Diogo Uehbe Lima* e Maria Luiza Antonaccio**
Dando continuidade à série sobre o tema das adaptações das concessões ferroviárias, após apresentarmos uma visão geral sobre o regramento do instituto1, traçaremos a seguir algumas observações visando seu aprimoramento.
Reflexões críticas: adaptação de concessões federais afetadas por autorizações estaduais
Como visto, o §1º do art. 64 do NMLF (Novo Marco Legal das Ferrovias) restringe as hipóteses de adaptação à superveniência de uma ferrovia regida por autorização federal: “§ 1º A adaptação referida no caput deste artigo pode ocorrer quando uma nova ferrovia construída a partir de autorização ferroviária federal entrar em operação, caso a autorização tenha sido outorgada à pessoa jurídica (…)”.
Caso a nova ferrovia implantada em um mesmo mercado competitivo ou relevante seja regida por uma autorização ferroviária estadual, a concessionária de ferrovia federal afetada, em tese, não poderia requerer a adaptação – uma vez que o NMLF não assegura essa possibilidade de modo explícito. E, por diversas razões, seria preferível que o fizesse.
Primeiro porque a redação atual lança sobre as atuais concessionárias o risco de demanda com o surgimento de ferrovias estaduais2 exploradas por concorrentes, submetidas a um regime menos oneroso, e, portanto, capazes de praticar tarifas sensivelmente inferiores. A preocupação do legislador federal quanto às condições desiguais de competição e à assimetria regulatória não teria, nessa hipótese, uma solução simples – gerando-se, inclusive, à União o risco de as concessionárias pleitearem o reequilíbrio de seus contratos, com todos os ônus que esse tipo de discussão pode envolver.
Tal problema não é mera especulação, e, de certa forma, já tem sido vislumbrado no mercado. Exemplo disso é a discussão sobre os potenciais impactos da Fato (Ferrovia Autorizada de Transporte Olacyr de Moraes), ferrovia estadual autorizada pelo Estado do Mato Grosso, sobre a Ferrogrão, ferrovia federal cuja concessão ainda será licitada3.
De outro lado, a concessionária (ou seu grupo econômico) interessada em expandir sua malha ou aumentar sua capacidade de transporte, por meio de uma ferrovia estadual a ser implantada em complementariedade à ferrovia federal que lhe fora concedida, não teria o instrumento da adaptação como incentivo para o investimento nessa expansão – produzir-se-ia, nesse cenário, o efeito inverso àquele pretendido pelo legislador com o NMLF.
Nesse contexto, parece-nos que deveria ser garantida a possibilidade de conversão da concessão federal para autorização, diante da superveniência de ferrovia outorgada por meio de autorização estadual. Essa solução conferiria maior efetividade a diversos princípios e diretrizes setoriais, elencados no próprio NMLF. Exemplificativamente: (i) defesa da concorrência4, (ii) integração da malha ferroviária nacional – que, além de princípio e diretriz do NMLF5, é um dos principais objetivos dos Sistemas de Viação dos Estados6; (iii) busca por uma regulação equilibrada do mercado7; e (iv) ampliação do mercado ferroviário, com o aumento da oferta de mobilidade e de logística, por meio de incentivos a novos investimentos8; e (v) promoção de desenvolvimento econômico e social por meio da ampliação da logística e da mobilidade ferroviárias9.
Reflexões críticas: requisito do percentual mínimo (50%) para expansão da malha ou aumento da capacidade de transporte.
Outro ponto que merece destaque é a exigência de percentual mínimo de expansão da malha ou capacidade ferroviária que deverá ser observado pela concessionária para a adaptação de seu contrato de concessão.
Como dito, dentre as hipóteses legais, a adaptação de determinado contrato de concessão pode ser realizada quando uma empresa integrante do mesmo grupo econômico da concessionária realizar a extensão de sua malha ou capacidade ferroviária, no mesmo mercado relevante, em um percentual não inferior a 50% (cinquenta por cento).
Ocorre que esse percentual pode configurar verdadeiro limitador à realização de investimentos pela iniciativa privada. Uma concessionária interessada em expandir sua malha ou sua capacidade de transporte em 30% (trinta por cento) ou 40% (quarenta por cento) simplesmente não seria elegível à adaptação, o que pode esvaziar a atratividade desse investimento para o agente privado.
