*Mauricio Portugal Ribeiro
“Tire as suas sandálias para pisar sobre esse chão, porque ele é sagrado” – Deus falando a Moisés em Êxodo 3:5.
No mercado jurídico, a defesa de teses que sejam entendidas (ou propaladas) como novas ou originais gera recompensas aos seus criadores: exposição do nome, novos contratos de prestação de serviços, tapinhas nas costas, “likes” e palminhas em redes sociais.
Essa circunstância produz incentivos perversos: soluções tradicionais são preteridas, ainda quando já tenham sido exaustivamente testadas e sigam funcionando bem.
No mundo das concessões e PPPs, esse fato tem se repetido ao longo dos últimos anos:
Em 2019 e 2020, durante a gestão de Rodrigo Maia como Presidente da Câmara de Deputados, alguns parlamentares conseguiram emplacar a ideia de uma comissão para reformar a lei de concessões e PPPs. Sem muito amparo técnico, em lugar de propor uma reforma pontual das leis existentes de concessão e PPP, essa comissão optou por elaborar um anteprojeto de nova lei para substituir as leis de concessão e PPP existentes.
Não foi criada uma comissão de especialistas para debater e opinar sobre a conveniência de se fazer uma reforma pontual nas leis existentes, que ninguém tem dúvida que funcionam bem, em lugar de substituí-las, ou para o levantamento dos temas a serem tratados na nova lei e sugestão do seu conteúdo, como normalmente se fazia no passado. As decisões sobre tudo isso foram tomadas pelos deputados após uma série de reuniões que promoveram para recolher ideias, não necessariamente com especialistas no tema.
O anteprojeto de lei que resultou dessa comissão foi desenvolvido pela assessoria legislativa da câmara dos deputados, que evidentemente não é composta por especialistas no tema. A qualidade do documento originário era sofrível. Trazia soluções para problemas inexistentes. E esquecia de dar solução aos que existiam.[1]
Teóricos do direito acolheram a ideia de uma nova lei que substituiria as leis existentes de concessão e PPP e passaram a tentar convencer os deputados a incluírem no anteprojeto dispositivos que deixariam a sua marca na nova lei.
Felizmente, o anteprojeto não foi adiante.
Em 2020, quando surgiu a pandemia, a lei e os contratos de concessão e PPP alocavam o risco de força maior e caso fortuito ao poder concedente. Ninguém tinha dúvidas de que pandemia se caracterizava como caso fortuito e força maior e, por isso, os concessionários tinham direito a reequilíbrio dos contratos, o que levaria o custo da pandemia a ser arcado igualmente por todos os contribuintes (inclusive pela própria concessionária), por meio da atribuição dos seus custos ao poder concedente, ao estado.[2]–[3]
Teóricos do direito administrativo manifestaram-se para defender soluções heterodoxas, teses supostamente ousadas, que descumpriam as regras que estavam claramente estabelecidas nas leis e nos contratos. Apesar de União, Estado de São Paulo e outros estados e municípios terem realizado os reequilíbrios conforme as regras, alguns estados e municípios se apoiaram nas teses heterodoxas para não cumprir as suas obrigações contratuais.
Em 2015, supondo que a corrupção revelada pela Operação Lava Jato tinha ocorrido por problemas na legislação que rege as licitações e contratos de concessão e PPP, o advogado Modesto Carvalhosa, especialista em direito societário e uma das vozes mais ativas do lavajatismo, apesar de não ter qualquer experiência no campo das licitações e dos contratos públicos, propôs que a lei proibisse a exigência de apresentação pelos participantes de licitações de atestados técnicos ou índices contábeis representativos da saúde financeira das empresas para a definição da sua habilitação. A sua intenção era que a habilitação fosse feita com base somente na contratação de um seguro de cumprimento de contrato por cada participante da licitação no valor total do investimento previsto no contrato. Isso supostamente era um meio de evitar que as licitações fossem dirigidas por agentes públicos mal-intencionados.
A proposta chegou a ganhar a forma de anteprojeto de lei, no qual renunciava-se aos instrumentos tradicionais e internacionalmente utilizados para habilitação em licitações de concessões e PPPs, para obstar um suposto dirigismo licitatório.
A ideia entusiasmou vários teóricos do direito administrativo, que a defendiam sem qualquer avaliação sobre a sua viabilidade considerando a realidade do mercado securitário e a situação econômico-financeira das empresas que teriam que emitir contragarantias a favor das seguradoras para viabilizar a emissão das apólices de seguro-garantia.[4]
Felizmente, o anteprojeto não foi em frente.
