iNFRADebate: A superação do dogma da matriz de risco original? Sobre os limites na repactuação de concessões e as recentes decisões do TCU e do STF sobre o tema

*André Luiz Freire

Recentemente, tivemos duas decisões de extrema relevância para o mundo das concessões. A primeira é o Acórdão 1593/2023 – Plenário do TCU (Tribunal de Contas da União); a segunda, a decisão na ADI 7048 do STF (Supremo Tribunal Federal). Os temas discutidos eram diferentes, mas em ambos os casos os efeitos ultrapassam em muito os aspectos ali discutidos.

O contexto

Para você entender bem a importância de tais decisões, um pouco de contexto é necessário. Nós temos, no Brasil, inúmeras concessões em crise. No meu Direito dos Contratos Administrativos (São Paulo: Revista dos Tribunais, 2023, p. 618), defino “concessões em crise” como aquelas em que os investimentos previstos não são realizados, os parâmetros de desempenho não estão sendo cumpridos e/ou a concessionária (mesmo adimplente) acabará falindo pela inviabilidade financeira do empreendimento. São inúmeras as razões que levam a este quadro: problemas de modelagem, crise econômica, modificação nas condições de financiamento, reequilíbrios não-concedidos, erro na elaboração das propostas, dentre outros. São problemas que, a rigor, ninguém sabe mais quem é o “culpado” original (Poder Público ou concessionário).

O fato é que, numa concessão em crise, quem sofre é o usuário.

Há algum tempo tenho defendido que, nesses casos, é preciso admitir mudanças substanciais nos contratos de concessão para torná-lo viável. Foram inúmeros os casos em que um novo sujeito privado pretendia comprar as ações da concessionária e fazer novos investimentos, mas, para isso, era necessário que fossem realizadas modificações contratuais importantes.

Mas sempre houve uma barreira: a manutenção das condições originais do contrato.

Os agentes públicos ficavam receosos em fazer tais modificações – ainda que considerassem o mais adequado. Sempre tiveram medo de que os órgãos de controle considerassem haver violação ao dever de licitar e, por consequência, ofensa ao princípio da isonomia (afinal, é para garantir a isonomia que existe o dever de licitar). A matriz de risco original era tratada como um verdadeiro dogma.

Início da mudança

A solução pensada para resolver este problema foi inteligente: a relicitação. A Lei 13.448/2017 admitiu a rescisão amigável após fosse realizada uma nova licitação (a relicitação), sendo possível o pagamento da indenização por bens reversíveis pelo novo concessionário. Para evitar comportamentos oportunistas, referida lei previu que a adesão pelo concessionário ao processo de relicitação, uma vez celebrado o respectivo termo aditivo, era irrevogável e irretratável (art. 14, § 2º, e art. 15, I).

O problema é que a relicitação demora; afinal, não é fácil estruturar concessões. Os estudos técnicos não são baratos, muitas decisões politicamente difíceis devem ser tomadas, dentre outros.

Num cenário econômico difícil como atual, percebeu-se que a melhor forma de propiciar uma melhora mais rápida na prestação dos serviços seria por meio de uma reestruturação das concessões em curso. De que adianta ter concessões inviáveis – mas cujo conteúdo é basicamente o mesmo do originalmente licitado – e não ver o usuário bem atendido? O que a população brasileira está ganhando com isso?

Em 2022, houve no TCU dois avanços importantes. Em primeiro lugar, o Acórdão 2139/2022 – Plenário admitiu a transferência do controle da Concessionária Rota do Oeste S.A. para a MT Participações e Projetos S.A., empresa estatal do Estado do Mato Grosso. Neste caso, em que a concessão estava em crise, houve modificações intensas nas condições originais. No entanto, o relator – o ministro Bruno Dantas – asseverou que a corte só estava admitindo por se tratar de empresa estatal; se fosse pessoa puramente privada, tal medida não seria possível. No meu Direito dos Contratos Administrativos (cit., p. 621), comentei que a decisão era correta, mas que a argumentação de que a repactuação só foi possível por ser empresa estatal não fazia sentido. Ou a alteração era juridicamente possível, ou não era. Mas, ainda assim, foi um primeiro passo.

