Luiz Afonso dos Santos Senna*
A democracia é um mecanismo que assegura que não devemos ser melhor governados do que merecemos. (George Bernard Shaw)
No mesmo momento em que CGU (Controladoria-Geral da União) divulga estudo1 do governo federal que destaca positivamente a autonomia e independência da AGERGS (Agência Estadual de Regulação dos Serviços Públicos Delegados do Rio Grande do Sul), foi aprovada na Assembleia Legislativa lei de iniciativa do Poder Executivo gaúcho que atinge mortalmente o espírito da agência reguladora.
O ataque mortal, feito por meio do Projeto de Lei 81/2021, dispõe sobre a exploração direta ou mediante concessão dos serviços locais de gás canalizado de que trata o art. 25, § 2º, da Constituição Federal, estabelece princípios, diretrizes e normas relativas ao referido serviço no Rio Grande do Sul.
A intenção do governo era colocar o estado em posição de vanguarda, atrair investidores e aumentar a competitividade. Contudo, essa boa intenção foi mesclada com alguns vícios típicos de quem age mais por necessidade do que por convicção: ao estruturar o mercado, a atual presença estatal é substituída por investidores privados, porém fica mantida a forte presença do estado quando procura subordinar a si a agência reguladora, o que compromete de forma inequívoca e definitiva o papel independente e autônomo da agência.
Sob o ponto de vista de uma agência digna desse nome, existem alguns pontos que são absolutamente inegociáveis. A AGERGS é ente regulador em sua essência; não é poder concedente. Alguns artigos da lei agora aprovada, ferem de morte os mais importantes princípios regulatórios: autonomia e independência. Em outras palavras, e de forma mais direta, trata-se de uma clara e inequívoca captura da agência, que se traduz em contundente retrocesso econômico e de governança. O mercado precifica tal movimento.
As agências reguladoras são alvos constantes de bullying por parte de governos e órgãos de fiscalização, entre outros. O bullying caracteriza-se por agressões intencionais e repetitivas. O fato novo é que, no caso em questão, as ações de bullying escalonaram para ações violentas e brutas, como as caracterizadas nos artigos 17, 37 e 56 do PL 81, que subordinam as decisões da AGERGS à Procuradoria-Geral do Estado (a agência não terá mais poder de decisão e apenas poderá normatizar se o Poder Executivo delegar essa atribuição).
De uma forma geral, no Brasil, governos das mais variadas orientações político-ideológicas sofrem de um antigo dilema: convicção versus necessidade. As necessárias reformas para criar um ambiente favorável à atração de investidores privados e constituição de mercados mais robustos e economicamente sustentáveis, colocam-se com níveis pouco profundos de convicção política e ideológica em relação à participação privada. O resultado é a falta de decisão clara e criação de artifícios para manter poder e controle sobre os mercados. Obviamente, a exteriorização desse dilema implica riscos, cuja percepção e avaliação pelos investidores é quantificada.
As privatizações e concessões são fundamentalmente contratos de longo prazo entre a administração pública e empresas privadas pelos quais o governo transfere ao segundo a execução de um serviço público, para que este o exerça em seu próprio nome e por sua conta e risco, por prazo pré-determinado, mediante tarifa paga pelo usuário, em regime de monopólio ou não. O poder concedente, mediante licitação, escolhe a pessoa jurídica (ou consórcio de empresas) que melhor demonstre capacidade para o desempenho das atividades, por sua conta e risco.
A estrutura econômico-financeira das empresas que prestam serviços públicos possui arranjos econômicos e financeiros complexos, utiliza conceitos de project finance, qual seja, uma estrutura de financiamento baseada na atratividade de um projeto específico. Isso significa que quando os investidores/credores decidem financiar um projeto, eles se baseiam na capacidade do mesmo gerar recursos que garantam o pagamento e remuneração de seu capital, independentemente dos outros fluxos que compõem o balanço das empresas empreendedoras. O concessionário, ao definir sobre a pertinência ou não de participar do certame, realiza uma avaliação econômico-financeira do projeto com base em figuras de mérito, tais como Taxa Interna de Retorno Econômico, Valor Presente Líquido, payback, e relação receita/despesa, a partir de fluxos de caixa.
