Opinião

Opinião – Tarifa Social de Água e Esgoto: os fins justificam os meios?

Renato Otto Kloss*

Dia 10 de dezembro de 2024 marca a entrada em vigor da Lei Federal nº 14.898/2024, que institui diretrizes para a Tarifa Social de Água e Esgoto em âmbito nacional. Com essa lei, pretende-se fomentar a instituição de uma categoria tarifária social que oferecerá desconto de 50% sobre a tarifa incidente sobre a primeira faixa de consumo. Serão beneficiados usuários com renda de até meio salário-mínimo, inscritos no CadÚnico (Cadastro Único para Programas Sociais) ou que possuam em sua família pessoa idosa sem condições de prover a própria manutenção ou de tê-la provida por sua família, que seja atendida por BPC (Benefício de Prestação Continuada).

 A relevância do tema é indiscutível. O saneamento básico é, a nosso ver, o serviço público com maior grau de essencialidade para a população, ao mesmo tempo em que é um dos menos desenvolvidos nacionalmente. O objetivo de definir uma categoria de usuários que fará jus a um importante desconto tarifário conversa diretamente com a acessibilidade ao serviço e tem o potencial de elevar a taxa de adesão de cidadãos com menor capacidade contributiva aos sistemas de água e esgoto. Em linhas gerais, trata-se daqueles temas vocacionados à aprovação geral, com louvor.

Apesar da óbvia importância – e aqui reside o desafio dessa nossa provocação –, não se deve resumir o debate sobre a nova lei à grandeza do seu objetivo. De boas intenções o inferno está cheio, como se costuma dizer. A reflexão jurídica merece ser bem mais densa que isso, e aqui se elege a competência para legislar como foco de investigação.

Nota-se uma tendência crescente – e preocupante – de adesão ao consequencialismo no mundo jurídico brasileiro. Mitiga-se o mérito da análise da juridicidade de uma determinada ação governamental ou produção legislativa, para se buscar desde logo fundamento de validade nos resultados que se pretende produzir em prol da sociedade.

Esse consequencialismo se faz também presente na regulação dos serviços públicos, como já se assistiu com o mercado de gás natural. Mediante a edição da Lei Federal nº 14.134/2021, conhecida como Nova Lei do Gás, a União, ao ensejo de legislar sobre o transporte desse hidrocarboneto, enveredou-se pelo segmento de distribuição canalizada, atribuído aos Estados pelo art. 25, § 2º, da Constituição da República.

Assim, o art. 29 e seguintes daquele diploma criaram espécies de usuários, dispuseram sobre a incorporação de ativos ao patrimônio estadual e consignaram determinações ao regulador daqueles Entes, o que, nos parece, representa manifesta invasão de competências estaduais. Mas nada disso chegou a receber as críticas que seriam esperadas, pois a lei visava superar gargalos históricos e destravar investimentos estruturantes, num setor organizado em cadeia, com interdependência de segmentos atribuídos a diferentes entes federativos.

Enfim, a esperança em se promover desenvolvimento econômico relegou a discussão sobre competência para legislar à condição de uma tecnicalidade esquecida. O mesmo parece ocorrer agora com a fixação de disciplina sobre a tarifa social de água e esgoto por meio de lei federal.

É bem verdade que o setor de saneamento encerra complexidade bem maior para a delimitação da competência legislativa. O Supremo Tribunal Federal, ao reconhecer a constitucionalidade do Novo Marco do Saneamento Básico, por oportunidade do julgamento da ADI 6.492/DF, destacou diversos fundamentos legitimadores da competência da União para legislar sobre a matéria, a exemplo do art. 21, XX, (diretrizes sobre saneamento básico), do art. 23, IX (promoção de programas de melhoria das condições de saneamento básico), e do art. 200, IV (participação da formulação da política e da execução das ações do setor, no âmbito do SUS), todos da Constituição.

O art. 23, IX, por exemplo, trata de competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, ao passo que o art. 200 dispõe sobre um sistema integrado de serviços de saúde, com participação de todos esses entes. Isso basta para que se reconheça um certo nível de compartilhamento dessa competência por todos os entes federados.

Ao mesmo tempo, porém, é fundamental lembrar que os municípios exercem a titularidade dos serviços públicos de saneamento básico, diretamente ou por meio de participação em estruturas regionalizadas, como decidiu o mesmo STF nos autos da ADI 1.842/RJ e como bem estabelece o art. 8º, incs. I e II, da Lei Federal nº 11.445/2007, com a redação conferida pela Lei Federal nº 14.026/2020. A esse respeito, não se pode perder de vista que a titularidade do serviço público pressupõe a atribuição de competência para a sua regulamentação. São prerrogativas que andam juntas.

