Em quais casos não se aplica a regra do caráter referencial das informações divulgadas pelo poder público na licitação de concessões e PPPs?

Pedro Pamplona*

Tem sido comum a inclusão de regras que conferem natureza referencial a todo o material disponibilizado pelo poder público em licitações de concessões. Assim foi feito, por exemplo, em diversos editais e contratos estruturados nos últimos anos pelo BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social).[1]

Essas regras costumam prever, em resumo, o seguinte:

  • Os dados, estudos, materiais e informações divulgados pelo poder público possuem caráter meramente informativo e referencial;
  • O poder público e os demais autores dos materiais disponibilizados não são responsáveis pela sua correção, precisão ou suficiência, cabendo aos licitantes a realização de investigações, levantamentos e estudos necessários para a apresentação de suas propostas comerciais, que devem levar em consideração todas as obrigações e riscos alocados contratualmente à concessionária;
  • A concessionária não tem direito a modificações nos preços, prazos ou condições do contrato, sob a alegação de insuficiência de dados ou informações sobre o objeto da licitação.

A princípio, esse conjunto de regras (“regra do caráter referencial”), que tem como objetivo primordial promover a eficiência e a seleção da proposta mais vantajosa para os usuários e o poder público, é compatível com o ordenamento jurídico.

Assim, para os contratos de concessão submetidos a ele, não há, em geral, direito a reequilíbrio das concessionárias em razão, meramente, da diferença entre a realidade que se apresenta durante a operação e a realidade esperada de acordo com os documentos divulgados pelo poder público.

A depender das circunstâncias, porém, a aplicação da regra do caráter referencial pode se mostrar inviável do ponto de vista jurídico.

Não se pode supor, na interpretação de normas jurídicas, que elas pretenderam criar obrigações cujo cumprimento é inviável. Então, para que seja aplicável em determinado caso concreto a regra do caráter referencial, é preciso que seja viável[2] aos licitantes em geral a produção de estudos que lhes permitam considerar, para determinada premissa relevante da concessão, dados substancialmente distintos em relação aos que foram disponibilizados pelo poder público no procedimento licitatório.

Assim deve ser, em especial, por força da razoabilidade, norma aplicável às licitações e contratações públicas de longo prazo.[3]

Compreendida como instrumento que exige o afastamento da aplicação de normas em casos concretos que não se adequem à generalização da norma incidente,[4] por exemplo, a razoabilidade prescreve o seguinte: se é inviável a realização de estudos próprios a respeito de certo dado divulgado pelo poder público, esse caso específico simplesmente não se adequa à generalização da regra do caráter referencial, que pressupõe a possibilidade de investigação, pelos licitantes, a respeito daquela premissa relevante da concessão. A conclusão é a mesma caso se aplique a razoabilidade em outro sentido em que costuma ser compreendida, de exigência de adequação dos meios aos fins.[5]

O principal objetivo da regra do caráter referencial é, tanto quanto possível, permitir aos licitantes que avaliem amplamente todas as condições pertinentes ao projeto, de modo que reflitam nas propostas a serem apresentadas no processo competitivo da licitação a eficiência com a qual esperam executar o contrato, o que levará, por exemplo, a menores tarifas exigidas para a prestação dos serviços ou a maiores pagamentos ofertados pela outorga da concessão.

Para isso, confere-se caráter referencial ao material divulgado pelo poder público, prevê-se a obrigação dos licitantes de realizar os estudos necessários para apresentação de suas propostas e aloca-se a eles, tanto quanto possível, o risco de diferenças entre a realidade que se apresenta ao longo da operação e as projeções que fizeram para oferecimento das propostas na licitação.

Se, porém, não é viável a realização de estudos próprios a respeito de determinada premissa relevante da concessão, aqueles objetivos (eficiência e seleção da proposta mais vantajosa para os usuários e o poder público) simplesmente não podem ser promovidos pela regra do caráter referencial. Não é razoável, portanto, que a regra se aplique nessas circunstâncias.[6]

A pergunta que se apresenta, para as premissas da concessão em relação às quais não é viável a produção de estudos e levantamentos próprios, é a seguinte: o que os licitantes deveriam considerar na formulação das propostas comerciais que oferecerão no procedimento licitatório?

Há duas possibilidades excludentes. Uma delas é considerar os dados que constam nos documentos disponibilizados, caso em que a proposta comercial refletirá as melhores informações disponíveis sobre o assunto, que foram produzidas e/ou divulgadas pelo poder público e por isso gozam de presunção de acurácia.

A outra é considerar dados substancialmente distintos em relação aos que foram disponibilizados aos participantes do procedimento licitatório, o que representará, na prática, uma aposta não informada, quer dizer, uma previsão não amparada pelas técnicas e pelos meios disponíveis ordinariamente no mercado com aptidão para a geração de informações que possam desafiar os dados divulgados aos licitantes pelo poder público. Este, porém, certamente não é um objetivo buscado pelas normas que regulam as contratações públicas.

