Rafael R. Garofano*
Esta breve reflexão se volta a abordar a questão específica e concreta de projetos de concessão ou parcerias público-privadas promovidos por estados ou municípios brasileiros. Por vezes, diante da ausência de lei autorizativa específica do ente público licitante, questiona-se a possibilidade de previsão do instituto da relicitação no contrato de concessão, a fim de que seja eventualmente utilizado no futuro, a despeito da falta de previsão legal e da lei federal ter limitado sua aplicação a setores específicos.
Assim delimitada a questão – sem obviamente a pretensão de esgotar o tema –, passamos a expor as razões pelas quais, segundo a nossa opinião, a previsão do instrumento da relicitação, se acaso vier a ser previsto na minuta de contrato, não trará riscos de nulidade ou prejuízos à segurança jurídica do projeto de concessão, sendo, em verdade, benéfico e alinhado ao interesse público.
Sabe-se que o instituto da relicitação aponta para uma hipótese de extinção consensual do contrato de concessão que surge em substituição ao processo administrativo de caducidade. Por meio dessa solução, o concessionário inadimplente, ao invés de se submeter a um procedimento administrativo de extinção anômala do contrato de concessão, entra em acordo com o poder concedente para possibilitar a sua extinção amigável ou consensual1.
De início, esclareça-se que a possibilidade de soluções consensuais como fonte de obrigações entre as partes de um contrato administrativo vem sendo cada vez mais aceita e empregada no direito administrativo nacional e nas normas de regulação setoriais, a partir de um criterioso trabalho de fundamentação por parte da doutrina especializada2. O ordenamento jurídico nacional reconhece a autonomia para que os sujeitos estabeleçam voluntariamente vínculos obrigacionais entre si, com obrigações oriundas não apenas da lei, mas também do próprio acordo de vontades.
Por esta razão, de antemão se esclareça que a possibilidade de emprego de soluções consensuais ou amigáveis nos contratos de concessão não estão a princípio restritas às hipóteses descritas ou “autorizadas” na Lei 13.448/2017, notadamente porque esta lei procurou disciplinar um determinado conjunto de relações mantidas exclusivamente na esfera da União. Além disso, tratou de setores específicos – rodoviário, ferroviário ou aeroportuário – em razão de uma série de especificidades que acomete as concessões que lhes são relacionadas, como a necessidade de constante regulação de tarifas, compartilhamento de ganhos econômicos etc.
Tais particularidades ensejaram a necessidade de se criar, na esfera da União, um regramento específico no âmbito federal para a relicitação de contratos em setores específicos3. Nesse sentido editou-se a Medida Provisória 752/2016, mais tarde convertida na Lei 13.448/2017.
Note-se que em nenhum momento a lei federal delimita ou circunscreve o procedimento de relicitação apenas à esfera da União. Muito ao contrário, deixa claro que o objetivo da norma é estabelecer diretrizes gerais para prorrogação e relicitação dos contratos de parceria nos setores que especifica (rodoviário, ferroviário e aeroportuário da administração pública federal), sem que isso implique, a nosso ver, em consequente vedação à utilização do instrumento da relicitação pelos demais entes federativos (estados, Distrito Federal e municípios).
Ainda que na esfera da União se possa dizer que somente estão autorizadas relicitações nos setores específicos regulados pela Lei federal 13.448/2017, a qual circunscreveu e delimitou o poder dos órgãos e entidades da União na utilização desse mecanismo – tornando obrigatórias uma série de condições –, o mesmo não se deve dizer em relação aos estados e municípios, cujas competências constitucionais na matéria relativa aos contratos de concessão permaneceu intacta mesmo após o advento dessa lei federal.
Em outras palavras – para que fique ainda mais claro –, o emprego da solução consensual para a extinção da relação entre concedente e a concessionária não é restrito unicamente às hipóteses e/ou aos setores descritos na Lei 13.448/2017 de aplicação no âmbito federal para os setores regula. Na verdade, a Lei 13.448/2017 se aplica apenas aos contratos celebrados pela administração pública federal nos setores rodoviário, aeroportuário e ferroviário, sem que isso signifique que essa modalidade de solução consensual não possa ser empregada por outros entes públicos em outros setores de serviços públicos.
