iNFRADebate: O ambiente privado para investimentos em infraestrutura e a urgente necessidade de superar a discussão sobre de quem é o risco dos impactos da pandemia nos contratos administrativos

Mauricio Portugal Ribeiro*1

A pandemia do coronavírus se caracteriza como evento de caso fortuito ou força maior e os atos de autoridade que estabeleceram restrições e exigências para a combaterem se caracterizam como fato do príncipe ou fato da administração. No presente artigo, chamaremos em conjunto de “Eventos Extraordinários” as ocorrências que se enquadrem nas categorias jurídicas de força maior, caso fortuito, fato do príncipe e fato da administração. 

O risco da ocorrência de eventos Extraordinários é alocado por lei (art. 65, inc. II, alínea “d”, da Lei 8.666/93) e geralmente também pelos contratos administrativos à administração pública.

Apesar disso, desde o surgimento da pandemia do coronavírus, tornou-se comum em seminários, artigos, ou mesmo em peças nos processos administrativos sobre o reequilíbrio desses contratos, aparecerem argumentos com o objetivo de compartilhar os impactos da pandemia entre a administração pública e seus contratados.

Já se disse, por exemplo, que a pandemia se constitui em risco “extraordinaríssimo” ou “muito extraordinário” e por isso não deveria ser considerada Evento Extraordinário para efeito da administração pública arcar com as suas consequências2.

Na mesma linha, interpretou-se equivocadamente que, em outros países, a pandemia seria risco compartilhado entre as partes dos contratos administrativos3 para afirmar que o Brasil seria um pária no mundo por cumprir as regras legais e dos seus contratos administrativos que alocam, como já dissemos, o risco de Eventos Extraordinários à administração pública. 

No caso dos contratos de concessão e PPP (parceria público-privada), tem sido comum acadêmicos debaterem se o artigo 65, inc. II, alínea “d”, da Lei 8.666/93, que atribui o risco dos Eventos Extraordinários à administração pública, incide sobre esses contratos. Contudo, a grande maioria dos contratos de concessão e PPP em curso tem cláusula que atribui claramente o risco de caso fortuito, força maior e fato do príncipe ao poder concedente, de maneira que a discussão sobre a incidência da Lei 8.666/93 não afeta a discussão sobre quem deve assumir os impactos da pandemia. Isso tudo em um contexto em que o art. 124 da Lei 8.666/93 diz ser ela aplicável aos contratos de concessão.

Outro estratagema é supor que noções como caso fortuito e força maior são apenas instrumentos para evitar as consequências do inadimplemento de obrigações, usando o tratamento do tema no direito privado e ignorando que, no direito público, o risco dos eventos de caso fortuito e força maior – e, portanto, os impactos da variação de receitas ou de custos decorrentes desses eventos – são atribuídos por lei e pelos contratos ao poder concedente.

Há, além disso, as tentativas de levantar objeções à teoria clássica do equilíbrio econômico-financeiro, buscando não a aplicar à pandemia. Evidentemente, críticas cujo objetivo é a alteração da compreensão padrão sobre equilíbrio econômico-financeiro devem ser objeto de discussão acadêmica ou no meio profissional com objetivo de conformar cláusulas dos novos contratos a serem firmados e não serem aplicadas retroativamente para reinterpretar contratos que foram feitos sob a égide da teoria padrão, em um intento pseudossofisticado de revogação do passado.

Existem, também, os esforços para descaracterizar os atos administrativos que criaram restrições e exigências para combate da pandemia como fato do príncipe ou fato da administração alegando que, como eles se basearam em recomendações científicas, faltariam-lhes o “requisito da discricionariedade”, criando assim “ad hoc” uma nova exigência para o  enquadramento de atos nas categorias de fato do príncipe e da administração.

Enfim, em todos esses casos, o esforço é de encontrar argumentos que justifiquem compartilhar equanimemente os impactos da pandemia nos contratos administrativos entre administração pública e os seus contratados.

