ANTT incluirá mecanismo de prevenção de disputas em seus contratos

Fernando Marcondes*

No dia 4 de abril, a ANTT (Agência Nacional de Transportes Terrestres) publicou a Resolução 6.040/2024, que altera a Resolução 5.854/2019, “… para incluir a previsão dos comitês de prevenção e solução de disputas” (ferramenta internacionalmente conhecida como “Dispute Board”) em seus contratos.

Este ato é resultado de uma louvável iniciativa promovida no âmbito da agência nos últimos anos, que busca de resultados mais rápidos, satisfatórios e eficientes, não apenas para a ANTT, mas também para as partes privadas com as quais ela se relaciona e, principalmente, à sociedade, que é a razão de existir do Estado.

A Resolução 5854 já previa a adoção de métodos de autocomposição e também da arbitragem no âmbito da agência, mas nada dizia sobre a utilização de DP (Dispute Boards).

Até que, em dado momento, a agência consultou o TCU (Tribunal de Contas da União) sobre a possibilidade de inclusão da ferramenta em seus contratos de concessão, ao que o TCU respondeu que seria necessário que a agência regulamentasse o uso do instituto antes de incluí-lo entre os métodos de solução de conflitos de seus contratos.

Teve início, então, um procedimento interno promovido pelos procuradores da ANTT, que envolveu um aprofundamento no conhecimento do tema, a criação de um ambiente de discussão amplo, inclusive com a realização de audiências públicas, das quais tivemos oportunidade de participar e contribuir com ideias e com nossa experiência.

Ministramos, a convite da agência, um workshop para 60 profissionais de carreira (procuradores da ANTT e auditores do TCU), em dezembro de 2023, especificamente sobre DB, sua aplicação, boas práticas, dinâmica de funcionamento, etc. Muitos outros profissionais e acadêmicos foram chamados a contribuir, o que garantiu um debate abrangente e uma análise aprofundada de todas as nuances da ferramenta, suas vantagens e limitações.

O resultado foi a edição da Resolução 6040, cuja análise sucinta é feita neste artigo. Antes, porém, é preciso fazer uma rápida introdução do DB, para que o leitor possa compreender a importância do passo que a Administração Pública está dando em direção à modernidade.

O DB foi criado no ambiente da construção civil, nos EUA, na primeira metade dos anos 1970. Na época, as grandes obras de infraestrutura sofriam atrasos e sobrepreços elevadíssimos, o que levou à realização de um estudo para identificar os gargalos e encontrar soluções para resolvê-los.

Esse estudo apontou que a beligerância das partes (típica do ambiente da construção) levava as discussões ao Judiciário e à arbitragem e, enquanto duravam os impasses, as obras sofriam com o comprometimento de seu fluxo de caixa, eternização das pendências e até mesmo paralisações.

A sugestão feita na conclusão desse estudo foi que as partes adotassem a seguinte prática: nomear um comitê de especialistas (engenheiros experientes e neutros) para acompanhar as obras mediante visitas e reuniões periódicas, inteirando-se de seu andamento e das questões que tivessem potencial de se transformarem em disputas.

E então atuando para auxiliar as partes no sentido de alcançarem consenso a respeito dos temas ou, em último caso, se o consenso se mostrasse impossível, os especialistas emitiriam uma recomendação, que as partes se comprometiam a seguir (muito embora nada as obrigasse a tanto), mesmo que não estivessem de acordo.

A discordância das partes poderia ser resolvida em arbitragem ou em um processo judicial, mas isso já não atrapalharia o andamento da obra, já que a recomendação teria sido adotada pelas partes.

A primeira grande obra que adotou o DB foi a construção do segundo emboque do túnel Eisenhower, no Estado do Colorado. O resultado foi altamente positivo, o que levou ao uso cada vez mais frequente de DBs em contratos de grandes obras nos EUA.

A primeira experiência internacional se deu em Honduras, na construção da barragem “El Cajon”. Como se tratava de uma obra financiada pelo Banco Mundial, a instituição propôs às partes que utilizassem o DB em seu contrato, como um “piloto”.

A experiência excedeu as expectativas, pois, ao final da obra, nenhuma disputa havia escalado para arbitragem ou processo judicial. Tudo se resolveu no ambiente da obra, que terminou de forma tranquila.

Daí por diante, a ferramenta ganhou espaço nos contratos internacionais, vindo a ser incorporada pelos modelos de contrato mais utilizados no mundo (os modelos publicados pela FIDIC – Federação Internacional de Engenheiros Consultores).

