*Guilherme F. Dias Reisdorfer
A ANTT (Agência Nacional de Transportes Terrestres) realizará hoje (8), às 14h, a Audiência Pública 6/2023, para discutir minuta de resolução que incorpora à Resolução 5.845/2019 disciplina sobre os dispute boards, denominados “Comitês de Prevenção e Solução de Disputas”.
A iniciativa da agência é uma resposta à posição restritiva do TCU (Tribunal de Contas da União) quanto à adoção dos comitês em contratos de concessão (Acórdão 4.036/2020-Plenário). Embora já fosse possível identificar fundamentos no direito positivo para o poder público recorrer à tal figura (como já havia recorrido no passado), a controvérsia ficou superada com o art. 151 da Lei 14.133/2021, que prevê o emprego do instituto para contratos administrativos em geral. Agora o tema ganha novo capítulo no âmbito da ANTT.
Um primeiro ponto da minuta a ser destacado diz respeito às matérias que podem ser submetidas aos comitês. O regramento se vale de duas técnicas.
A primeira é a delimitação positiva dos temas, que compreende avaliação de questões de engenharia, de ativos e indenizações, de cumprimento de condicionantes ambientais e de eventos que possam inviabilizar o cumprimento de obrigações contratuais (art. 27, caput e incisos).
A segunda consiste em definição negativa ampla. Afastam-se da alçada dos comitês divergências que “envolvam questões de cunho estritamente jurídico” e sobre “validade e legitimidade” de atos e normas regulatórias da ANTT (art. 27, § 1º e incisos). Essas restrições são questionáveis no tocante aos atos que venham a ser praticados pela ANTT no âmbito do contrato, pois dissociam elementos (técnicos e jurídicos) que estão interrelacionados. Como o comitê deve pautar a sua atuação pela disciplina contratual, a consideração de matérias jurídicas é um elemento inafastável na avaliação dos atos praticados pelas partes, ainda que a relevância de discussões jurídicas varie conforme o tipo de controvérsia. Por outro lado, se a Lei 14.133/2021 previu que os comitês podem resolver questões relacionadas ao inadimplemento de obrigações contratuais (art. 151, parágrafo único) e à própria extinção do contrato (art. 138, inc. II), vê-se que a proposta de regulamentação não acompanha a política legislativa.
Conforme o art. 28, esses comitês podem ter natureza (i) adjudicatória, com emissão de decisões vinculantes às partes, (ii) recomendatória, com decisões não vinculantes, e (iii) híbrida, com uma combinação de decisões vinculantes e não vinculantes, conforme a disciplina contratual.
Quanto ao formato do comitê, a minuta de resolução preza pela flexibilidade. O art. 29 admite a concepção de comitês permanentes (vigentes ao longo do contrato), temporários (limitados a um determinado período contratual) e ad hoc, estes instituídos para a solução de controvérsias específicas. Entende-se que alguns aprimoramentos poderiam ocorrer – destacam-se dois.
Um primeiro seria indicar preferência por comitês permanentes ou temporários. Sem se ignorar os custos desses comitês e o fato de que as concessões envolvem períodos contratuais heterogêneos (com maior ou menor volume de investimentos em obras, p. ex.), a preferência se justifica porque apenas esses formatos permitem realizar de forma plena a função dos comitês, que se inicia com a prevenção de disputas e propicia economia com o evitamento de litígios formais. Nessa condição, os comitês podem operar como instrumentos de boa gestão contratual. Já os comitês ad hoc são constituídos quando a disputa já existe. Têm a desvantagem de surgir em ambiente adversarial, em momento no qual, em regra, resta fazer análise retrospectiva e menos precisa do que aquela que comitês previamente instaurados poderiam desenvolver.
Um segundo aprimoramento é de natureza redacional. O art. 29, inc. III, prevê como objeto dos comitês ad hoc apenas aspectos relacionados à técnica de engenharia. Melhor seria que a redação fosse aberta, de modo a afastar quaisquer dúvidas sobre a possibilidade de instauração de um comitê ad hoc ao término do contrato para discussão sobre equilíbrio contratual e indenizações, por exemplo – como, aliás, o art. 27 da minuta admite.
Além de disciplinar a formação do comitê (art. 30), a minuta regula o “processamento das divergências” a ele submetidas, conforme os princípios da legalidade, publicidade (respeitadas as hipóteses legais de sigilo), oralidade e informalidade (art. 31).
Entre outras regras, o art. 32 prevê a necessidade de adesão do comitê a regulamento de câmaras credenciadas na AGU (Advocacia-Geral da União, caput), prazo de 30 dias para a ANTT escolher a câmara em caso de “indisponibilidade, inviabilidade ou desacordo na escolha”, contados da notificação do concessionário (§ 1º), e prevalência da Resolução sobre o regulamento da câmara (§ 2º).
O art. 34, § 3º, prevê que a ANTT poderá manifestar oposição ao cumprimento de decisões adjudicatórias no prazo de 15 dias, caso “violadas as diretrizes estabelecidas nesta Resolução ou regras procedimentais contidas no regulamento da Câmara escolhida”. Por isonomia, tal faculdade é extensível ao concessionário e abrange a possibilidade de apontar o descumprimento de regras contratuais – conforme a regra geral do art. 1º, § 1º, da Resolução, a divergência entre a Resolução e os contratos de concessão se resolve com a prevalência destes. Também aí, portanto, a redação poderia ser aprimorada.
As novas previsões constituem oportunidade para aperfeiçoamento (bilateral) mesmo dos contratos preexistentes. Isso se prova com o cotejo da minuta da resolução com a minuta de contrato de concessão do Leilão 1/2023 da ANTT, que tem por objeto o lote 1 das rodovias federais do Estado do Paraná. Esse contrato estabelece, entre outras regras, que o comitê terá caráter facultativo, ad hoc e meramente recomendatório (cl. 42.4). Se forem consideradas boas práticas como aquelas divulgadas pelo Dispute Resolution Board Foundation[1]e a análise de impacto regulatório desenvolvida pela ANTT a propósito da minuta de resolução, nota-se que esse contrato deixa boa parte do potencial do instituto de lado. Que a audiência pública contribua para a ANTT seguir com o aprimoramento das práticas em torno do instituto.
[1] Publicadas recentemente em língua portuguesa no Manual de Dispute Board: Guia das Melhores Práticas e Procedimentos. Dispute Resolution Board Foundation, 2023.