O segundo avanço do TCU foi a edição da IN 91/2022, que instituiu, no âmbito do tribunal, procedimentos de solução consensual de controvérsias relevantes e prevenção de conflitos dos entes da Administração Pública federal. Foi criada a SecexConsenso. Uma medida importante do TCU e, recentemente, o primeiro caso sujeito a tal IN foi julgado, admitindo modificações importantes num contrato de energia de reserva (Acórdão 1.130/2023 – Plenário).

Mudança no peso dos valores?

É possível que você esteja incomodado com o caminho que este artigo está tomando. Afinal, o dever de licitar é importante. É ele o instrumento para que se busque a isonomia na escolha do Estado do seu contratado. Sem dúvida, isso é verdadeiro.

No entanto, a isonomia não é o único valor constante no sistema. O valor da “adequação o serviço público” (art. 175, parágrafo único, IV, da Constituição) é outro. Ele implica em dever de eficiência, regularidade, continuidade e outros, sendo a concessão um instrumento para a sua concretização. E esses valores estão no mesmo plano da hierarquia jurídica.

A qual valor devemos conferir maior peso: à isonomia na licitação ou à adequação do serviço?

Infelizmente, não existe um critério objetivo que nos leve a dar mais peso a um valor do que a outro. Isso vai depender da preferência que nós damos a cada valor diante das circunstâncias. O problema é saber quais de “nós” serão responsáveis por fazer esse sopesamento. A ordem jurídica deu uma solução para isso. Ela atribuiu competência para diversos órgãos para tomar essa decisão, atribuindo efeitos jurídicos diferentes. Essa atribuição de peso é usualmente dada pelo “legislador” (por meio de uma lei) e concretizada por órgãos administrativos. Em ambos os casos, tal atribuição de peso pode ser objeto de controle jurisdicional. E, evidentemente, no limite, o STF é o órgão que determinará o peso que nós, destinatários das normas jurídicas, devemos considerar na decisão (gostemos ou não). Isso é particularmente importante nas decisões em controle concentrado de constitucionalidade, pelo seu efeito erga omnes (para todos).

Então, a discussão sobre os limites de uma modificação nos contratos de concessão é uma discussão sobre o peso que atribuímos ao valor da isonomia na licitação (afinal, a isonomia se manifesta de outras formas) e ao valor da adequação do serviço público. Ambos são de natureza constitucional e alguém tem que decidir qual peso deverá ser dado a cada valor no caso da repactuação das concessões.

A decisão do TCU sobre a repactuação nas concessões

Diante do contexto apresentado, o poder executivo federal fez uma consulta ao TCU, cuja resposta tem “caráter normativo e constitui prejulgamento da tese, mas não do fato ou caso concreto” (art. 1º, § 2º, da Lei 8.443/1992).

Foram feitas duas perguntas. Pela primeira, questionou-se se havia objeção ao entendimento de que o caráter irrevogável e irretratável da relicitação se restringia à iniciativa do concessionário. Pela segunda, quais seriam as balizas técnicas para a motivação do encerramento da relicitação. Para simplificar, os ministérios queriam saber se eles poderiam desistir da relicitação e repactuar os contratos de concessão existentes (que, como prevê a Lei 13.448/2017, são restritos ao setor aeroportuário, rodoviário e ferroviário).

Ao longo das manifestações das unidades técnicas e do Ministério Público junto ao TCU, percebeu-se claramente o embate entre os valores citados. Diante do nosso passado, foi natural por parte dos servidores uma resposta negativa à primeira questão. E, mesmo quando foi dada resposta positiva à possibilidade de desistência da relicitação, foram sugeridas diversas condicionantes à repactuação dos contratos. Talvez isso também tenha derivado de uma concepção (não necessariamente verdadeira) que a relicitação presume que o concessionário simplesmente inadimpliu e por culpa integral dele.

O peso ao valor da isonomia na licitação foi dado por dois ministros. Eles admitiam a desistência da relicitação e consequente repactuação, mas desde que fossem observadas as condições originais do ajuste. O dogma da matriz de risco original se fez presente.

Contudo, não foi essa a posição da maioria. Ficou claro nas discussões feitas em plenário que os ministros favoráveis à repactuação tinham ciência da mudança de paradigma que estava sendo colocada em prática naquele momento.