Nos últimos dias, surgiu mais um esforço argumentativo nessa direção: a afirmação de que os contratos administrativos alocam à administração pública apenas riscos e não incertezas. Sustenta-se, assim, que a Lei 8.666/93 e os contratos administrativos em geral teriam alocado à administração pública apenas os riscos de Eventos Extraordinários, mas não as incertezas. E se complementa esse raciocínio aduzindo que os impactos da ocorrência de incertezas – uma vez que não estariam alocadas expressamente à administração pública – deveriam ser compartilhados de forma equânime entre a administração pública e seus contratados.

O argumento, contudo, nos parece extremamente superficial: usa categorias econômicas que não estavam presentes no momento de elaboração da regra legal e das regras contratuais para a posteriori limitar, reduzir obrigações que claramente abrangiam um espectro mais amplo.

A distinção entre risco e incerteza na economia vem do princípio do século XX e foi elaborada por Knight4 e Keynes5.

No mundo jurídico brasileiro, por sua vez, a distinção risco e incerteza só recentemente passou a ser objeto de tratamento explícito nos livros doutrinários ou de teoria jurídica. Na legislação (elaborada em regra por juristas ou técnicos dos poderes Legislativo ou Executivo) e nos contratos públicos (elaborados por membros da advocacia pública), tanto incertezas quanto riscos sempre foram tratados em conjunto. Noções, por exemplo, como caso fortuito, força maior, fato do príncipe, teoria da imprevisão, que são usadas com frequência no mundo jurídico, foram aplicadas e são aplicáveis tanto a eventos que economistas poderiam classificar como risco quanto a eventos que poderiam ser classificados como incertezas. 

Simplesmente, a distinção risco e incerteza, apesar de ter origem na teoria econômica do princípio do século XX, no Brasil, só muito recentemente passou a permear a teoria jurídica de ponta preocupada com análise econômica do direito. Mas, claramente, ela não foi – e continua não sendo – considerada quando da elaboração de dispositivos legais e contratuais que alocaram o risco de Eventos Extraordinários, como a pandemia, à administração pública.

Por isso, parece-me mais uma tentativa oportunista de afirmar que os contratos e a lei não alocam os impactos das incertezas à administração pública, pois a distinção entre risco e incerteza simplesmente não integrava (e em geral ainda não integra) o espectro de instrumentos utilizados pelos juristas e pelos operadores do direito entre nós para elaborar as cláusulas contratuais e as regras legais que distribuem riscos.

Para além das tentativas de descumprir a atribuição de riscos prevista nos contratos contestando as regras legais e contratuais vigentes, há ainda os ardis processuais na esfera administrativa usados com intentos semelhantes. Em um contexto em que as agências reguladoras deveriam funcionar como um juiz na esfera administrativa, imparcial entre o poder concedente e o concessionário, para julgar os pleitos de reequilíbrio que decorrem da pandemia, tem ocorrido de, em estados ou municípios, o poder concedente, particularmente as suas procuradorias gerais, emitir posicionamentos sobre o tema com pretensão de vincular toda a administração indireta, inclusive as agências reguladoras, que são constituídas em regra sob a forma de autarquias. Portanto, o poder concedente busca usar a natureza de autarquia da agência reguladora para impedir o exercício imparcial da sua função de “juiz” na esfera administrativa dos temas em que se opõem os interesses do concessionário ao do poder concedente.

Isso sem contar os casos de agências reguladoras ou que não têm instrumentos institucionais para exercício da independência ou cujos diretores são pessoas sem qualquer preparo para o exercício dos cargos, verdadeiros cabos eleitorais dos governadores ou prefeitos que os indicaram, e que, por isso, mesmo que não seja pleiteado ou  conferido às decisões ou pareceres emitidos pelo poder concedente efeito vinculante sobre as suas autarquias, esses diretores tendem a simplesmente seguir a orientação do poder concedente, vilipendiando as expectativas de proteção pela agência reguladora na esfera administrativa da incolumidade dos contratos de concessão ou PPP.

Quais os efeitos práticos de se tentar usar esses argumentos ou ardis processuais para elidir a responsabilidade da administração pública de arcar com os impactos da pandemia? 

O efeito prático é criar incerteza jurídica onde havia certeza, o que contribui para reduzir a credibilidade da distribuição de riscos prevista nos contratos administrativos e aumentar a avaliação do risco desses contratos. 

