Regulamentação da reforma tributária: a hora da verdade

Marcelo Araújo*

Com a chegada ao Congresso da proposta do governo para a regulamentação da reforma tributária, 23 frentes parlamentares se organizaram, ao longo dos últimos meses, em 19 grupos de trabalho paralelos aos grupos interdisciplinares do poder executivo, com a participação dos diferentes setores da sociedade civil, para aprofundar os inúmeros aspectos da reforma que transformará para melhor, muito melhor esperamos, a vida das empresas e cidadãos.

Mas se há um lugar onde controvérsias e interpretações interessadas proliferam, esse lugar é o intrincado conjunto de normas e regras que operacionalizam o modelo tributário do país, portanto, toda atenção nesta fase do processo será pouca.

A EC 132/2023 (Emenda Constitucional 132/2023), que altera o sistema tributário brasileiro, estipulou prazo de 180 dias após sua promulgação, ou seja, até o fim de junho de 2024, para que as leis complementares comecem a ser analisadas pelos congressistas.

Não existe um prazo para a aprovação dessas leis, mas considerando que a própria emenda define o início da transição em 2026 e a complexidade dos sistemas públicos e privados a serem desenvolvidos ou adaptados, a corrida contra o tempo já começou. É hora do envolvimento de todos neste tema, que se não é o mais urgente da agenda do país, é certamente o mais estruturante hoje em discussão.

Já de início, quatro pontos valem ser olhados com calma. O primeiro, e muito sensível, trata das regras que viabilizarão o conceito de não cumulatividade plena do IBS (Imposto sobre Bens e Serviços), em Estados e Municípios, e da CBS (Contribuição sobre Bens e Serviços), em âmbito Federal, prevista a partir da Reforma Tributária, um dos principais ganhos do projeto.

Apesar da previsão de aproveitamento imediato de 100% dos créditos de todos os insumos usados pelas empresas, ainda existirão transações que podem acumular créditos, como, por exemplo, produtos e serviços exportados ou transações com itens em regimes específicos.

A lei complementar deverá definir a forma e os prazos para ressarcimentos desses eventuais créditos durante o período de transição e mesmo já com a implementação plena da reforma.

Em uma primeira minuta debatida por um desses grupos de trabalho, o GT09, no pós-reforma ambos os impostos, CBS e IBS, poderão ser compensados automaticamente em até 60 dias, mas caso não seja possível, não está clara a forma e o prazo de ressarcimento.

Na mesma minuta, durante a transição, os créditos do PIS (Programa de Integração Social), da COFINS (Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social) e do IPI (Imposto sobre Produtos Industrializados) que deixarão de existir no tempo, poderão ser compensados com outros tributos federais, inclusive o próprio CBS em até 60 dias, caso contrário seriam ressarcidos em dinheiro em até 90 dias.

Até aí, ótimo, mas é preciso atentar para o que fazer e como corrigir esses valores se isso não ocorrer, como é o caso hoje da infindável discussão sobre precatórios.

Também não está claro como este mesmo princípio será aplicado aos créditos dos impostos estaduais, como o atual ICMS (Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Prestação de Serviços), a serem compensados com o futuro IBS ou ressarcidos.

A EC 132/2023 afirma que os créditos acumulados não homologados até 2032, quando da extinção do ICMS, poderão ser aproveitados pelos contribuintes, mas não determina um prazo para que o ente federativo se pronuncie e ainda prevê até 240 meses para o ressarcimento após a homologação, sendo omissa na atualização do valor desses recursos em um tempo tão dilatado.  Outro desafio para a lei complementar.

Sempre me pergunto por que um tema como esse, que deveria ser objetivo, gera tanta discussão. São recursos claramente privados, de créditos a que têm direito – as empresas – pela própria regra do modelo e, portanto, não poderiam ser incorporados aos caixas públicos.

Mas, infelizmente, sempre com alegações de restrições orçamentárias, as secretarias de fazenda estaduais e federais têm sido altamente eficazes em reter esses capitais, reduzindo enormemente a capacidade de investimento e crescimentos das empresas, já afogadas por uma das mais altas cargas tributárias do mundo. E isso nos conecta com o segundo ponto de atenção que é justamente a parametrização das futuras alíquotas do IBS e da CBS.

Se somarmos a alíquota de 25% do IRPJ (Imposto Sobre a Renda das Pessoas Jurídicas) com uma CSLL (Contribuição Social sobre o Lucro Líquido) que varia de 9 a 25%, temos uma carga tributária sobre as empresas em lucro real de 34 a 45%, o que nos coloca em uma posição ridiculamente acima da média mundial. Segundo a base de dados do site Tax Foundation, para os 180 países que já disponibilizaram dados de 2023, a alíquota média é de 23.5% e a mediana 25%.