Para resumir muito, foi decidido que as condições originais do ajuste poderiam sofrer alterações pelas partes, a fim de adaptar o contrato a um novo perfil ou configuração. O que deveria ser preservada é a natureza do objeto, bem como o equilíbrio econômico-financeiro. Também foi colocado que “os princípios norteadores que fundamentaram a matriz de risco” deveriam ser observados. Tais expressões são bastante vagas e, portanto, o TCU não colocou limites claros ao grau das modificações, admitindo modificações intensas. O que não dá é para transformar uma concessão de ferrovia em rodovia, por exemplo; ou seja, o objeto geral do contrato (a prestação principal da concessão; vide meu Direito dos Contratos Administrativos, p. 92 ss.) deve ser o mesmo. Mas o restante pode ser alterado.

O necessário é que a Administração justifique essa tomada de decisão. Ela deverá demonstrar que, na comparação dos efeitos em manter o cenário atual (continuidade do processo de relicitação) e seguir a linha do cenário futuro (concessão atual com repactuação), esta última alternativa se mostra mais vantajosa.

O TCU trouxe mais alguns requisitos (como a submissão dos casos concretos à sua apreciação), mas, para o que importa aqui, este é o resumo.

Portanto, a decisão final do TCU no Acórdão 1.593/2023 – Plenário, de forma inovadora em vista da postura anterior, deu mais peso ao valor da adequação do serviço. Embora o caráter normativo do julgado se restrinja aos casos alcançados pela Lei 13.448/2017 (aeroportos, rodovias e ferrovias), não há razão para supor que o mesmo raciocínio não possa ser utilizado para outros casos de concessão em crise, ainda que sem relicitação requerida e em outros setores.

A recente ADI 7048 do STF

A vagueza proposital dos termos usados pelo TCU gerou animação por alguns concessionários, mas uma preocupação. Como o TCU avaliará os diferentes casos concretos? Será que, na prática, esses amplos limites indicados no julgado seriam restringidos nos casos concretos? Será que, ao final, o maior peso atribuído pelo TCU ao valor da adequação do serviço seria diminuído em face do valor da isonomia na licitação?

Essa era uma dúvida legítima. A aplicação poderia ser altamente restritiva e, ao final, aquela ampla flexibilidade na modificação das condições originais seria extremamente restringida na prática. Mas, ao que me parece, o STF acabou por reforçar a obrigação dos agentes do sistema de darem preferência ao valor da adequação do serviço ao julgar (com efeito erga omnes, como qualquer ação em controle concentrado de constitucionalidade) a ADI 7048.

Nesta ADI (que fora recebida como ADPF pelo STF), discutia-se a constitucionalidade de dois decretos editados pelo Estado de São Paulo. O Decreto 65.574/2021 autorizou a prorrogação antecipada, pelo prazo de 25 anos, da concessão do serviço de transporte coletivo intermunicipal por ônibus e trólebus no Corredor Metropolitano São Mateus-Jabaquara. Além disso, tal regulamento admitiu, a título de novos investimentos, a incorporação do Sistema BRT-ABC (que compreendia alguns municípios da região do ABC) e do chamado “sistema remanescente” (em síntese, a inclusão de uma nova área para a operação das linhas de ônibus antes operadas por outras empresas em caráter precário). Já o Decreto 65.575/2021 previu o regulamento dessa nova etapa da concessão, operada por uma só concessionária (a Metra – Sistema Metropolitano de Transportes Ltda.).

Em seu voto, a ministra relatora Cármen Lúcia reputou inconstitucionais os referidos decretos, por ofensa aos princípios da prévia licitação, legalidade, isonomia, moralidade e impessoalidade. A ministra indica que, pelos documentos juntados, o objeto do contrato seria aumentado em cerca de 700%. O objeto original passaria de 12 linhas operacionais para potencialmente 97 linhas. Os ministros Edson Fachin e Rosa Weber acompanharam a relatora.