Diante desse panorama nebuloso, coube ao próprio Supremo fixar as balizas necessárias. No mesmo julgamento da ADI 6.492/DF, restou estabelecido que a competência para o planejamento do setor é compartilhada por todos os entes federados, ao passo que a competência executória é própria dos Municípios.

Pois bem. Se há diferença entre competência para planejamento e competência para execução, deve-se inquirir em qual desses campos se insere a disciplina da tarifa social. Eis a missão.

Nesse particular, defende-se aqui que a política tarifária constitui o núcleo essencial da execução de todo serviço público. É por meio da política tarifária que se garante a sustentabilidade econômica dos serviços, que se viabilizam investimentos em universalização e atualização, que se persegue o seu uso racional, que se adequam as características do serviço com a capacidade contributiva, que se definem subsídios cruzados que possam maximizar a adesão de usuários, à luz das especificidades locais. Trata-se do principal instrumento de gestão do serviço público, de modo que a sua definição constitui prerrogativa a ser exercida pelos municípios.

Na reformulação a que o marco do saneamento passou em 2020, deve-se notar que o legislador ordinário foi bastante criterioso. A alteração procedida pela Lei Federal nº 14.026/2020 na lei de criação da ANA (Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico), Lei Federal nº 9.984/2000, notadamente com a criação do art. 4º-A, atribuiu àquela agência competência apenas para a fixação de normas de referência sobre regulação tarifária (§ 1º, II). Veja-se que, se houvesse competência federal para dispor sobre esse ponto, não se teria optado por atribuir a sua disciplina às normas de referência, que correspondem a sugestões de boas práticas regulatórias formuladas pela ANA (soft power regulatório), de adesão voluntária por parte dos municípios (ainda que mediante indiscutível pressão econômico-financeira).

Andou bem o legislador à época, amparado por jurisprudência existente desde então. Nos autos da ADI 2.340/SC, por exemplo, o plenário da Suprema Corte brasileira reconheceu que, “a teor do art. 175, parágrafo único, da Constituição Federal, incumbe ao poder público, leia-se, ao poder concedente, a regulamentação dos serviços concedidos, não tendo, em consequência, o Estado-membro, em se tratando de um serviço de caráter local, competência para regulá-lo, seja a que título for”. O tema versava sobre lei estadual que obrigava o fornecimento de carros-pipa e instituía isenção tarifária em face de serviço de saneamento básico.  

Ora, a similitude daquele precedente com a instituição da tarifa social salta aos olhos. Seria desafiador sustentar que a instituição de desconto tarifário deva merecer sorte diversa da do estabelecimento de isenção. A diferença, aqui, reside apenas na proporção, mas a ingerência é a mesma.  

A essa altura, é possível se contentar com o espectro constitucional do debate para a construção de uma proposta de resolução para o tema. A competência executiva dos municípios em matéria de saneamento básico restringe à administração local a missão de dispor sobre regulação tarifária, donde se conclui que é de sua exclusiva competência a instituição e disciplina da tarifa social.

Mas convém fazer um último adendo, de ordem pragmática. A competência local é a única forma de se impor à regulação tarifaria as modulações necessárias. Em municípios mais carentes, o percentual de famílias inscritas no CadÚnico pode superar 50% da população[1]. Nestes casos, a instituição da tarifa social com base em subsídio cruzado pode representar ônus excessivo aos demais usuários, inviabilizando essa equação financeira. Seria necessário recorrer ao comprometimento de recursos públicos, sempre escassos. Com isso, ainda que desejável, a instituição da tarifa social pode nem sempre ser possível.

Por estas razões, mostra-se, no nosso entender, bastante questionável a constitucionalidade da Lei Federal nº 14.898/2024, e suas nobres intenções não devem salvá-la das críticas devidas. O objetivo de estimular a larga instituição da tarifa social Brasil afora deveria ser perseguido mediante edição de norma de referência pela ANA, e não por meio de lei federal. Mas agora que isso já ocorreu, não há outra saída senão recorrer ao Poder Judiciário, para a realização dos controles concentrado ou difuso de constitucionalidade. É o que evitaria nesse momento uma avalanche de alterações de contratos de concessão, associados a complexos reequilíbrios econômico-financeiros, para a adaptação desses ajustes a um elemento de política tarifária pensado genericamente, sem melhor atenção às especificidades locais.  


[1] Segundo dados do Observatório do Cadastro Único (CadÚnico), os estados do Nordeste e Norte do País, à exceção de Tocantins, possuem mais de 50% de suas populações inscritas naquele cadastro.

*Renato Otto Kloss é advogado especialista em infraestrutura e concessões. Sócio do VAK Advogados.

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