A impressão que ficará é que, na hora de pagar pelos riscos que assume, a administração pública sempre dará um jeito de não cumprir os contratos. E isso tem um custo reputacional que levará anos para ser superado6 e levará a administração pública e os usuários (no caso de contratos de concessão) a pagarem preços mais altos nas suas contratações futuras. 

A justificativa econômica que baseia a alocação do risco de Eventos Extraordinários à administração pública nos contratos administrativos é relativamente simples e continua completamente válida mesmo após a ocorrência da pandemia. 

Se o risco de Eventos Extraordinários for alocado ao contratado da administração, como ele não tem meios de controlar a sua ocorrência ou limitar o seu impacto, e como esses eventos não são em geral seguráveis – não havendo portanto possibilidade de diluição do seu risco no mercado securitário – a única forma de os participantes de licitações de contratos administrativos lidarem com esses eventos é provisionarem em suas propostas valores para cobrirem o seu custo caso eles venham a ocorrer. Uma vez que os participantes da licitação provisionem os valores para lidar com os Eventos Extraordinários, a administração pública (e os usuários no caso dos contratos de concessão) pagarão pelos Eventos Extraordinários mesmo que eles não ocorram, uma vez que o seu custo estará provisionado dentro do preço nas propostas realizadas na licitação. Por isso, mesmo no cenário em que os Eventos Extraordinários não se materializarem ao longo do contrato, o fato de o seu custo estar provisionado e considerado no preço fará com que a administração pública (e os usuários no caso de contratos de concessão) arque com o seu custo.

Compare-se esse cenário com uma situação em que se atribua à administração pública o risco dos Eventos Extraordinários: nesse caso, o contratado não provisionará o custo dos Eventos Extraordinários, o que reduzirá de maneira relevante o preço dos contratos administrativos à administração pública e aos usuários dos serviços. E, caso Eventos Extraordinários ocorram, a administração pública pagará por esses eventos por meio do sistema de reequilíbrio do contrato. 

Portanto, no cenário em que o risco dos Eventos Extraordinários é atribuído à administração pública, a administração pública (e os usuários nos contratos de concessão) só pagarão pelos Eventos Extraordinários quando eles ocorrerem, enquanto que, quando o risco dos Eventos Extraordinários é atribuído ao contratado da administração pública, a administração pública e o usuário terminam pagando por esses eventos mesmo que eles não se materializem.

É forçosa, pois, a conclusão de que é mais vantajoso para a administração pública e para os usuários do serviço atribuir-se nos contratos administrativos o risco de Eventos Extraordinários à administração pública do que aos contratados da administração pública.

Note-se por fim que a alocação à administração pública do risco dos Eventos Extraordinários – além de, como já dissemos, assegurar que o pagamento por esses eventos só ocorra quando da sua materialização – garante também a solução mais equânime em relação ao seu custeio. É que, como os Eventos Extraordinários são por definição eventos que nenhuma das partes controla a ocorrência e que são irresistíveis (uma vez que eles se materializem, não há como evitar o seu impacto), faz sentido que o custo desses eventos seja socialmente compartilhado. A atribuição à administração pública do risco desses eventos assegura esse compartilhamento, uma vez que todos, na condição de contribuinte (inclusive os contratados da administração), arcarão com os custos desses eventos.

Por fim, em relação aos contratos de concessão e PPP que envolvem a prestação de serviços públicos, o direito ao reequilíbrio econômico-financeiro é uma das contrapartidas à obrigação de continuidade do serviço em situações adversas. Note-se que outros agentes econômicos podem em situações de crise suspender a prestação dos serviços, aumentar o valor cobrado dos usuários e suspender a realização de investimentos. Os concessionários de serviços públicos em regra não têm essas opções e, por isso, lhes é assegurado o direito ao reequilíbrio como contrapartida da obrigação de continuidade dos serviços em situações de grave crise.

Como se vê, os fundamentos racionais para a alocação em contratos administrativos de riscos de Eventos Extraordinários à administração pública são sólidos e até aqui não foram impactados pela pandemia.