É de nosso entendimento que a autonomia dos estados e municípios para regular a hipótese de extinção consensual permanece intacta no que toca à possibilidade de tratar da resolução amigável do contrato da concessão por meio da relicitação no âmbito local, fazendo isto de forma legislativa – a exemplo do estado de São Paulo que editou a Lei 16.933/2019 e regulou a figura da relicitação em seu âmbito, sem definir setores específicos de cabimento – ou por meio do emprego de uma regulação exclusivamente contratual.
Pela possibilidade de regulação contratual vale ressaltar que a própria Lei 11.079 determina que o contrato da concessão é responsável por prever quais são os casos de extinção da concessão, conforme se verifica no art. 5º desta lei em leitura conjunta com o art. 23 da Lei Geral de Concessões. A cláusula autorizadora da relicitação é compatível com as normas relativas às concessões que regulam a prorrogação e o término dos contratos de concessão, pois tem como objetivo assegurar a continuidade da prestação dos serviços.
Com isso, a mera utilização do termo “relicitação” pela lei federal não importa em exclusão da possibilidade de utilização do conceito por outros entes ou em outros setores, desde que o procedimento seja estabelecido de modo claro em regulação própria – legal ou contratual –, mediante a definição das hipóteses de cabimento, assim como dos parâmetros e procedimentos para seu emprego. Tudo isto deve estar previsto nas cláusulas contratuais pertinentes, sem significar o emprego do mesmo regramento disposto na Lei 13.448/2017.
Cabe observar que algumas entidades do poder público, a exemplo da CEF, já vem entendendo desta forma (pela regulação da relicitação no contrato) em concessões no setor de Iluminação Pública, por exemplo, e também a Abdib (Associação Brasileira da Infraestrutura e Indústrias de Base) entende pertinente a sua previsão especificamente no setor de iluminação pública, conforme disposto em seu Guia de Boas Práticas de PPPs de Iluminação Pública4, quando apresenta um modelo de edital e contrato para PPPs de IP contemplando a adoção da regulação contratual da relicitação.
A solução consensual traduzida na possibilidade de realização de aditivos contratuais, ou realização de novas licitações com o escopo de realizar transferência de controle, evitando o processo dramático da caducidade e dando ensejo à relicitação dos contratos críticos, é medida que já está de alguma maneira irradiada no direito e na prática da administração pública no Brasil.
Não sem razão, a solução está presente no PL 7.063/2017 (projeto de Lei do Novo Marco Geral de Concessões) que pretende também simplificar a adoção da solução para situações enfrentadas em vários setores com problemas semelhantes aos atualmente verificados em algumas concessões federais. A atual redação do PL 7.063/20175, além de indicar que a relicitação poderá ser empregada por acordo entre as partes, não estabelece qualquer restrição quanto ao setor de atuação e prevê que cabe a cada Poder Executivo (federal, estadual ou municipal) a determinação de quais contratos em situação crítica poderão ser relicitados.
Ainda assim, embora a prévia estipulação normativa na Lei Geral de Concessões seja desejável para afastar qualquer tipo de dúvida interpretativa acerca da possibilidade de sua disciplina se dar exclusivamente no contrato de concessão, isto não deve significar que a adoção do procedimento de relicitação na esfera dos estados e municípios dependa sempre, necessariamente, de uma prévia autorização legislativa. E isto se justifica, a nosso ver, por uma série de razões ancoradas na interpretação sistemática do ordenamento jurídico nacional.
Com efeito, afora os casos em que o próprio ente público regulamentou a hipótese por lei de sua competência – do que não se cogita desrespeitar o regramento legal pertinente –, a interpretação que nos parece mais consentânea com os princípios de atuação da administração pública, notadamente quando ausente norma legal estadual ou municipal específica, é a de admitir o emprego do mecanismo de resolução amigável do contrato, inclusive mediante a relicitação, e não a sua completa vedação.
