CONTA MULTA, o valor será compensado com os Saldos Positivos de OPEX e CAPEX (desembolso a menor de recursos) apurados conforme itens “i” e “ii” da subcláusula 14.2, observado o disposto na subcláusula 14.6, na hipótese de não implantação definitiva do Sistema Automático de Livre Passagem.
5.5.1. Na hipótese de insuficiência de recursos na CONTA MULTA e, ainda, nos Saldos Positivos de OPEX e CAPEX a que se refere a subcláusula 5.5, acima, para a realização da Compensação da Inadimplência, o PODER CONCEDENTE deverá proceder a recomposição do equilíbrio econômico-financeiro do Contrato, considerando o saldo remanescente da Compensação da Inadimplência em favor da CONCESSIONÁRIA através de uma das modalidades previstas na subcláusula 22.1.3. do CONTRATO DE CONCESSÃO.

[10] CARVALHO, André Castro; V., Carlos Silva. Concesiones de carreteras en Brasil y Chile: aspectos jurídicos comparados. RDPE (Revista de Direito Público da Economia), Belo Horizonte, ano 11, n. 44, out./dez. 2013. Disponível neste link.

[11] Atualmente, a única experiência nacional que já aplica o sistema de livre passagem é o Contrato firmado entre a Agência Nacional de Transportes Terrestres e a concessionária CCR Rio-SP, tendo havido, contudo, apenas a substituição das praças de pedágio em um trecho específico, correspondente a 8% (oito por cento) da receita de toda concessão. Vide Aditivo 3/2023, ANTT. Disponível neste link.

[12] Art. 8º O não pagamento da tarifa de pedágio decorrente do trânsito em via dotada de free flow após o prazo de quinze dias, iniciado no dia seguinte ao da passagem do veículo pelo ponto de leitura, conforme regulamentação do órgão ou entidade de trânsito com circunscrição sobre a via, configura infração de trânsito prevista no art. 209-A da Lei 9.503/1991, que institui o CTB (Código de Trânsito Brasileiro).
§ 1º O pagamento da multa de trânsito gerada após transcorrido o prazo de que trata o caput não desobriga o usuário de realizar o pagamento das tarifas de pedágio devidas.
(…)

*Carlos Eduardo da Silveira é procurador do município de Porto Alegre (RS), exerce atualmente a coordenação da assessoria jurídica da Secretaria de Parcerias e Concessões do Estado do Rio Grande do Sul e MBA (Master of Business Administration) em PPPs e Concessões pela FESPSP (Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo).
**César Kasper de Marsillac é procurador do Estado do Rio Grande do Sul, exerce atualmente as funções de coordenador setorial do Sistema de Advocacia do Estado juntos às secretarias de Estado de Parcerias e Concessões e de Habitação e Regularização Fundiária e mestrando em Direito da Concorrência e da Regulação junto à Universidade de Lisboa.
***Gabriel Ribeiro Fajardo é secretário de Estado Adjunto de Parcerias e Concessões do Estado do Rio Grande do Sul e mestre em Direito da Administração Pública pela UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais).
****Pedro Maciel Capeluppi é economista, servidor do Tesouro Nacional e atualmente Secretário de Estado de Parcerias e Concessões do Rio Grande do Sul.
As opiniões dos autores não refletem necessariamente o pensamento da Agência iNFRA, sendo de total responsabilidade do autor as informações, juízos de valor e conceitos descritos no texto.

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