A bola da vez é a renegociação de contratos de concessão.
Já em 2016 se tornara claro para especialistas nos setores de infraestrutura que os contratos de concessão de rodovias e aeroportos federais celebrados entre 2012 e 2014 não poderiam ser cumpridos nas condições originalmente pactuadas, como por exemplo, os contratos do Galeão, da Concebra, da CRO, de Viracopos, da Via 040, da MS Via, entre outros, que foram modelados em contexto de crescimento econômico acelerado e, posteriormente, impactados pela maior crise econômica da história do país.
Naquele momento, quase nenhum teórico se aventurou a defender a necessidade de renegociação ou mesmo de reequilíbrio desses contratos. É que o lavajatismo que campeava nessa época sem crítica os levava a supor que os problemas havidos nesses contratos decorriam da corrupção dos grupos econômicos que controlavam as concessionárias.[5]
Em 2023, o novo governo federal decidiu que era correto renegociar e reequilibrar esses contratos. O TCU (Tribunal de Contas da União), que nos últimos meses passou a ver bônus político em autorizar as renegociações, tendo inclusive criado para isso a SecexConsenso (Secretaria de Controle Externo de Solução Consensual e Prevenção de Conflitos) – renegociações essas que não se realizaram antes justamente por medo das condutas punitivas do TCU e de outros controladores da administração pública – acaba de estabelecer parâmetros que aparentemente viabilizam as alterações necessárias à continuidade desses contratos.
Nesse contexto, vários teóricos do direito administrativo passaram a considerar a renegociação de contratos a nova linha de frente do direito administrativo, acolhendo de maneira laudatória o posicionamento do governo e do TCU e propondo novas explicações e teorias para isso, que em geral desconsideram os mecanismos tradicionais, que são produto do enfrentamento de situações semelhantes no passado, e que estão disponíveis no nosso ordenamento jurídico.[6]
Os fatos acima, entre muitos outros, revelam pelo menos duas tendências na teoria do direito administrativo. A primeira é a neofilia, um deletério amor à novidade, que é sempre bem acolhida em detrimento das soluções tradicionais e bem testadas, algo que talvez tenha se tornado mais intenso com o surgimento da internet e das redes sociais. A segunda é uma deferência acrítica às ideias e decisões adotadas por aqueles que se encontram no poder, algo que, aliás, já foi notado em estudos históricos e sociológicos sobre a relação entre a comunidade jurídica e o poder.
A fonte dessas duas características talvez seja alguma combinação entre a busca de protagonismo, em vista dos incentivos já descritos na introdução deste artigo, e dos bônus que podem decorrer do agrado àqueles que estão no poder, e o desconhecimento do chão no qual pisam, da realidade na qual se executam os contratos. Propor grandes novidades que resolveriam problemas que não existem gera a glória fácil. Os louros ficam para os proponentes. Os custos prováveis, para todos nós.
[1] Nessa época, publiquei dois artigos nesta Agência iNFRA, mostrando no primeiro texto os equívocos em criar uma nova lei para substituir as leis de concessão e PPP existente; e, no segundo, em coautoria com Carlos Alexandre Nascimento, tratou-se da agenda de temas que deveriam ser objeto de solução por meio de mudanças pontuais nas leis existentes.
[2] Vide dois artigos de minha autoria publicados nesta Agência iNFRA nos quais defendi o cumprimento dos contratos de concessão e a realização do reequilíbrio em face da caracterização da pandemia como evento de caso fortuito e força maior.
[3] Neste sentido, v. Eduardo Jordão, As concessões e o princípio jurídico da dor de cotovelo, Coluna Publicistas, Jota, em 15 de agosto de 2023, disponível aqui.
[4] Nessa época, publiquei pelo menos dois artigos me posicionando contra essa ideia. Seguem os links para os artigos, aqui e aqui.
[5] Publiquei diversos artigos e vídeos, os primeiros já em 2016, defendendo a necessidade de reequilibrar e renegociar esses contratos. Seguem links para artigos publicados em 2016 e em 2017, no qual me posiciono a favor do reequilíbrio e renegociação desses contratos.
[6] Vide nesse sentido texto de minha autoria publicado nesta Agência iNFRA, que busca mapear as fontes de flexibilidade de contratos de concessão e PPP.