Não é demais lembrar que o mecanismo de relicitação foi pensado com o objetivo justamente de conferir maior segurança jurídica ao projeto e aos envolvidos, inclusive no que tange aos financiadores, melhorando igualmente a sua financiabilidade. No que concerne aos financiadores, aliás, a previsão de extinção amigável do contrato lhes confere maior certeza em relação ao recebimento do saldo devedor de financiamento contraído pela concessionária para realização dos investimentos.
Além disso, a Lei Federal 8.987/1995 não possui qualquer vedação à possibilidade de extinção amigável das concessões de serviços públicos, enquanto a Lei Federal 8.666/1993, que se aplica supletivamente nesse caso, prevê expressamente a rescisão amigável em seu art. 79, II, como modalidade de extinção de contratos administrativos em geral. Ainda assim, essa modalidade de extinção é perfeitamente admissível independentemente de previsão legal expressa, dada a natureza consensual do contrato de concessão6.
Ainda que existam as denominadas cláusulas regulamentares da concessão, para a formação do vínculo é necessário o acordo entre as partes. Da mesma forma, o Poder Concedente e o concessionário poderão chegar a um acordo para extinguir o contrato, determinando consensualmente a melhor forma de fazê-lo para o bem do interesse público e do respeito aos direitos do particular. Uma das vantagens da rescisão amigável é o estabelecimento, em comum acordo, das consequências da extinção do contrato. A indenização devida ao concessionário poderá ser acordada entre as partes, propiciando-se soluções mais satisfatórias para ambas as partes.
A possibilidade de extinção amigável se apresenta como alternativa razoável e eficaz à eventual extinção litigiosa da concessão. Ela atende, nesse ponto, aos princípios da consensualidade e da eficiência na Administração Pública. Neste particular, a ausência de autorização legislativa prévia não impede a atuação da Administração Pública em conformidade com a lei em sentido amplo e com o Direito, entendido inclusive como conjunto de princípios que devem nortear a atuação dos agentes e dos órgãos públicos. A celebração de acordos pela Administração Pública, inclusive em substituição a medidas de típica autoridade estatal, não encontra apenas ampla aceitação na doutrina e na jurisprudência, como também encontra respaldo no direito positivo.
Tanto é assim que o art. 26 da Lei de Introdução às Normas de Direito Brasileiro confere competência genérica ao Administrador Público para firmar compromissos, junto aos interessados, com intenção de eliminar irregularidade, incerteza jurídica ou situação contenciosa na aplicação do direito público. O compromisso a ser firmado nesse sentido buscará solução jurídica proporcional, equânime, eficiente e compatível com os interesses gerais (Inciso I, art. 26 da LINDB).
Trata-se da inserção da consensualidade em funções típicas de autoridade estatal, nas quais a Administração atua pela via do ato administrativo unilateral, sem a participação ou o consenso dos destinatários. Este é o modo tradicionalmente adotado no domínio do processo administrativo punitivo da caducidade nos contratos de concessão, por exemplo. Nesses casos, em geral, a Administração continua detentora do poder de decidir unilateralmente e de impor à outra parte a sua vontade, independentemente do acordo com o destinatário, mas prefere substituir o exercício dessa prerrogativa pelo resultado obtido com o consenso.
Observe-se que o reconhecimento da possibilidade de pactuar o encerramento do contrato de concessão mediante acordo com o particular não implica em dispor do interesse público, ou subjugá-lo ao interesse particular. Trata-se apenas de melhor escolher os meios para atingi-lo com mais eficiência. Por isso, no que diz respeito à necessidade de lei específica para celebrar ditos acordos e sua forma de execução (relicitação), ainda que inexista norma específica habilitante para adoção do mecanismo no caso particular, é possível sustentar que o ordenamento jurídico brasileiro admite implicitamente a possibilidade de acordos como alternativa ao ato imperativo, desde que as normas de competência não imponham o ato unilateral como a única via juridicamente possível.