As empresas concessionárias possuem estrutura complexa de gestão de riscos que estão ancorados no contrato estabelecido com o poder concedente. Neste sentido, a preocupação primordial é dar garantias e proteções contra os riscos a que estarão sujeitos os participantes. Os riscos que podem influenciar o sucesso de um projeto podem ser de inúmeras naturezas e de difícil mensuração. Dessa forma, quando se opta por um project finance, a gestão e alocação dos riscos entre os agentes envolvidos torna-se questão fundamental.
Uma concessão é fundamentalmente a gestão de um fluxo de caixa que contém deveres (investimentos, manutenção e operação do ativo público em níveis de qualidade pré-fixados) e direitos (tarifa), que deve ser feita em um ambiente regulatório estável e obedecendo ao regramento definido pelo poder concedente previamente ao certame licitatório que outorgou ao concessionário o direito de operar a concessão por um determinado período que garanta a necessária segurança jurídica.
O contrato, figura fundamental em um país sob a égide do estado de direito, define regras, direitos e deveres e todas as obrigações referentes à prestação de serviços por um período que normalmente supera o período de governos (sete governos, em um contrato de 30 anos), assim como os riscos, identificados e alocados às partes que melhor lidam com os mesmos.
Criada em 1997, a AGERGS tem presado relevantes serviços e sobreviveu a vários ataques e tentativas de subordinação e captura. A agência exerce um papel fundamental na regulação; cabe a ela preservar o equilíbrio econômico-financeiro dos contratos de serviços públicos concedidos. Atua de forma independente, porém em harmonia com a estratégia e o funcionamento dos demais órgãos da máquina de estado, dos vários poderes: Executivo, Legislativo e Judiciário, assim como de seus órgãos de acompanhamento e controle. Observa equidistância dos interesses dos vários stakeholders: consumidores, prestadores dos serviços concedidos e do próprio Poder Executivo, de forma a evitar eventuais pressões conjunturais.
Por regular múltiplos setores (saneamento, transporte de passageiros, rodovias, entre outros) a experiência acumulada permite a transposição de conhecimentos adquiridos e a adaptação ao novo. Contratos de longa duração, além de conviverem com vários governos, também estão expostos aos ciclos econômicos, tecnológicos, e a mudanças sociais e culturais.
Os consumidores dos serviços públicos delegados devem cobrar que seus direitos sejam assegurados; que as tarifas e preços sejam justos e que a qualidade seja a preconizada. Investidores e concessionários devem contar com regras claras e estáveis, remuneração compatível com os investimentos, que devem estar consubstanciados em fluxos de caixa definidos nos contratos, e pleno cumprimento dos contratos e dos regulamentos.
A agência atua de forma a assegurar neutralidade, tratamento isonômico, prestação de contas, transparência, imparcialidade, diálogo e comunicação permanente. Deve agir com serenidade e transmitir credibilidade, assegurando aos investidores, consumidores, governo e sociedade em geral, de forma inequívoca, seu compromisso com o pleno cumprimento dos contratos, com base técnica e senso de justiça.
Ao ferir mortalmente a autonomia e independência da agência, o governo compromete toda uma história de evolução e resistência, materializados no reconhecimento do estudo da CGU, e promove um sério retrocesso no ambiente de regulação no estado do Rio Grande do Sul. A agência passará a ser apenas mais um órgão burocrático, a cabresto e triste: a antítese do que é uma agência que mereça tal nome. Deixará de ser protagonista e se somará a outras agências país afora que já sofrem deste mal.
O bullying evoluiu para uma ação sem precedentes de violência e fúria contra a autonomia e a independência regulatória, causando a morte cerebral da agência. É paradoxal que se sinta saudade dos tempos em que os governos se limitavam a indicar alguns dirigentes desqualificados e submissos para as agências reguladoras; depois de alguns anos eles saíam e até se corria o risco de alguém qualificado ser indicado para substituí-los. Agora a captura é institucional. Vai ser difícil encontrar dirigentes realmente qualificados que se submetam a cabrestos…
Tristes e sombrios tempos estes que vivemos….. Mas, como sempre, também passarão. Até porque, como diz Germán Abdala, “Poderão arrancar mil flores, porém não poderão deter a primavera”.