A assimetria de informações entre os licitantes é um elemento aceito e desejado nas contratações públicas de longo prazo, nos casos em que as suas diferentes expectativas sobre os aspectos relevantes à prestação dos serviços, racionalmente amparadas (como a decisão a respeito da forma específica de execução de obras necessárias ao cumprimento do contrato), podem se traduzir em propostas melhores para os usuários e o poder público (promove-se, com isso, o princípio da eficiência e o objetivo de assegurar a seleção da proposta mais vantajosa para a administração).

Para os dados e materiais em relação aos quais não é possível aproveitar essa assimetria, por conta da inviabilidade da realização dos estudos pelos licitantes, deixa de ser possível promover a eficiência e a seleção da proposta mais vantajosa por meio da competição razoável, justa, entre os licitantes, isto é, da competição travada sob reais condições de eles se valerem de suas diferentes expertises e experiências para racionalmente definirem as premissas que influenciarão os preços ofertados nas propostas comerciais.

Nesses casos, ganham peso outros objetivos das licitações públicas: a justa competição e o tratamento isonômico entre os licitantes. Promovê-los passa por exigir que os licitantes considerem em suas propostas os dados divulgados que não podem ser objeto de estudos próprios.

Como dito, os editais de licitação recentes não têm realizado expressamente essa distinção entre as situações em que é viável e aquelas em que não é viável a realização de estudos próprios, mas ela deve ser feita no caso concreto, pelas razões jurídicas apresentadas acima.

Diante disso, nas concessões de serviço público sujeitas à regra do caráter referencial, é preciso reputar como legítima a eventual opção do licitante vencedor por considerar determinada premissa relevante disponibilizada pelo poder público a todos os interessados na concessão, se era inviável a realização de estudos próprios em relação a ela.

Isso significa que, caso a realidade encontrada durante a operação se mostre, para aquela premissa relevante da concessão, substancialmente distinta do que atestado nas informações divulgadas pelo poder público e considerado para definição do preço oferecido na proposta comercial, haverá direito a reequilíbrio.

O direito da concessionária ao reequilíbrio, nessas situações, é decorrência da alteração de condição essencial do contrato em prejuízo de seu equilíbrio econômico-financeiro (nos termos do artigo 10º da Lei 8.987/1995), provocada por fato imprevisível ou de consequências incalculáveis (assim caracterizado por conta da inviabilidade de se realizarem estudos capazes de desafiar a acurácia dos dados divulgados pelo poder público), cujo risco de ocorrência a lei[7]e os contratos de concessão em geral alocam ao poder concedente.


[1] No setor de saneamento, por exemplo, regras desse tipo foram previstas nos contratos de concessão da prestação regionalizada dos serviços públicos de abastecimento de água e esgotamento sanitário licitados pelo Estado do Rio de Janeiro, pelo Estado de Alagoas e pelo Estado do Amapá, modelados pelo BNDES.

[2] Para se caracterizar a inviabilidade da realização de determinados estudos pelos licitantes, é preciso que seja objetivamente inviável aos licitantes em geral a realização dos estudos. Não é a impossibilidade casuística, atribuível ao próprio licitante por questões subjetivas que não atingiriam outros licitantes em geral, que autoriza qualificar determinado estudo como inviável.

[3] Como reconhecido expressamente pelo artigo 5º da Lei 14.133/2021.

[4] Um dos sentidos atribuídos à razoabilidade por Humberto Ávila, por exemplo, no artigo “Moralidade, Razoabilidade e Eficiência na Atividade Administrativa”, publicado na Revista Eletrônica de Direito do Estado, que pode ser acessado no site.

[5] Com este sentido, a razoabilidade equivale à primeira etapa do “exame de proporcionalidade”.

[6] O afastamento da regra nesses casos é uma exigência também dos critérios da teoria geral dos contratos e das disposições de direito privado, aplicáveis às licitações e contratações públicas de longo prazo (conforme artigo 54 da Lei 8.666/1993 e do artigo 89 da Lei 14.133/2021): aplicá-la nesses casos equivaleria a imputar às licitantes uma obrigação nula, tendo em vista ser insuscetível de cumprimento (conforme artigo 106, II, do Código Civil).

[7] Conforme artigo 65, II, “d”, da Lei 8.666/1993 e artigo 124, II, “d”, da Lei 14.133/2021.

*Pedro Pamplona é advogado da Portugal Ribeiro e Jordão Advogados e mestre em Direito da Regulação pela FGV Direito Rio.
As opiniões dos autores não refletem necessariamente o pensamento da Agência iNFRA, sendo de total responsabilidade do autor as informações, juízos de valor e conceitos descritos no texto.

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