A verdade é que nada há de ilegal nesta conduta, desde que a Administração continue sempre visando ao atendimento do fim de interesse público e não adote práticas contratuais que impliquem em descumprimento direto ou indireto da lei. Sempre que motivadamente necessário, não seria razoável pressupor que a atividade da Administração estaria limitada aos instrumentos previamente definidos pela legislação quando evidentemente o provimento dos direitos seria mais bem realizado através de arranjos contratuais inovadores, a partir de técnicas contratuais mais flexíveis, adaptáveis às circunstâncias do caso concreto.
Ademais, a satisfação do interesse público através da via consensual não pode ficar limitada ao princípio da estrita legalidade segundo a sua concepção mais formal (reserva de lei), pois tal vinculação resultaria na impossibilidade de o Estado cumprir com as suas múltiplas e diversificadas tarefas, em clara violação aos deveres e finalidades estatais na busca pela concretização dos direitos fundamentais dos cidadãos e em nítido desrespeito ao princípio da eficiência administrativa. Trata-se da interpretação do princípio da legalidade aplicado aos contratos mais aderente aos postulados da “Administração-prestadora”, em contraposição à sua concepção original formulada em vista da “Administração-agressiva”7.
Obviamente que a celebração de ajustes e acordos não afastará a incidência das regras publicistas e, supletivamente, dos princípios da teoria geral dos contratos e das disposições de Direito privado. Mas será inegável a capacidade contratual da Administração Pública para celebrar o ajuste, bastando para tanto que a celebração do acordo se constitua como a alternativa mais eficiente para o atingimento do interesse público subjacente à contratação e atenda plenamente à finalidade objetivada pelo ente público contratante.
Desde que atendidos os imperativos do princípio da legalidade ampla (na sua vertente abrangente ou “não estrita”), e desde que a escolha pela via consensual se apresente como solução mais eficaz para a satisfação do interesse público prevalecente em dada situação concreta (finalidade), o mecanismo consensual não pode restar inviabilizado pelo mero fato de inexistir prévia conformação normativa do instrumento que se pretenda celebrar. A capacidade contratual da Administração para celebrar acordos passa a ser, portanto, um dos vetores da sua atuação.
A mesma situação se coloca diante de contratos substitutivos ou integrativos de atos unilaterais, ou melhor, no exercício de poderes públicos em que a Administração atua, tradicionalmente, pela via de atos administrativos unilaterais ou “não-consensuais”. É o caso precisamente da decisão sobre a caducidade da concessão.
Nesses casos – de celebração de acordos no lugar de atos administrativos – a Administração Pública continuará tendo como pressuposto de sua atividade a plena observância da Lei e a atuação dentro de seus limites e finalidades, mas no módulo consensual, ao invés de conferir discricionariedade, confere-se uma margem de possibilidades com vistas ao atingimento das finalidades públicas.
Até porque a busca por soluções mais aderentes às finalidades da norma através do consenso geralmente atinge de maneira mais adequada e mais eficiente os objetivos visados se comparadas ao mero exercício da discricionariedade através do ato8. Ao privilegiar o consenso, a atuação consensual resulta na eficiência administrativa e reduz a litigiosidade, pois o particular que consensualmente participa da formação do conteúdo do ato tem naturalmente mais propensão a cumpri-lo espontaneamente, sem questionar a sua validade perante o Judiciário.
Nesta medida pode-se falar até mesmo em preferência do instrumento consensual ao ato unilateral, pois se o contrato só faz sentido de ser usado na medida em que contribua para a eficiência do agir administrativo, verificada e justificada a sua adoção por este motivo a Administração deve preferi-lo à prática do ato unilateral, sob pena de afronta ao princípio da eficiência administrativa previsto no caput do Art. 37 da CF e ao preceito mais geral da boa administração.
