Fernanda Martinez Campos Cotecchia* e Raphaela Esperança Lepsch**
A publicação da Lei 14.273/2021 (“Lei das Ferrovias”), com o objetivo de facilitar investimentos privados nas ferrovias, trouxe relevante destaque para o modal ferroviário no cenário da logística nacional. O novo marco regulatório do setor e a posterior regulamentação pelo Decreto 11.245/2022, corroborou a importância de se debater a relevância do desenvolvimento do modal ferroviário nacional e suas implicações na matriz econômica, logística e ambiental.
Muito embora o Decreto 11.245/2022 regulamente várias matérias contidas na Lei das Ferrovias, tais como a forma de investimento pelo usuário investidor e pelo investidor associado, os procedimentos e os requisitos para a formulação de requerimento e para a realização de chamamento público para exploração de ferrovias mediante outorga por autorização e a instituição do Programa de Desenvolvimento Ferroviário, há ainda diversas lacunas a serem preenchidas decorrentes da referida lei.
Quanto aos projetos que englobam a recuperação de malhas ociosas, abandonadas ou em devolução, estas por serem consideradas brownfiled ainda dependem de regulamentação pela ANTT (Agência Nacional de Transporte Terrestre). Logo, diante do enorme interesse de investidores nestas áreas, a expectativa é que a regulamentação destas ocorra no segundo semestre de 2023, no entanto, as bases ainda são incertas.
Assim, em razão desta lacuna regulamentar e a procura de investidores em shortlines, vislumbrou-se pelos Estados a possibilidade de editar normas regulando a exploração de ferrovias que comecem e terminem dentro de seus limites territoriais. Tanto a Lei das Ferrovias quanto o Decreto 11.245/2022 trazem previsões sobre a delegação aos órgãos do poder executivo a regulamentação de determinadas fases do processo de autorização e chamamento público. Vejamos: art. 2º da Lei das Ferrovias: “(…) § 2º A União pode delegar a exploração dos serviços de que trata o inciso II[1] do caput deste artigo aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios, observada a legislação federal, nos termos do § 2º do art. 6º da Lei nº 12.379, de 6 de janeiro de 2011.”
Logo, diante da conjuntura atual e o respaldo legal, alguns Estados brasileiros já editaram leis ou estão com projetos de leis em andamento regulando a matéria no âmbito estadual.
O governo de Goiás, por exemplo, por meio da Agência Goiana de Infraestrutura e Transportes, visando facilitar a criação e ferrovias e exploração dos serviços de transporte ferroviário pelo setor privado, está com um projeto de lei para implantação do seu sistema ferroviário estadual em andamento na assembleia legislativa de Goiás.
Por sua vez, o Estado do Mato Grosso do Sul já possui em vigor a Lei 5.983/2022 a qual dispõe sobre o sistema ferroviário estadual e regimes de exploração dos serviços de transporte ferroviário de cargas e de passageiros sob jurisdição do referido Estado. De acordo com esta Lei, a autorização para a implantação e a exploração de infraestrutura ferroviária pelo setor privado, poderá será formalizada por meio de contrato de adesão, por prazo determinado (25 a 99 anos), a ser firmado com o Estado. Já para a exploração no setor público, será por concessão, mediante licitação, dos serviços referentes à exploração de infraestrutura ferroviária já existente ou à implantação de nova ferrovia integrante do sistema em regime de direito público e a respectiva exploração do serviço de transporte de cargas e de passageiros.
Da mesma forma, o Estado de Minas Gerais também possui em vigor a Lei 23.748/2020 que dispõe sobre a política estadual de transporte ferroviário.
Já o Estado do Paraná também avançou bastante e publicou a Lei 21.330/2022 que estabelece que a exploração de transporte ferroviário será realizada em regime privado, mediante outorga de autorização, na forma prevista nesta Lei e mediante regulamentação e diretrizes estabelecidas pelo chefe do Poder Executivo.
Como pode ser verificado, as leis estaduais podem atender aos interesses locais de forma mais especializada, e podem ser um meio importante para uma melhor integração entre os trechos férreos, como os projetos em curso, da Fico (Ferrovia de Integração do Centro-Oeste) e da Ferrogrão, a fim de tornar a malha mais coesa.
Por outro lado, deve-se destacar a existência de possíveis disputas futuras sobre o tema. Isso porque, a Constituição Federal (artigo 21) lista as competências exclusivas da União, estando dentre elas, mais especificamente a previsão de explorar, sob o regime de autorização, o transporte ferroviário que transponha os limites dos Estados (inciso XII, alínea “d”). Os Estados, possuem competência para agir, desde que não haja vedação (artigo 25, §1º da Constituição Federal).
Considerando que a competência privativa da União é referente à exploração do transporte ferroviário que “transponha os limites dos Estados“, não há vedação para que os Estados explorem as ferrovias que comecem e terminem dentro dos seus domínios. De fato, os Estados possuem competência para explorar o transporte ferroviário que não transponha seu território, uma vez que não há vedação nesse sentido. Essa exploração, contudo, pode ser feita com base no regime de autorização?
Ao julgar pelo movimento conjunto de edição de leis nesse sentido, parece que muitos Estados entendem que sim. No entanto, a reflexão é necessária porque, embora não haja vedação à possibilidade de explorar os trechos ferroviários intraestaduais, ao poder público só é permitida, de forma geral, a exploração de serviços públicos por meio de concessão e permissão, conforme diz expressamente o artigo 175 da Constituição Federal.
A modalidade de autorização, como anteriormente elencado, está inserta no dispositivo constitucional que dispõe sobre as competências privativas da União. É possível sustentar, portanto, que, embora aos Estados seja permitido explorar ferrovias, tal atividade não poderia ser levada à cabo por meio do regime de autorização, uma vez que o constituinte só previu a tal instrumento à delegação de serviços de titularidade da União.
Em defesa das legislações estaduais, poder-se-ia alegar que, embora não haja previsão expressa para o regime de autorização, tampouco há vedação. Sendo assim, com base em uma interpretação extensiva e sistemática da Constituição Federal, seria possível permitir aos Estados explorar serviços públicos pelo regime de autorização.
A discussão acerca do tema é tanto interessante quanto complexa, e seu desenvolvimento ao longo do tempo poderá resultar em debates a serem travados nos tribunais, em cujos resultados estaremos todos atentos.
Contudo, o que se verifica é que desde a alteração da conjuntura legal relacionada ao modal ferroviário, primeiramente com a publicação da Medida Provisória 1.065/2021 e na sequência com a Lei das Ferrovias e regulamentação correlata, existe um incremento na disponibilidade operacional das ferrovias brasileiras, sendo uma realidade a expansão da malha ferroviária federal o que necessariamente terá um impacto no crescimento econômico e na geração de empregos, interconectando cada vez mais a logística nacional, ou seja, trazendo as commodities do interior aos portos e terminais brasileiros.
[1] “II – nas ferrovias integrantes do Subsistema Ferroviário Federal (SFF), definidas pelo art. 20 da Lei nº 12.379, de 6 de janeiro de 2011: a) regular e outorgar a exploração de ferrovias como atividade econômica; b) regular, controlar, fiscalizar e penalizar as operadoras ferroviárias quanto a questões técnicas, operacionais, ambientais, econômicas, concorrenciais e de segurança; c) autorizar, suspender, interditar e extinguir o tráfego ferroviário; d) fiscalizar a segurança do trânsito e do transporte ferroviários; e) realizar e manter, na forma da regulamentação, o registro dos atos constitutivos autorreguladores; f) conciliar, dirimir e decidir os conflitos não resolvidos pela autorregulação.”