Mas mesmo que se entendesse após a pandemia ser necessária mudança nessa alocação de riscos, ela deveria ser feita de forma clara, com base em discussões técnicas que desembocassem na elaboração de novas regras legais e novas cláusulas contratuais e não por meio de pareceres ou decisões ad hoc que em face da pandemia reveem entendimentos seculares em torno do tema.

Enfim, é preciso superar essas tentativas heterodoxas, as manifestações do conhecido “jeitinho brasileiro” de justificar as intenções de descumprimento às obrigações assumidas pela administração pública nos contratos de arcar com os Eventos Extraordinários dos quais as pandemias em geral sempre foram eventos típicos, e a presente não é exceção. 

Em relação a isso, a postura do governo federal tem sido irretocável. O Ministério da Infraestrutura, particularmente a sua consultoria jurídica, agiu de forma exemplar ao emitir ainda em abril o Parecer 261/2020/CONJUR-MINFRA/CGU/AGU, que esclareceu que a pandemia se caracteriza como Evento Extraordinário e que os seus impactos devem ser arcados pelo poder concedente conforme previsto em lei e nos contratos. Por sua vez, no setor elétrico, a rápida ação da ANEEL (Agência Nacional de Energia Elétrica) no estabelecimento da Conta-Covid assegurou aproximadamente R$16 bilhões de liquidez a distribuidoras de energia, de modo a evitar a sua insolvência e o desastroso colapso do setor elétrico. Isso independentemente da discussão detalhada sobre os parâmetros e metodologias para reequilíbrio dos contratos no setor elétrico.

É preciso que esses exemplos sejam seguidos à risca por estados, municípios e suas agências reguladoras para focar esforço no grande desafio que é encontrar maneiras de dar cumprimento a essas obrigações contratuais, particularmente em contexto de restrições fiscais graves. 

Se a nossa intenção é sairmos mais fortes da pandemia, temos que usar essa oportunidade para cumprir os contratos e criar ou reforçar ambiência que contribua para que novos investimentos privados nos levem a novos patamares de desenvolvimento econômico-social. Se isso for um objetivo do nosso país, as tentativas de contornar o cumprimento de obrigações assumidas pela administração pública devem ser simplesmente abandonadas.

*Mauricio Portugal Ribeiro é sócio do Portugal Ribeiro Advogados, professor de Modelos Regulatórios da FGV, mestre em Direito pela Harvard Law School, autor de vários livros e artigos sobre concessões, PPPs e outros temas dos setores de infraestrutura.
1 Eu gostaria de agradecer a Jean Paul Veiga da Rocha, Marcelo Lennertz e Eduardo Jordão pela leitura e comentários a este artigo. Os erros evidentemente são de minha exclusiva responsabilidade.
2 Vide Jordão, Eduardo. Pandemia e concessões: a criação de uma álea ‘muito’ extraordinária?, publicado no Jota, em 21/07/2020, disponível no seguinte link: https://www.jota.info/paywall?redirect_to=//www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/publicistas/pandemia-e-concessoes-a-criacao-de-uma-alea-muito-extraordinaria-21072020
3 Lennertz, Marcelo. Covid-19 não configura ‘evento de força maior’ em PPPs do Reino Unido – qual a relevância dessa decisão para discussões no Brasil?, publicado na Agência iNFRA, em 05/06/2020, disponível em https://agenciainfra.com/blog/infradebate-covid-19-nota-sobre-a-irrelevancia-da-decisao-do-governo-do-reino-unido-para-concessoes-no-brasil/
4 Frank H. Knight, Risk, Uncertainty and Profit, 1921, Chapter VII.
5 John M Keynes, The General Theory of Employment, Interest and Money, London: Macmillan, 1936, pp. 161-162.
6 Vale lembrar que contratados da administração já enfrentam enormes dificuldades atualmente para obter reequilíbrio de contratos em vista do fenômeno conhecido como “apagão das canetas”, consequência do temor que gestores públicos têm de controladores da administração pública.
O iNFRADebate é o espaço de artigos da Agência iNFRA com opiniões de seus atores que não refletem necessariamente o pensamento da Agência iNFRA, sendo de total responsabilidade do autor as informações, juízos de valor e conceitos descritos no texto.

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