Rafael Véras e Leonardo Coelho*
A cobrança pelo Serviço de Segregação e Entrega de Contêineres (SSE) é um dos temas centrais envolvendo regulação e concorrência no setor portuário. Nele, se imbricam a regulação normativa da ANTAQ e a competição pela armazenagem de cargas entre terminais portuários primários e terminais retroportuários ou recintos alfandegários situados em zonas secundárias.
De parte às múltiplas decisões proferidas a respeito pela ANTAQ, CADE, TCU e Poder Judiciário, nos últimos 20 anos, uma série de eventos recentes reavivou os embates envolvendo a cobrança pelo SSE, evidenciando a ainda atual necessidade de pacificação:
- a ANTAQ editou a Resolução nº 72/2022, atualizando sua normativa permitindo a cobrança do SSE, que desde 2019 é designado explicitamente como não integrante do THC e do box rate;
- no plano da Tomada de Contas 021.408/2019-0, iniciada por denúncia, o TCU proferiu o Acórdão 1.448/2022 – Plenário, sob relatoria do Ministro Vital do Rêgo, determinando cautelarmente a anulação de todos os dispositivos da Resolução ANTAQ nº 72/2022 concernentes à possibilidade de cobrança do SSE, contrariando orientação que vigia desde o Acórdão 1.704/2018 – Plenário, pela legalidade da cobrança;
- paralelamente, em Auditoria Operacional sobre a prestação do serviço portuário, procedida no âmbito da TC nº 020.789/2023-8, sob relatoria do Ministro Jorge Oliveira, a AudPortoFerrovia produziu Relatório de Auditoria Operacional, publicado em 19/08/2024, no qual aprofundou o exame do tema e a coleta de evidências e concluiu “pela existência do serviço, considerando o contexto da operação portuária e dos regimes aduaneiros, e pela existência de custos incrementais da cesta SSE relacionados à forma prioritária de prestação dos serviços quando comparado aos serviços prestados às cargas armazenadas no próprio terminal;”
- em 28/08/2024, decidindo um caso concreto interpartes, sem efeitos vinculantes, a maioria da 1ª Turma do STJ, guiada pelo voto da Ministra Regina Helena Costa, entendeu pela ilegalidade da cobrança do SSE, aparentemente, aos argumentos de imprevisão legal e por ser considerada uma infração concorrencial (REsp 1899040 e REsp 1906785, cujas decisões ainda não foram disponibilizadas, e são ainda passíveis de recurso, apesar das diversas matérias e inferências a seu respeito); e, por fim
- em 04/09/2024, o TCU exarou o Acórdão nº 1.825/2024 – Plenário, sob relatoria do Ministro João Augusto Ribeiro Nardes, de modo a não acolher o Pedido de Reexame formulado pela ANTAQ contra o supracitado Acórdão 1.448/2022 – Plenário.
A sucessão de eventos mantém a possibilidade de cobrança do SSE no centro das disputas regulatórias e concorrenciais do setor portuário. Hoje, tem-se o TCU, por uma mão, suspendendo cautelarmente a norma regulatória disciplinadora do tema, e a cobrança pelo SSE, ao mesmo tempo em que, por outra mão, reconhece a existência do SSE, sua autonomia em relação aos serviços abrangidos pelo THC e pelo box rate e, portanto, a legalidade de sua cobrança.
O impasse interno é preocupante, por diversos fatores.
Se a disciplina regulatória do SSE merece melhorias, há formas muito menos custosas de o TCU promover essas melhorias do que anulando norma regulatória e desconsiderando o pressuposto de fato, por si atestado, da existência autônoma do SSE. Até porque, se há serviço, a cobrança é devida. Portanto, se essa cobrança é impedida pela decisão do TCU, ele próprio, além de indevidamente assumir o exercício da função regulatória ao se substituir à ANTAQ no tema, encerra por criar, de forma genérica e abstrata, uma expropriação regulatória no patrimônio dos agentes econômicos que prestam o serviço e não são remunerados.
As consequências dessa conduta poderão, ao cabo, se traduzir em dano a ser ressarcido pelo erário, inclusive.
Na linha do bem-sucedido consenso, que vai se consolidando cada vez mais, com o meritório papel central da Corte de Contas, tanto mais prudente seria incitar as melhorias para endereçar as falhas diagnosticadas no arranjo desenhado pela ANTAQ, do que se deslocar do papel de controlador de segunda ordem para assumir o de regulador de fato e, com isso, interferir na ordem econômica sem avaliações sistêmicas dos efeitos dessa conduta.
A liberdade de preços, a vedação ao enriquecimento sem causa, o controle repressivo concreto de condutas anticoncorrenciais, a deferência e a vedação ao abuso do poder regulatório são valiosos standards para orientar a lida com o tema, sem que o TCU incorra na armadilha de ser, ele próprio, um agente desequilibrante do setor portuário.
A revisita dos Acórdãos nº 1.448/2022 e nº 1.825/2024 – Plenário precisa dialogar com as evidências e achados da TC nº 020.789/2023-8 sobre o SSE. Só assim o Tribunal de Contas da União poderá prover a estabilidade jurídica e concorrencial que o controle de microssistemas regulados demanda de sua relevante atuação.
*Rafael Veras é Professor Coordenador dos módulos de Concessões e PPPs do LL.M em Direito da Infraestrutura e da Regulação na FGV Direito Rio. Doutor e Mestre em Regulação pela FGV Direito Rio. Sócio de Braz, Coelho, Véras, Lessa e Bueno Advogados.
Leonardo Coelho é Professor do LL.M em Direito da Infraestrutura e da Regulação na FGV Direito Rio. Professor Titular de “Regulação das Ferrovias” no ISC-TCU. Mestre em Direito Público pela UERJ. Sócio de Braz, Coelho, Véras, Lessa e Bueno Advogados.
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