iNFRADebate: Contêineres em Santos, verticalização portuária e falácia do espantalho

Leonardo Coelho Ribeiro*

Vez por outra os setores de infraestrutura convivem com algumas máximas. Como axiomas, geralmente quem as pronuncia acredita que não precisa provar suas razões. É assim com o tema da verticalização portuária.

Sem evidências, a pretexto de combater uma verticalização mundialmente ameaçadora, entre empresas de navegação e terminais portuários, o país vai ficando para trás, engargalando sua logística, perdendo capacidade de movimentação de cargas, competitividade, eficiência e tecnologia. Ao argumento de se fomentar a concorrência, buscando impedir a verticalização, o que se faz é, justamente… restringir a concorrência e não prover a infraestrutura de que necessitamos.

Quando essa restrição é mal calibrada, no entanto, ela se dissocia de seu alardeado intuito protetivo à ampla concorrência e migra para o extremo oposto, comprometendo a competição e provocando a subutilização de ativos relevantes ao interesse público. E isso custa caro a todo o país. Muito.

Licitações recentes de arrendamentos portuários têm, recorrentemente, previsto em seus editais medidas restritivas à concorrência. Para ficarmos em três exemplos simbólicos, pela sua descalibragem, foi assim: (i) em STS 08 e 08-A (uma das áreas quedou deserta); (ii) em STS 10 (a licitação segue sem acontecer); e (iii) na própria desestatização do porto de Santos (SP), que minudenciava severas regras restritivas (por essa, e outras razões, a licitação também não foi realizada no governo passado).

Não é por outra causa que restringir a concorrência não deveria ser comum. Porque não há nada de comum nisso. Mas essa intensa intervenção no mercado parece ter sido normalizada nos tempos atuais. De tal modo que tornou preciso resgatar o óbvio: restringir licitação não é regra. Seja nos termos do art. 3º, da Lei 8.666/1993[1], do art. 11, da Lei 14.133/2021[2], do art. 28, da Lei 10.233/2001[3] e do art. 3º, I e V, da Lei 12.815/2013[4], a licitação existe para buscar a proposta mais vantajosa por meio da ampla e isonômica competição. Qualquer coisa fora disso sempre foi, e deverá seguir sendo, excepcionalíssima. Demanda evidências empíricas robustas, e atrai ônus argumentativo severo ao tomador de decisão, seja ele formulador de política pública, regulador ou controlador.

Dada sua característica, a competição pela infraestrutura portuária é extremamente relevante. Via de regra, é justo na competição ‘pelo serviço’ que se dá a obtenção das melhores condições para os usuários, seja permitindo maior capacidade de movimentação, menor tempo de movimentação, maior outorga (fixa e/ou variável) ou menor tarifa.

O papel dessa etapa, portanto, é o de delegar a operação de uma estrutura vital ao desenvolvimento econômico nacional àquele que atribui maior valor a esse ativo, e ofertará condições mais vantajosas a preços mais competitivos.

No caso da movimentação de contêineres, a verticalização que se dá quando um dono de carga ou empresa de navegação assume a implantação e operação de um terminal portuário próprio provê inúmeros benefícios concretos:

  • permite, com mais segurança, a realização de investimentos em ativos específicos de infraestrutura voltados para elevar a produtividade da operação de transporte;
  • reduz custos de transação;
  • favorece a coordenação das atividades de navegação e movimentação portuária, por meio da governança hierárquica interna de comando e controle, que facilita a adaptação a contingências imprevistas e a solução de conflitos que venham a surgir entre os responsáveis pelas diversas etapas da operação;
  • proporciona ganhos de escopo;
  • torna a operação logística, como um todo, mais eficiente; e, dessa forma,
  • proporciona a redução de fretes.

É disso que se está abrindo mão quando se restringe a verticalização portuária.

Se a delegação de novos terminais a empresas verticalizadas não levará ao fechamento do mercado, como apontou o CADE (Conselho Administrativo de Defesa Econômica) em consulta pública realizada em 2022, ator preferencial em nosso arranjo institucional para a defesa da concorrência, e referência de excelência nacional e internacional na matéria, restringir a competição pelo mercado não faz sentido.

Não compete ao Brasil defender a concorrência global, tal qual um paladino da justiça. Ainda mais ao próprio sacrifício, perdendo a condição de destino para relevantes rotas marítimas internacionais.

O gargalo portuário brasileiro não está em arrendamentos portuários para operações verticalizadas. Mas na falta de capacidade fabricada que escasseia a oferta e, essa sim, impõe preços crescentes, supracompetitivos, aos usuários dos portos. Daí porque problematizar a verticalização portuária é uma falácia do espantalho. Serve apenas de diversionismo, para desviar o foco do que realmente importa.