Lembre-se que o debate em torno da necessidade de precedência de Lei para celebração de acordos administrativos substitutivos de sanção foi travado no Brasil no âmbito de autoridades reguladoras, que criaram uma disciplina própria para exercer a atividade fiscalizatória e sancionatória em face dos regulados submetidos à sua alçada através de atos normativos específicos que preveem a possibilidade de substituição da sanção por termos de compromisso assinados junto aos regulados, muitas vezes sem previsão expressa de sua possibilidade na Lei instituidora da Agência.
A doutrina, ao analisar este tema diante da ausência de regulamento permissivo, concluiu que é da Agência “a competência normativa para dizer se, e em que condições, um acordo substitutivo é uma causa excludente da aplicação ou execução de sanções”9. Ou seja, no silêncio da lei, a faculdade sancionatória da Agência permitiria a obtenção da defesa de interesses públicos por outros meios que não os sancionatórios, sendo possível a adoção de mecanismos alternativos como a celebração de termos de ajustamento de condutas e similares. Tanto é assim que, no âmbito das agências, a possibilidade de celebração de acordos administrativos não raro vem prevista em atos normativos expedidos pela própria autoridade independente, sem que se cogite qualquer afronta ao princípio da legalidade.
Nesse sentido, a celebração de contratos sobre o exercício de poderes públicos não implica, de modo automático e independentemente de qualquer avaliação quanto ao conteúdo e à finalidade do contrato, dispor do interesse público no sentido de deixar de persegui-lo. Trata-se justamente do contrário, pois muitas vezes o interesse público é mais bem atingido mediante a prática de acordos consensuais do que através da expedição de atos unilaterais e imperativos pela Administração. Significa dizer que os contratos alternativos a atos unilaterais são, no mais das vezes, o instrumento mais adequado para a satisfação do interesse público objetivado, e podem corresponder à própria expressão do interesse público10.
É precisamente esse um dos sentidos – senão o mais relevante – da cláusula contratual que possibilita substituir a decretação de caducidade da concessão pelo acordo em procedimento de relicitação, inclusive na perspectiva da segurança jurídica e da continuidade do serviço público. E note-se que a previsão da possibilidade não significa que deverá efetivamente ser aplicada no caso concreto, tendo em vista a necessidade de avaliação do caso e ponderação das medidas mais consistentes e mais eficientes sob o ponto de vista do interesse público e da continuidade da concessão, com mitigação dos prejuízos para as partes e para a própria administração pública. O que não se cogita como correto é impedir a priori a conclusão de acordos consensuais na ausência de lei específica habilitante. Não porque, mesmo na ausência de expressa previsão, é sustentável a possibilidade da celebração desses acordos no Direito brasileiro, pois “está implícita no poder de decidir unilateralmente e de ofício a opção por se decidir de modo consensual com o destinatário da decisão”11. Assim, se à Administração é permitido agir de forma unilateral, no campo de sua discricionariedade, com maior razão ainda lhe deve ser autorizado agir mediante o consenso com o destinatário da decisão administrativa, de forma e melhor cumprir com os objetivos da atividade e diminuir a conflitividade de suas ações12.
Se é verdade que toda ação estatal visa a atingir uma determinada finalidade prescrita explícita ou implicitamente pela norma, compete à Administração julgar qual instrumento de ação (unilateral ou consensual) apresenta-se em cada caso mais adequado e potencialmente mais eficiente para lograr atingir os fins pretendidos13. Trata-se, afinal, de escolher os meios para melhor satisfazer o interesse público, nunca de abrir mão (dispor) do interesse público em si mesmo considerado em vista de interesses da própria Administração ou daquele que com ela consente no âmbito do instrumento contratual substitutivo do ato.
Diante dessas considerações, que reforçam e legitimam a atuação da Administração pela via consensual mesmo quando inexistente permissivo normativo expresso – sem que isso represente qualquer afronta ao ordenamento jurídico –, conclui-se que a possibilidade de realização de acordos pela Administração Pública a fim de evitar a caducidade da concessão não é mera especulação argumentativa, mas sim uma possibilidade jurídica real e compatível com nosso ordenamento – desde que ausente vedação expressa em lei do ente competente – como forma de garantir a eficiência das decisões adotadas no âmbito do contrato de delegação de longo prazo.