Ainda que se possa argumentar que as alíquotas efetivas dos impostos indiretos (sobre a renda) sejam mais baixas por aqui, o que é difícil comparar, temos a obrigação de levar em conta o impacto dessa asfixia do capital privado no potencial de crescimento do país, uma vez que é o setor privado quem responde pela imensa maioria do investimento no país – 80,4% em 2022, segundo a ABDIB (Associação Brasileira da Infraestrutura e Indústrias de Base).

É neste ponto que um grande debate com a sociedade precisa prevalecer se quisermos manter a neutralidade da carga tributária dos impostos diretos (sobre o faturamento) antes e depois da reforma, sem criar distorções que desequilibrem a economia do país.

Por construção do modelo, quanto mais amplos forem os segmentos com carga reduzida, em especial aqueles que, com todo o mérito, tem grande peso na economia, como agricultura, saúde e alimentação, maior necessariamente deverão ser as alíquotas gerais sobre os demais produtos e serviços. Será necessária grande sabedoria coletiva para encontrarmos o equilíbrio adequado.

Por fim, um quarto e relevante aspecto a ser regulamentado diz respeito aos regimes específicos de alguns produtos essenciais, de grande impacto na economia. O petróleo e as commodities minerais foram agraciadas com a possibilidade de incidência deum novo imposto seletivo.

Esses produtos reúnem duas características distintivas: são insumos básicos de um sem-número de cadeias produtivas, portanto seu custo produz grande efeito cascata nos preços e, são produtos com precificação global onde o Brasil é grande exportador.

Distorcer seus custos com impostos que não existem em outros países tira competitividade do Brasil na atração de investimentos para sua exploração e no acesso aos mercados internacionais. Ou seja, o novo Imposto Seletivo, tem que ser usado como exceção apenas e de forma absolutamente cirúrgica.

Por fim, entre os regimes específicos, a regulamentação do modelo tributário de combustíveis e biocombustíveis se destaca pela sensibilidade política e econômica desses setores e precisa atentar para vários aspectos críticos.

Entre os aspectos temos: a correta qualificação dos diferentes combustíveis atuais e futuros a serem tributados de forma monofásica, com alíquota específica por volume e uniforme em todo o país; a preservação dos diferenciais entre os combustíveis fósseis e os renováveis substitutos de forma a incentivar a transição energética e; assegurar a não-cumulatividade plena entre insumos e produtos de diferentes regimes, evitando acumulo de créditos ou custos em cascatas já citados anteriormente.

Como não é previsto período de transição para regimes específicos como o dos combustíveis, há que se pensar em como acelerar esse processo evitando a convivência continuada de modelos diferentes, como a gasolina e o diesel que já se encontram no regime de ICMS monofásico, ad-rem com alíquota única desde a implementação dos convênios que regulamentaram a Lei Complementar 192/2022 e o etanol hidratado, ainda no antigo regime de ICMS ad-valorem com alíquotas diferenciadas por ente federativo.

Em um setor com tamanha vulnerabilidade ao comércio irregular, essas distorções geram apenas oportunidades para maus empresários criarem vantagens indevidas. Também não parece fazer sentido, os novos combustíveis como o diesel verde ou o SAF (combustível sustentável de aviação), que serão comercializados nos próximos anos, entrarem no regime atual para depois migrarem.

Por que não antecipar todos esses movimentos incorporando o etanol hidratado e novos combustíveis à Lei 192/2022?

Enfim, esses e outros desafios precisam ser enfrentados nos próximos meses. É fundamental o envolvimento e a participação da sociedade no debate, junto ao Governo e Congresso, com abertura ao diálogo e visão de país, evitando-se a defesa mesquinha de interesses setoriais.

Importantes escolhas precisam ser feitas e elas serão o divisor de águas entre auferirmos os ganhos potenciais da histórica reforma tributária ou deixarmos passar mais uma oportunidade de modernizar e dinamizar o ambiente de negócios em nosso país, liberando a tão esperada retomada do crescimento. Agora é a hora da verdade.

*Marcelo Araújo é diretor-executivo corporativo e participações do Grupo Ultra e presidente do conselho de administração da Associação Brasileira de Downstream do IBP (Instituto Brasileiro de Petróleo, Gás e Biocombustíveis).
As opiniões dos autores não refletem necessariamente o pensamento da Agência iNFRA, sendo de total responsabilidade do autor as informações, juízos de valor e conceitos descritos no texto.

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