Hoje, ela é mandatória nos contratos financiados pelo Banco Mundial cujo valor de financiamento seja de USD 50 milhões ou mais, e também é adotada por muitos outros bancos de desenvolvimento, como o BID, Banco do Japão e outros.

Os DBs foram utilizados nas obras de construção do Eurotunnel, na expansão do Canal do Panamá, nas obras de preparação dos Jogos Panamericanos do Peru, no aeroporto de Hong Kong.

Os DBs também estão em uso no contrato de construção do reator de fusão nuclear “Iter”, na França (o maior do mundo, fruto de parceria entre França, China, Coreia do Sul, Estados Unidos, Índia, Japão, Rússia e União Europeia), e em uma série de projetos de infraestrutura que estão em curso no Peru, o país latino-americano que mais utiliza a ferramenta atualmente.

No Brasil, o Metrô de São Paulo já utiliza DB em seus contratos há cerca de 20 anos, com absoluto sucesso.

Já há muitos anos, tornou-se consenso internacional que os comitês não devem ser constituídos somente de engenheiros.

Recomenda-se que um dos membros seja advogado especializado no setor, pois não há como evitar que as recomendações ou decisões emitidas pelos DBs contenham aspectos jurídicos, ou envolvam assuntos como interpretação contratual, ou ainda o regime jurídico em que o contrato está inserido – matérias que estão fora da área de conhecimento dos engenheiros.

Em princípio, por ser uma ferramenta contratual, o DB não precisaria de legislação para regulamentá-lo. Tanto é verdade que, como dito, a Companhia do Metropolitano de São Paulo, que é empresa pública, já o utiliza sem problemas há duas décadas.

Contudo, na América Latina em geral há um fantasma que assombra o agente público e o faz temer punição dos órgãos de controle, simplesmente por acatar uma orientação ou decisão de um comitê privado, sem poderes jurisdicionais.

Daí porque, não apenas aqui, mas em outros países da região que adotam ou pretendem adotar o DB, têm surgido iniciativas legislativas para regulamentá-lo e, assim, dar tranquilidade ao agente público para adotá-lo.

Por aqui, há um projeto já aprovado no Senado e atualmente tramitando na Câmara dos Deputados, que pretende disciplinar em detalhes o uso dos DBs. Ao mesmo tempo, a nova lei de licitações (14.133/2021) já o menciona como método válido para solução de controvérsias em contratos públicos.

E agora a ANTT, antecipando-se ao lento processo legislativo, traz a Resolução 6040, com a finalidade de incluir os DBs em seus contratos futuros e, até mesmo, nos contratos já em curso, mediante aditivo.

Assim que, a Resolução 6040 traz um acréscimo à Resolução 5845, consistindo na inclusão de um “Capítulo IV-A”, denominado “Do Comitê de Prevenção e Solução de Disputas”, dividido em 6 Seções e formado pelos artigos 26-A a 26-I, que passamos a sintetizar e comentar.

O art. 26-A visa a estabelecer a competência dos DBs, elencando as matérias que poderão ser submetidas à sua apreciação e decisão.

Este foi um ponto que criticamos durante as reuniões e audiências públicas, pois a experiência internacional ao longo de 50 anos de uso da ferramenta já demonstrou que não é salutar limitar o escopo de atuação do DB.

Ao final, o que acaba ficando de fora de seu âmbito são questões de suma importância para o bom andamento do contrato, podendo levar a uma inoperância do DB para o fim a que ele se destina.

Aparentemente, a forma que a ANTT encontrou para amenizar essa limitação foi incluir o parágrafo segundo, prevendo a possibilidade de as partes, de comum acordo, ampliar o escopo de atuação do comitê.

No entanto, o parágrafo seguinte traz uma limitação que, a nosso ver, poderá decretar a inutilidade total da ferramenta: ele exclui da apreciação do DB, divergências que envolvam questões de cunho estritamente jurídico – e exemplifica esse termo apontando a matriz de riscos e o equilíbrio econômico-financeiro do contrato de concessão, admitindo apenas a submissão de conflitos relativos aos aspectos factuais subjacentes a essas questões.

Acontece que a discussão mais recorrente nos contratos de concessão, que é objeto dos mais intensos debates entre o poder concedente e seus concessionários, é justamente o equilíbrio econômico-financeiro das concessões.

