Douglas Estevam*
Desde julho de 2020, o Brasil deu a largada para o avanço da infraestrutura de saneamento básico no país, cujo ponto de partida foi a publicação do novo Marco Legal do Saneamento, editado pela União nos termos do art. 21, XX, da Constituição Federal.
No caso de alienação do controle acionário de companhias estaduais, o art. 14 da Lei 14.026/2020 permite que eventuais contratos de programa existentes entre os municípios e a empresa estatal sejam substituídos por novos contratos de concessão.
A princípio, percebe-se que a norma trata de dois tipos de contratos administrativos (contratos de concessão e contratos de programa), que poderão ser substituídos por novos contratos de concessão, ambos relacionados ao conceito de delegação administrativa, que é o “cometimento do exercício de certas atividades da administração pública a entes privados”1.
A diferença entre ambos é que os contratos de programa antes podiam ser delegados mediante ajustes administrativos entre os entes federativos sem a necessidade de licitação2, ao passo que os contratos de concessão sempre tiveram o procedimento licitatório como pressuposto3.
Após o novo Marco Legal do Saneamento Básico, as delegações dos serviços de saneamento básico tanto à iniciativa privada quanto às empresas estatais de outros entes da federação passaram a reclamar o mesmo procedimento administrativo.
De mais a mais, é importante destacar que a substituição de tais ajustes por novos contratos de concessão não é uma obrigação do gestor público, razão pela qual é possível a manutenção dos contratos de programa entre os municípios e a sociedade empresária, mesmo após sua desvinculação da Administração Pública.
Isso porque o art. 13, §6º, da Lei dos Consórcios Públicos, foi expressamente revogado pelo art. 9º, da Lei 14.026, de 15 de julho de 2020. Portanto, os contratos de programa podem, excepcionalmente, ser mantidos entre a sociedade empresária e os entes municipais, mesmo após a alienação do controle acionário da empresa estatal. A intenção consubstanciada na revogação foi justamente preservar o vínculo jurídico entre o poder concedente e a sociedade empresária, como regra de transição ao novo regime jurídico.
Mesmo assim, ainda poderia haver dúvidas sobre a constitucionalidade do art. 14, caput, da Lei 14.026/2020, diante da mutação contratual sem a prévia existência de licitação para a concessão dos serviços públicos de saneamento básico — ressalvada a decisão administrativa pela manutenção dos contratos de programa4.
Nesse sentido, sempre que o Poder Público manifestar interesse em prestar um serviço por meio de concessão, deverá fazê-lo através de procedimento licitatório. Trata-se de preceito constitucional estampado no art. 175, in fine, da Constituição Federal, que deverá ser observado na desestatização da companhia estadual de saneamento básico5.
É por essa razão que a venda do controle acionário da empresa estatal deverá ser concomitante à outorga do serviço público. Em outros termos, haverá duas operações simultâneas em um mesmo procedimento administrativo: a alienação das ações da companhia estadual e a delegação dos serviços públicos municipais, por meio de novos contratos de concessão.
A concomitância das duas operações se deve ao fato de que os ativos mais relevantes da empresa estatal são justamente os contratos de prestação dos serviços públicos. Assim, o art. 14, caput, da Lei 14.026/2020, determina que se observe o respectivo Programa Estadual de Desestatização, quando aplicável. Desta maneira, o procedimento licitatório fará parte de um programa desencadeado por autorização legislativa6, seguido de um decreto do chefe do Poder Executivo estadual. E, somente após o devido processo administrativo, nos termos do Programa Estadual de Desestatização, poderá ser realizada a oferta pública de ações mediante licitação.
Caso o Programa Estadual de Desestatização não disponha expressamente sobre a modalidade do certame ou caso a legislação estadual deixe de prever regra específica para a licitação da alienação do controle acionário da companhia, a Administração Estadual poderá realizá-la na modalidade de leilão, conforme art. 2º, §4º, c/c art. 4º, §3º, da Lei 9.491/19977.
Registre-se que essa questão é disputada na doutrina. Em posição contrária, o doutor Alexandre Santos de Aragão entende que o Programa Nacional de Desestatização seria uma lei aplicável apenas a nível federal, por destinar-se “exclusivamente aos ativos da União”8. Nesse sentido, entende o doutrinador que o art. 2º da Lei 9.491/1997, em diversas passagens, destaca exclusivamente sua aplicação à União, o que tornaria suas normas inextensíveis aos estados e aos municípios.
Discordo dessa opinião, entretanto, pois o Programa Nacional de Desestatização, inicialmente instituído pela Lei 8.031/1990, dispõe sobre normas gerais de licitação aplicáveis à desestatização de empresas estatais e de serviços públicos objeto de concessão (nos termos do art. 22, XXVII, da Constituição Federal) e, acima de tudo, chama-se ainda “nacional” (ao contrário, por exemplo, do PPI – Programa de Parcerias de Investimentos, que se aplica apenas à Administração Federal, nos termos da Lei 13.334/2016).
As diversas menções à União no art. 2º da Lei 9.491/1997, na verdade, servem apenas para discriminar as normas gerais daquelas outras que os entes federativos, em sua autonomia, podem dispor diversamente em seus respectivos Programas Estaduais de Desestatização. Contudo, não restam dúvidas de que, na ausência de legislação estadual específica, a lei geral aplicável seja o Programa Nacional de Desestatização, admitindo-se o leilão como modalidade licitatória.
Por outro lado, o doutor Alexandre Santos de Aragão sustenta a aplicação do artigo art. 2º, II, da Lei 8.987/1995, na ausência de norma estadual específica, o que atrairia a incidência da modalidade de concorrência ao certame. Consigne-se, outrossim, que a modalidade de diálogo competitivo foi incluída pela Lei 14.133/2021, posterior à opinião daquele doutrinador.
Além dessa querela doutrinária, cumpre mencionar que o Supremo Tribunal Federal possui um precedente de 2002, no bojo da ADI 1.582-6/DF9, quando foi instado pelo Conselho Federal da OAB a se manifestar sobre a constitucionalidade da alienação do controle acionário de empresas estatais em simultâneo à outorga ou à prorrogação da concessão. Em sua decisão unânime, a Corte declarou a compatibilidade do referido procedimento licitatório com o preceito estampado no art. 175, in fine, da Constituição Federal.
Mais recentemente, o mesmo tribunal teve a oportunidade de reiterar esse entendimento, na ementa do Referendo na Medida Cautelar na ADI 5.624/DF, segundo a qual “[a] alienação do controle acionário de empresas públicas e sociedades de economia exige autorização legislativa e licitação pública”10.
Portanto, desde que a alienação do controle acionário da companhia estadual seja concomitante à concessão dos serviços públicos municipais em devido processo licitatório, restará assegurado o adequado princípio da seleção competitiva do prestador dos serviços, mandamento de otimização previsto no art. 2º, XV, do novo Marco Legal do Saneamento Básico.