Por fim, é certo que tal possibilidade possui aderência às boas práticas no âmbito de concessões e parcerias público-privadas. A inclusão no contrato da hipótese de extinção amigável seguida de relicitação tem sido adotada em recentes projetos de parcerias público-privadas. São exemplos relativamente recentes as licitações de PPP de iluminação pública dos municípios de Porto Alegre (RS), Vila Velha (ES), Petrolina (ES), Nova Lima (MG), Belém (PA), Aracaju (SE) e, notadamente, do município de Curitiba (PR), conforme as minutas de contrato de concessão colocadas em consulta pública.
Em relação a este último, aliás, vale fazer nota de que o instituto da relicitação está presente na minuta de instrumento contratual e durante a consulta pública não houve qualquer manifestação contrária dos participantes. Ao contrário, foi solicitado o incremento na cláusula específica de regramento da extinção amigável para o caso de não haver sucesso no processo da relicitação e conforme se poderá verificar, a sugestão foi aceita, ou seja, a extinção amigável no contrato não apenas foi incorporada, mas também aprimorada14.
Não obstante, é certo que do ponto de vista jurisprudencial, o tema da extinção amigável na forma da relicitação em contratos – sobretudo fora dos setores regulados pela Lei Federal 13.448/2014 e em entes da administração pública municipal ou estadual – ainda não foi suficientemente enfrentado para que se cogite alguma resistência das cortes quanto à aplicação do instituto pelos município e estados.
Nesse sentido compreendemos o receio de que tais questões possam ser objeto de questionamento perante órgãos de controle da Administração Pública. Este risco, infelizmente, não pode ser afastado de forma absoluta, tendo em vista a dinâmica comum de impugnações e representações em face de quaisquer descontentamentos em relação aos termos e condições de participação nas licitações públicas no Brasil. Ainda mais neste tipo de projeto, cujos documentos são bastante extensos e de alguma complexidade, onde é comum haver alguma indefinição ou insegurança em torno de alguns temas que estão sempre em evolução em nosso ordenamento jurídico, inclusive diante de novidades legislativas e da evolução – ou mudanças episódicas de posicionamento – da própria jurisprudência.
Não obstante, procuramos oferecer razões e fundamentos consistentes para justificar e defender a previsão dos dispositivos, tendo em vista uma interpretação possível da legislação. É certo que não são matérias totalmente pacificadas com jurisprudência uníssona como seria conveniente, mas vale novamente pontuar que tais cláusulas não representarão falhas ou motivo de nulidade de todo o processo licitatório, quando muito poderão ser revistas em sede de consulta pública ou de republicação do edital de licitação, embora nem mesmo esta seja a tendência considerando a experiência recentes de projetos similares, licitados de modo exitoso.
Ademais, a própria falta de impugnação ou pedidos de suspensão dos certames pelo judiciário ou Tribunais de Contas é capaz de representar a possibilidade, com algum nível de segurança, da adoção do instituto da relicitação pelos Municípios e Estados, para além dos setores regulados pela Lei Federal nº 13.448/14, mesmo porque tal aplicação se alinha à legislação relativa às concessões na medida em que representa a adoção de melhores práticas sobre o regime de concessão de serviços públicos, que exige a regularidade, a continuidade, a eficiência e segurança jurídica atreladas aos investimentos e aos riscos inerentes aos contratos de parceria de longo prazo.
Em arremate, consideramos que a inclusão da cláusula de relicitação representa solução juridicamente sustentável, alinhada com o interesse público e expectativa do mercado de potenciais licitantes, além de condição favorável ao fortalecimento da relação contratual e pleno atingimento do objetivo do contrato administrativo a ser entabulado, motivo pelo qual a sua inclusão nas minutas de edital e contrato de concessão nos setores de infraestrutura de âmbito estadual e municipal não pode depender de uma interpretação restritiva e legalista da disciplina das concessões no âmbito local, dependente de uma prévia autorização específica na lei em sentido estrito.