A exigência legal desse percentual mínimo prejudica tanto as concessionárias quanto a própria Administração Pública porque (i) tende a inviabilizar expansões menores, mas de interesse público, e (ii) pode forçar a realização de investimentos não necessariamente alinhados à demanda do mercado, apenas para que seja atendido o percentual mínimo inserido como requisito para a adaptação. Esse modelo contraria frontalmente o objetivo principal do NMLF com a instituição do regime de autorizações, que é justamente adequar a oferta do transporte ferroviário às demandas de mercado.
Assim, para garantir o pleno atendimento ao interesse público e incentivar a realização de novos investimentos pela iniciativa privada na implantação de trechos economicamente viáveis, seria fundamental que fosse realizada, se não a supressão da exigência dos 50%, ao menos a estipulação de um intervalo em que os 50% representem o percentual máximo exigível pelo regulador, de forma motivada e fundamentada, como requisito para cabimento da adaptação dos contratos de concessão preexistentes.
Reflexões críticas: eficiência econômica como critério de apreciação. Necessidade de regulamentação.
Outro aspecto que merece reflexão é justamente a ausência de um regramento mais denso sobre os critérios para análise dos pedidos de adaptação. A lacônica menção, na lei, à “eficiência econômica”10 demanda uma regulamentação robusta para reduzir o espaço de apreciação discricionária do regulador, mitigando o risco de arbitrariedades.
A expectativa é que a futura resolução da ANTT (Agência Nacional de Transportes Terrestres)11 regulamente a matéria, trazendo a definição (i) dos parâmetros objetivos de aferição da chamada eficiência econômica, prevista no texto legal, bem como (ii) do procedimento que será adotado na apreciação dos pedidos de adaptação, garantindo-se publicidade, transparência, além da observância dos princípios da ampla defesa e do contraditório, inclusive para fins de apresentação de esclarecimentos e informações complementares pelas concessionárias.
Acredita-se que, com a regulamentação mais clara dos critérios de apreciação dos pedidos de adaptação, haverá maior previsibilidade e segurança jurídica para as atuais concessionárias, evitando-se, inclusive, a produção de decisões injustificadamente díspares, por parte da agência reguladora.
Reflexões críticas: limitação a prorrogações em contratos adaptados.
O NMLF dispõe que os contratos adaptados poderão ser prorrogados uma única vez, sendo vedada a prorrogação após a adaptação caso o contrato de concessão anterior já tenha sido objeto de prorrogação antecipada12.
Nesse ponto, o NMLF difere sensivelmente da extinta MP (Medida Provisória) nº 1.06513, que previa que os contratos oriundos de adaptação poderiam ser prorrogados por sucessivas vezes até que fosse atingido o limite total de 99 (noventa e nove) anos14.
Fato é que, sob a regra vigente do NMLF, a vedação a nova prorrogação do contrato adaptado impede o estabelecimento de prazos adicionais que podem ser necessários para a amortização de investimentos realizados, especialmente nos casos de expansão da malha ou ampliação da capacidade operacional.
Também a restrição legal tende a desestimular investimentos em novos trechos que poderiam ter viabilidade econômica se houvesse maior flexibilidade no prazo de vigência da autorização resultante da adaptação, a fim de que os recursos empregados na implantação e operação das ferrovias fossem recuperados pelo investidor privado.
Nesse contexto, partindo-se da premissa de que a concessão adaptada deve se submeter às regras gerais próprias da autorização, configurando a exploração da infraestrutura ferroviária como atividade econômica desenvolvida no interesse do particular, regida pelo direito privado, parece-nos ser um contrassenso a limitação especial às prorrogações de prazo das autorizações oriundas dos processos de adaptação.
Ou bem a adaptação converte as concessões em autorizações, aplicando-se o regime próprio, ou então a referida conversão corre o risco de se tornar uma alteração meramente formal, sem qualquer modificação substancial na relação jurídica travada entre os agentes privados e o Poder Público.
Por essas razões, acreditamos ser importante uma revisão da redação do art. 64, § 8º do NMLF, especialmente para assegurar que, nos casos das autorizações resultantes da adaptação de concessões, os prazos de vigência da outorga e as regras de sua prorrogação sejam os mesmos definidos para as demais autorizações.
Conclusões
Como se vê, apesar de ter como principais objetivos a atração de novos investimentos e o crescimento sustentável do setor ferroviário no Brasil, o NMLF e sua futura regulamentação comportam alguns melhoramentos, especialmente relacionados à adaptação das concessões para o modelo das autorizações, a fim de que determinados entraves normativos sejam superados, garantindo-se mais previsibilidade e segurança jurídica para as atuais concessionárias e para os potenciais investidores do setor ferroviário no Brasil.