Ana Cândida de Mello Carvalho* e Debora Signorelli Carvalho**
Em meio à crise sanitária decorrente da pandemia de Covid-19, o Governo Federal publicou a Lei nº 14.026, de 15 de julho de 2020, que alterou o marco legal do saneamento básico, representando importante avanço no ordenamento jurídico pátrio.
A nova lei tem como objetivo central superar o gargalo histórico do país no setor, que tem parcela significativa de sua população privada do acesso à água potável e aos serviços de tratamento de esgoto.
Para atingir a almejada universalização dos serviços de saneamento básico, a lei exige que os contratos de prestação de serviços do setor estabeleçam metas de universalização que garantam que, até 31 de dezembro de 2033, 99% da população seja atendida com água potável e 90% com coleta e tratamento de esgotos. Os contratos deverão também prever metas quantitativas de não intermitência do abastecimento, de redução de perdas e de melhoria dos processos de tratamento. Os contratos vigentes que não contemplarem essas metas terão até 31 de março de 2022 para viabilizar a inclusão.
Para alcançar as metas, o novo marco legal busca conferir uniformidade regulatória e segurança jurídica ao setor, como forma de garantir maior atratividade aos projetos e impulsionar os investimentos privados.
Vale relembrar que saneamento básico é o conjunto de serviços públicos, infraestruturas e instalações operacionais de abastecimento de água potável, esgotamento sanitário, limpeza urbana e manejo de resíduos sólidos, além da drenagem e manejo das águas pluviais urbanas.
A escolha feita pela Constituição Federal de 1988 de atribuir aos municípios a competência para a exploração desses serviços – juntamente com os estados, no caso de regiões metropolitanas – gerou uma fragmentação regulatória que imprime certa complexidade na implementação dos projetos e gestão dos contratos de prestação de serviços.
Ciente desse cenário, a Lei nº 14.026/2020 buscou fortalecer o papel da ANA (Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico), que até então focava suas atividades na regulação e monitoramento de recursos hídricos. À ANA foi atribuída a importante função de instituir normas de referência para a regulação dos serviços públicos de saneamento básico, dirigidas aos titulares dos serviços e às agências reguladoras e fiscalizadoras. Essas normas deverão tratar, entre outros, dos seguintes temas: padrões de qualidade e eficiência dos serviços, metas de universalização, regulação tarifária, critérios para a contabilidade regulatória e metodologia de cálculo de indenizações por investimentos não amortizados ou depreciados.
Caso queiram acessar recursos públicos federais e financiamentos com recursos da União, estados e municípios ficam obrigados a observar as normas de referência editadas pela ANA. Essa foi a forma encontrada pelo governo para incentivar a adoção dessas normas.
Visando ao cumprimento das atribuições que lhe foram conferidas pelo novo marco, a ANA instituiu a Consulta Pública nº 003/2020, para receber contribuições para a proposta de agenda regulatória em saneamento básico para os anos 2020 a 2022. A previsão da agência é que as normas passem a ser publicadas a partir do 1º semestre de 2021.
Com relação à prestação dos serviços de saneamento básico por terceiros (i.e., entes não integrantes da administração do titular dos serviços), a Lei nº 14.026/2020 exige a realização de processo licitatório visando à celebração de contratos de concessão. Fica expressamente vedada a celebração de contratos de programa, que durante os últimos anos foram amplamente utilizados para reger a contratação entre os municípios e as companhias estaduais de saneamento básico. Esse modelo vinha sofrendo muitas críticas, principalmente pela ausência de incentivo à competitividade e ao cumprimento de metas pelas estatais prestadoras dos serviços.
Os contratos de programa que ainda estiverem em vigor assim permanecerão até o advento de seu prazo, mas deverão ser alterados com vistas à transição para o novo modelo.
Além disso, os contratos passam a ter como condições de validade a existência de estudo que ateste a viabilidade técnica e econômico-financeira da execução dos serviços, bem como de metas e cronograma de universalização. Essa previsão deverá impactar não só os contratos de programa, mas todos os contratos do setor.
Embora a lei tenha estabelecido o prazo de 90 dias para a edição do decreto regulamentando a metodologia para comprovação da capacidade econômico-financeira das prestadoras, até o momento o normativo não foi publicado. O Ministério do Desenvolvimento Regional apenas instaurou consulta pública sobre o tema, sem, no entanto, apresentar uma minuta de decreto para apreciação pelos interessados.
Outra importante mudança trazida pela nova lei são os instrumentos voltados à regionalização dos serviços: a Unidade Regional de Saneamento Básico, a ser instituída pelos estados; e o Bloco de Referência, a ser instituído pela União, ambos criados para permitir agrupamento de municípios não necessariamente limítrofes. O objetivo é conferir sustentabilidade técnica e econômico-financeira a municípios e regiões menos favorecidos.
Também merece destaque a possibilidade de alienação do controle acionário das companhias estatais que prestam serviços de saneamento, que deverá ocorrer mediante processo licitatório. Nesses casos, a anuência prévia do ente público titular dos serviços para a alienação de controle só será necessária se houver outras alterações nos contratos de programa além da inclusão das metas obrigatórias.
Apesar de trazer importantes avanços ao setor e conter previsões com potencial de conferir maior estabilidade regulatória e segurança jurídica necessárias à atração de investimentos privados, a efetividade dessas mudanças dependerá de sua tempestiva e adequada regulamentação.
Até o momento, o governo publicou o Decreto Federal nº 10.430, de 20 de julho de 2020, que dispõe sobre o Comitê Interministerial de Saneamento Básico criado pela Lei nº 14.026/2020 para implementar a política federal de saneamento básico e articular a atuação dos órgãos federais na alocação de recursos. Aguarda-se, pois, a edição de novos decretos e normas e a implementação das medidas necessárias para que a lei produza os efeitos almejados.
Destaque-se, por fim, que os vetos presidenciais a dispositivos do projeto de lei que deu origem ao novo marco (Projeto de Lei nº 4.162/2019) ainda poderão ser revistos pelo Congresso Nacional. O ponto mais polêmico diz respeito ao veto que extinguiu a possibilidade de renovação dos atuais contratos de programa por mais 30 anos.