Contudo, o ministro Gilmar Mendes iniciou uma divergência. Ele retomou a argumentação feita na ADI 5991 (tratou das prorrogações antecipadas no setor ferroviário disciplinadas pela Lei 13.448/2017), sustentando ser válida a prorrogação antecipada se: (a) o contrato original tiver sido objeto de licitação; (b) o contrato estabelecer a possibilidade de prorrogação; e (c) que a discricionariedade da administração pública se fundamente em critério de vantajosidade. Segundo ele, o Estado de São Paulo trouxe estudo técnico fundamentando a vantagem de tal prorrogação antecipada, especialmente quando se considera o histórico e a qualidade dos serviços de transporte prestados na região. Um dos fundamentos técnicos estava na inviabilidade de licitar parte da nova área (alcançada pelo Sistema BRT-ABC), pois licitações anteriores foram realizadas e não foram bem-sucedidas. O ministro Gilmar Mendes pontuou também que não cabe ao STF invadir o mérito da decisão administrativa de prorrogação dos contratos, tendo em vista a realização de novos processos licitatórios em situações concretas.

Os demais ministros acompanharam o ministro Gilmar Mendes. O ministro Alexandre de Moraes, em seu voto, reputou que a inclusão da nova área estava respaldada em fundamento técnico e operacional, sendo a prorrogação antecipada uma alternativa à licitação. Por sua vez, o ministro Cristiano Zanin apontou haver estudos técnicos e financeiros prévios que amparariam o interesse público. E trouxe as razões indicadas pelo Estado de São Paulo para adotar tal medida. Tais razões foram as seguintes: (a) eliminação dos custos com projetos e consultorias (R$ 30 milhões); (b) redução imediata da TIR (Taxa Interna de Retorno) do contrato de 16,15% para 8,31%; (c) redução da tarifa de remuneração de R$ 6,53 para R$ 6,36 (o que representa um custo menor de R$ 592 milhões para toda vigência); (d) alocação do risco de desapropriação e das obras para a Metra; e (e) redução, via negociação, de desequilíbrio econômico-financeiro já reconhecido para a Metra de R$ 738 milhões para R$ 553 milhões.

Como se pode perceber, o embate entre preferência ao valor da isonomia na licitação e ao valor da adequação do serviço também esteve presente no STF. E, ao final, o valor da adequação do serviço teve mais peso. Perceba que o STF reputou que, mesmo diante de um acréscimo de valor de cerca de 700%, como o Estado havia justificado de modo a demonstrar a vantagem da opção em vista de uma nova licitação, não havia inconstitucionalidade.

Conclusão

Como você deve ter percebido, as duas decisões representam uma mudança de paradigma. No Acórdão 1593/2023 – Plenário, o TCU admitiu mudanças intensas, que alterassem a matriz de riscos original. Não há limites claros capazes de indicar em qual intensidade essas modificações poderão ser feitas. Pelos termos do julgado, eu diria que são bem amplos. Mas uma interpretação restritiva do julgado poderia tornar reduzir os limites de tal modo que as repactuações seriam inviabilizadas.

No entanto, pela decisão do STF (que, volto a lembrar, tem caráter erga omnes), esses limites são muito amplos. Veja que o valor do contrato aumentou em 700% (mesmo com a inclusão de um novo período contratual, trata-se de um aumento substancial) e novas áreas (que, em tese, admitiram licitações apartadas) foram incluídas. Tudo o que foi exigido foi uma justificativa que se mostrasse a vantagem para o interesse público.

As decisões indicam que talvez agora, ao menos no âmbito das concessões, o dogma da matriz de risco original já não possui preferência em relação à adequação do serviço.

Talvez você esteja pensando no seguinte: “isso é um absurdo e a picaretagem vai rolar solta; o Brasil é o Brasil”. Pode até ser que isso ocorra. Mas, se ocorrer, o problema não estará na possibilidade de repactuação (por maior peso no valor da adequação do serviço). E certamente não será o maior peso no valor da isonomia na licitação que vai alterar isso, como mostra a experiência brasileira. Talvez a mudança passe pela transformação moral da nossa sociedade no trato com a coisa pública.  

*André Luiz Freire é presidente da Comissão de Infraestrutura do Instituto Brasileiro de Direito Administrativo.
O iNFRADebate é o espaço de artigos da Agência iNFRA com opiniões de seus atores que não refletem necessariamente o pensamento da Agência iNFRA, sendo de total responsabilidade do autor as informações, juízos de valor e conceitos descritos no texto.

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