Fernanda Martinez Cotecchia* e João Pedro Riff Goulart**
A Lei 14.273/2021 (ou “Novo Marco das Ferrovias”) prevê a possibilidade de devolução de trechos ferroviários ociosos que tenham sido outorgados antes da vigência da Lei 13.448, de 5 de junho de 2017 (art. 5º).
Essa alternativa legal, que tem origem na autorização de desativação de trechos antieconômicos do Decreto 1.832/1996 (art. 3º) e é reafirmada no contexto da relicitação e prorrogação antecipada da Lei 13.448/2017, visa reverter cenário de subutilização da capacidade ferroviária descrito pelo TCU (Tribunal de Contas da União) no Acórdão 1.667/2022.
A partir de dados da ANTT (Agência Nacional de Transportes Terrestres) de 2020, o TCU verificou que menos de 30% da capacidade ferroviária era utilizada. Isto é, a malha contava com 29,8 mil km de trilhos, mas cerca de 7,1 mil km (24%) não apresentavam qualquer fluxo de transporte e 18,5 mil km (64%) estavam ociosos.
Nada obstante a previsão legal, o TCU definiu no Acórdão 1.667/2022 que seria necessária a elaboração de um novo ato normativo que apresentasse todas as etapas do processo de devolução, não bastando apenas as disposições da Lei n.º 14.273/2021. Essa recomendação foi dirigida ao Ministério da Infraestrutura, à ANTT e ao DNIT (Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes) em julho de 2022.
Em outubro de 2022, foi publicado o Decreto 11.245, que regulamentou a Lei 14.273/2021, mas este também não detalhou o processo de devolução, tendo apenas ratificado a necessidade de que o pedido de devolução da autorizatária fosse tratado pela “[…] regulação” (art. 24).
Desde então, pairam dúvidas sobre como a devolução de trechos ociosos poderia ocorrer, especialmente porque os pedidos de prorrogação da concessão e de devolução de trechos antieconômicos costumam ser tratados conjuntamente, havendo um remanejamento de custos e investimentos. Logo, se isso não for tratado adequadamente poderia haver impacto na estimativa do Governo Federal de movimentar R$ 20 bilhões somente com prorrogações.
Inclusive, esse é o caso da prorrogação da concessão da Malha Paulista, uma vez que a concessionária (Rumo Malha Paulista) protocolou o seu pedido de prorrogação juntamente com o de devolução de trechos ociosos entre Pradópolis e Colômbia, mas a devolução foi vetada no TC n.º 000.853/2023-2 – ainda que o acordo de prorrogação tenha sido, de fato, celebrado entre ANTT, Ministério dos Transportes e a Rumo Malha Paulista por ocasião da solicitação ao TCU de resolução consensual de conflito (vide art. 2º, II, da Instrução Normativa 91/2022 do TCU).
Nada obstante essa negativa, em 2 de maio de 2024, o Ministério dos Transportes, a Prefeitura de Araraquara e a Rumo Malha Paulista celebraram um ACT (Acordo de Cooperação Técnica) inédito, envolvendo a ANTT e o DNIT, no qual outros trechos ociosos da Malha Paulista seriam devolvidos àquele Município à vista de se realizar “[…] obras de mitigação de efeitos climáticos”.
Destaca-se que a definição legal do ACT está prevista no art. 2º, XIII, do Decreto 11.531/23, tratando-se de:
Instrumento de cooperação para a execução de ações de interesse recíproco e em regime de mútua colaboração, a título gratuito, sem transferência de recursos ou doação de bens, no qual o objeto e as condições da cooperação são ajustados de comum acordo entre as partes.
Além disso, segundo o art. 25, do Decreto n.º 11.531/23, o ACT somente poderia ser celebrado: […] I – entre órgãos e entidades da administração pública federal; II – com órgãos e entidades da administração pública estadual, distrital e municipal; III – com serviços sociais autônomos; e IV – com consórcios públicos.
No caso em questão, o ACT foi estruturado da seguinte forma:
Concessionária (RMP) | Formalizou o pedido de desativação e devolução de área de propriedade da União de um trecho não operacional. |
União | Deverá ceder a área para a Prefeitura de Araraquara para a realização de obras de drenagem. |
DNIT | Receberá os trechos ferroviários devolvidos. |
ANTT | Celebrará termo aditivo ao contrato de concessão para a retirada da área. |
MT (Ministério dos Transportes) | Encaminhará diretrizes para que sejam tomadas as providências necessárias à retirada da área vinculada ao contrato de concessão, considerando as disposições da Lei de Ferrovias. |
Nota-se que o ministério ainda deverá encaminhar diretrizes para a retirada da área vinculada do contrato de concessão em atenção à Lei 14.273/2021, e, portanto, carece de acompanhamento para fins de se analisar os detalhes desse processo de devolução na prática.
Independentemente, é certo que este é o primeiro acordo de devolução de trechos ociosos e, de alguma forma, deve ser utilizado como paradigma, sobretudo, porque após a sua celebração, em 29 de maio de 2024, foi editado no Estado de São Paulo o Decreto n.º 68.566, que instituiu o “Programa SP nos Trilhos”, cujo escopo também é “[…] fomentar o uso da malha ferroviária existente, especialmente em trechos ociosos ou com baixa capacidade” (art. 2º, II), por meio da Secretaria de Parcerias em Investimentos, a partir da “[…] celebração de contratos, convênios e parcerias com outros órgãos e entidades da Administração Pública direta e indireta, inclusive de outros entes federativos” (art. 3º, parágrafo único, 1., “b”).
Verifica-se, então, uma tendência no Estado de São Paulo, que, provavelmente, se espalhará para outros entes federados, haja vista a Portaria MT 532, de 5 de junho de 2024, que trouxe mais detalhes de como o processo de devolução de trechos ociosos deveria ocorrer (art. 4º).
Em tal ato normativo é feita novamente a correlação entre pedido de prorrogação e devolução de trechos ociosos, indicando-se que se houver requerimento de devolução, a prorrogação antecipada do contrato de concessão ficaria condicionada à especificação dos trechos a serem devolvidos, do valor estimado de indenização, da forma e do prazo de pagamento.
Aliás, a Portaria MT 532/2024 também expõe, dentre outros assuntos, que: (i) o valor definitivo de indenização será apurado pelo DNIT; (ii) o MT emitirá diretrizes para a apuração da indenização; (iii) eventuais discordâncias sobre a indenização poderão ser resolvidas consensualmente no TCU ou na CCAF (Câmara de Mediação e de Conciliação da Administração Pública Federal); e (iv) a critério da Administração Pública, a indenização e a outorga poderão ser utilizados como investimentos na própria malha objeto da prorrogação.
Portanto, pode-se afirmar que a devolução de trechos ferroviários ociosos, embora ainda pouco regulamentada, já é uma realidade no Brasil. Essa prática se apresenta como uma alternativa viável para os concessionários, permitindo o desenvolvimento do setor ferroviário por meio de soluções que integrem sustentabilidade ambiental, social e econômica, além de promover melhorias em eficiência e governança.
*Fernanda Martinez Cotecchia é advogada e sócia do Kincaid Mendes Vianna Advogados.
**João Pedro Riff Goulart é advogado do Kincaid Mendes Vianna Advogados.
As opiniões dos autores não refletem necessariamente o pensamento da Agência iNFRA, sendo de total responsabilidade do autor as informações, juízos de valor e conceitos descritos no texto.