A eternização desses debates nas arbitragens e processos judiciais acaba gerando liminares visando à suspensão de investimentos por parte do concessionário, levando ao adiamento, por anos, de obras que, de outra sorte, estariam entregues à população em pouquíssimo tempo, elevando a segurança das rodovias e ferrovias e a qualidade de vida de seus usuários.

A experiência nos mostra que, se tais assuntos são submetidos aos DBs e por eles decididos em questão de poucos meses, estando as partes obrigadas a cumprir as decisões imediatamente, o contrato flui em seu curso natural e as obrigações são atendidas em tempo razoável.

Isso tudo sem privar as partes do direito de levar o assunto à arbitragem em seguida, para eventualmente reverter a decisão pela via jurisdicional e de forma definitiva.

A eventual reversão de uma decisão de DB se resolve mediante compensações ao longo do próprio contrato, via aumento ou redução de tarifas, alteração no prazo de concessão ou mesmo indenização – sempre a critério do poder concedente.

Se o receio da agência se baseia na ideia de que o tema é importante e complexo demais para ser decidido por um DB, basta lembrar que os membros são escolhidos pelas partes, o que leva à possibilidade de eleger profissionais com grande experiência e qualificação, capazes de decidir questões dessa natureza com grande conhecimento de causa.

Essa é, aliás, a tradição em se tratando de DBs: os profissionais que atuam como membros desses comitês são profissionais com décadas de experiência, com reputação ilibada e “soft skills” que lhes dão totais condições de manejar e decidir questões de alta complexidade.

No art. 26-B se estabelece o grau de vinculação das decisões. Neste ponto se disciplina a possibilidade de as decisões serem vinculantes ou meramente recomendatórias, conforme o que estipular o contrato.

Essa é a prática vigente em todo o mundo, muito embora a decisão recomendatória esteja cada vez mais em desuso.

O parágrafo segundo desse artigo traz um equívoco, a nosso ver, pois ele diz que a decisão recomendatória jamais se tornará vinculante, mesmo que as partes deixem de manifestar discordância a seu respeito.

Ocorre que esse tipo de inovação já foi testada em outras jurisdições, e já se sabe de suas consequências. A decisão do DB precisa dar às partes um mínimo de segurança jurídica, ou seja, elas precisam ter força vinculante em algum momento.

Não por acaso, as regras de DB ao redor do mundo determinam que, decorrido um curto prazo para que as partes manifestem discordância com uma recomendação, esta se torna vinculante, devendo ser cumprida no prazo ali estipulado.

Deixar às partes a decisão sobre cumprir ou não uma decisão leva, fatalmente, à escolha pelo não cumprimento.

Foi o que se viu em todos os países em que essa liberdade foi experimentada, com exceção do país de origem, em que a tradição se fez em torno do respeito à recomendação – tanto que, nos EUA, a decisão vinculante nem sequer é utilizada com frequência, já que as partes cumprem com naturalidade as recomendações não vinculantes.

A inexigibilidade de atendimento às decisões do DB oferece o risco de tornar a ferramenta inútil, apenas um custo a mais para os contratos.

Se esse for o caminho escolhido pelas partes, receia-se que, após algumas experiências, a ferramenta seja abandonada por falta de eficácia, o que será lamentável, já que ela tem se mostrado um diferencial extraordinário nos países em que foi implementada, contribuindo para que os contratos fluam, as obras sejam concluídas em prazo razoável e com economia, e os aparelhos públicos sejam entregues à população o mais rapidamente possível, melhorando as vidas dos cidadãos – que é, em última análise a função precípua e a razão de existir do Estado.

À exceção destes poucos pontos aqui criticados, é importante ressaltar que a Resolução 4060 segue as recomendações internacionais. E conclui-se dizendo que a iniciativa da ANTT é louvável e muito bem recebida pela comunidade.

A competente e comprometida equipe que se envolveu nessa tarefa merece todo o reconhecimento e, certamente, estará atenta às eventuais necessidades de adaptação da norma, na medida em que a experiência prática aponte nesse sentido.

*Fernando Marcondes é advogado especializado em Construção e Infraestrutura, árbitro e membro de Dispute Boards, sócio de MAMG Advogados. É representante do Brasil perante a Dispute Resolution Board Foundation.
As opiniões dos autores não refletem necessariamente o pensamento da Agência iNFRA, sendo de total responsabilidade do autor as informações, juízos de valor e conceitos descritos no texto

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