Enquanto se descola da experiência internacional, em que a verticalização se faz amplamente presente, e vai brigando contra um espantalho inexistente, paralisando ou não licitando os arrendamentos necessários, como tem acontecido no porto de Santos, o sacrifício econômico vai penalizando o país, e toda a sua atividade produtiva que depende da cadeia logística, ao benefício de remunerar, com valores supracompetitivos, alguns incumbentes pela escassez de capacidade de movimentação de contêineres.

Se não for isso que se quer, é preciso rapidamente corrigir a rota, promovendo as licitações necessárias para o aumento da capacidade de movimentação de contêineres no porto de Santos, por meio de ampla e isonômica competição. O tempo é muito precioso para desenvolver projetos de infraestrutura. Não parece uma boa ideia seguirmos parados, enquanto o barco afunda, discutindo se o balde para evitar o naufrágio deveria ser azul ou vermelho.


[1] Art. 3º A licitação destina-se a garantir a observância do princípio constitucional da isonomia, a seleção da proposta mais vantajosa para a administração e a promoção do desenvolvimento nacional sustentável e será processada e julgada em estrita conformidade com os princípios básicos da legalidade, da impessoalidade, da moralidade, da igualdade, da publicidade, da probidade administrativa, da vinculação ao instrumento convocatório, do julgamento objetivo e dos que lhes são correlatos. (Redação dada pela Lei 12.349/2010)
§ 1º É vedado aos agentes públicos:
I – admitir, prever, incluir ou tolerar, nos atos de convocação, cláusulas ou condições que comprometam, restrinjam ou frustrem o seu caráter competitivo, inclusive nos casos de sociedades cooperativas, e estabeleçam preferências ou distinções em razão da naturalidade, da sede ou domicílio dos licitantes ou de qualquer outra circunstância impertinente ou irrelevante para o específico objeto do contrato, ressalvado o disposto nos §§ 5º a 12 deste artigo e no art. 3º da Lei 8.248/1991; (Redação dada pela Lei 12.349/2010)
(…)

[2] Art. 11. O processo licitatório tem por objetivos:
I – assegurar a seleção da proposta apta a gerar o resultado de contratação mais vantajoso para a Administração Pública, inclusive no que se refere ao ciclo de vida do objeto;
II – assegurar tratamento isonômico entre os licitantes, bem como a justa competição;
III – evitar contratações com sobrepreço ou com preços manifestamente inexequíveis e superfaturamento na execução dos contratos;
IV – incentivar a inovação e o desenvolvimento nacional sustentável.
(…)

[3] Art. 28. A ANTT [Agência Nacional de Transportes Terrestres] e a ANTAQ [Agência Nacional de Transportes Aquaviários], em suas respectivas esferas de atuação, adotarão as normas e os procedimentos estabelecidos nesta Lei para as diferentes formas de outorga previstos nos arts. 13 e 14, visando a que:
I – a exploração da infraestrutura e a prestação de serviços de transporte se exerçam de forma adequada, satisfazendo as condições de regularidade, eficiência, segurança, atualidade, generalidade, cortesia na prestação do serviço, e modicidade nas tarifas;
II – os instrumentos de concessão ou permissão sejam precedidos de licitação pública e celebrados em cumprimento ao princípio da livre concorrência entre os capacitados para o exercício das outorgas, na forma prevista no inciso I, definindo claramente: (…)

[4] Art. 3º A exploração dos portos organizados e instalações portuárias, com o objetivo de aumentar a competitividade e o desenvolvimento do país, deve seguir as seguintes diretrizes:
I – expansão, modernização e otimização da infraestrutura e da superestrutura que integram os portos organizados e instalações portuárias;
V – estímulo à concorrência, por meio do incentivo à participação do setor privado e da garantia de amplo acesso aos portos organizados, às instalações e às atividades portuárias; e (Redação dada pela Lei 14.047/2020)
(…)

*Leonardo Coelho Ribeiro é professor do LLM (Master of Law) em Direito da Infraestrutura e da Regulação na FGV (Fundação Getulio Vargas) Direito Rio e sócio de Braz, Coelho, Campos, Véras, Lessa e Bueno Advogados.
O iNFRADebate é o espaço de artigos da Agência iNFRA com opiniões de seus atores que não refletem necessariamente o pensamento da Agência iNFRA, sendo de total responsabilidade do autor as informações, juízos de valor e conceitos descritos no texto.

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