Renato Fernandes de Castro*
Na madrugada de quarta-feira, dia 17 de março de 2021, a Lei do Gás (Lei Federal nº 11.909/09), após 12 anos de sua vigência, foi alterada pelo Congresso Nacional. O Novo Marco Legal do Gás foi aprovado pela Câmara dos Deputados, após muito debate do Projeto de Lei nº 4.476/2020, que busca adequar a legislação setorial às demandas dos agentes econômicos, que requerem uma legislação que beneficie a liberalização e desverticalização do setor. Após a sua aprovação pela Câmara dos Deputados, o texto de lei agora depende apenas da sanção presidencial.
Historicamente a cadeia de gás natural enfrentou dificuldades quanto a sua expansão, uma vez que o mercado concentrava a uma mesma empresa, Petrobras, a participação dominante em todos os segmentos da cadeia de gás natural. Dessa maneira, o setor enfrentou severas barreiras para atrair novos investimentos, ampliar a concorrência e reduzir o preço do energético no país.
A alteração do novo marco legal do gás natural é objeto de debate há mais de oito anos na Câmara dos Deputados, com o PL 6.407/2013 (substituído pelo PL 4.476/2020), no entanto, a necessária mudança da Lei do Gás ganhou mais força a partir de 2016, com a publicação pelo MME (Ministério de Minas e Energia) da Consulta Pública n.º 20, também conhecida como “Gás para Crescer”. Na mencionada consulta pública buscou-se por meio de avaliação de especialistas, representantes das empresas setoriais, agentes do setor e autoridades, apresentar propostas de melhorias na legislação setorial, pois verificou-se um baixo grau de maturidade e dinamismo da indústria de gás natural no país.
Desse modo, para realizar os necessários ajustes ao setor foram desenvolvidas propostas que visaram realizar a abertura do mercado, com a sua desverticalização e acesso isonômico e transparente às infraestruturas essenciais a todos os agentes econômicos. Como resultado, em 2019, o MME lançou o programa “Novo Mercado de Gás”, para estabelecer as necessárias diretrizes para a liberalização do setor, com base na promoção da concorrência; da integração do gás natural com os setores elétrico e industrial; harmonização das regulações estaduais e federal; e, finalmente, remover as barreiras tributárias.
Ainda em 2019, o CNPE (Conselho Nacional de Políticas Energéticas) editou a Resolução nº 16 e estabeleceu as diretrizes para o aperfeiçoamento das políticas energéticas voltadas à promoção da livre concorrência do mercado de gás natural. De igual forma, o Cade (Conselho Administrativo de Defesa Econômica) assinou em 28 de julho de 2019 com a Petrobras, o MME e a ANP (Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis), o TCC (Termo de Compromisso de Cessação), na qual a empresa estatal se comprometeu a alienar suas participações societárias nas transportadoras de gás natural (NTS, TAG e TBG) e nas suas distribuidoras, por meio da alienação da participação da Gaspetro até 31 de dezembro de 2021.
Diante desse cenário desafiador, o Governo Federal passou a buscar a aprovação do mencionado PL do Gás para incrementar a competitividade setorial e promover a sua abertura para novas empresas. A sua aprovação, portanto, pretende trazer a almejada redução do preço do energético, que segundo estudo realizado pela Seae (Secretaria da Advocacia da Concorrência e Competitividade) em 2020, pode chegar até a 43% para o segmento industrial, em alguns estados brasileiros, bem como 25% no preço do gás de cozinha (GLP).
Em linhas gerais, dentre as principais modificações do novo marco legal do gás natural, podemos destacar as seguintes:
- A implementação de um modelo tarifário de entrada e saída. No novo modelo considera-se um contrato de reserva de capacidade do gasoduto com base na sua Entrada/Saída, vinculando o carregador ao local de entrada (recebimento) do gás e à retirada (saída) em um ponto definido. A contratação fica, portanto, relacionada aos locais de entrada e de saída do gás natural, fazendo-se necessário firmar um novo contrato para alterá-los. A vantagem dessa modalidade para o modelo “Postal” atualmente previsto na Lei do Gás, é que esse tipo de contratação incentiva a diversificação da oferta; amplia a liquidez e contribui com o desenvolvimento de mercados de gás natural; estimula o desenvolvimento de centros (hubs) de negociação de contratos; tende a reduzir custos de transação; e auxilia na otimização da utilização das malhas de transporte existentes.
- Adoção do regime de autorização para o transporte e estocagem de gás natural. O novo regime que passará a ser adotado é mais simples do que o regime de concessão atualmente previsto na Lei do Gás, uma vez que o novo modelo não exige a realização prévia de licitação pelo poder público.
- Desverticalização e independência das atividades de transporte, distribuição e produção de gás natural. O novo marco legal implementa a separação vertical estrutural de empresas detentoras de infraestrutura de transporte das atividades concorrenciais do setor (comercialização, produção, liquefação e importação), visando o seu acesso não discriminatório a terceiros interessados. Dessa forma, ficam previstas regras que obrigam as empresas detentoras de infraestruturas (essential facilities) a ofertar capacidade de acesso.
- Estabelecimento de uma empresa gestora e operadora da rede de transporte de gás natural. O novo marco estabelece que a rede de transporte de gás natural deverá ser única e integrada, operada e gerida de maneira independente por uma empresa, que será escolhida por uma das transportadoras no país.
Com efeito, algumas normas infralegais foram expedidas pelas agências reguladoras, federal e estaduais, com o intuito de estabelecer regulamentos que favorecessem a criação de um ambiente adequado ao crescimento setorial e a constituição de um livre mercado de gás natural. Nesse sentido, em 2018 e 2019, a ANP colocou em consulta pública regulamentações que visavam o estabelecimento de regras de maior transparência ao acesso aos gasodutos de transporte de gás natural e sua movimentação, bem como a desverticalização setorial, com o fito de incrementar a concorrência no setor.
Assim, em 2018, a ANP publicou a Tomada Pública de Contribuições n.º 6, para coletar contribuições, dados e informações sobre a promoção da concorrência e a desverticalização na indústria de gás natural, assim como sobre o aumento da oferta de gás natural ao mercado. Ademais, em 2019 publicou a Consulta Pública n.º 8, para obter subsídios e informações adicionais sobre o Edital de Chamada Pública para a Contratação de Capacidade de Transporte de Gás Natural referente ao Gasoduto Bolívia-Brasil (Rede de Transporte da Transportadora Brasileira Gasoduto Bolívia-Brasil S.A.).
Na esfera estadual, reconhecendo a relevância de realizar a abertura do mercado de gás natural, alguns estados criaram novos regulamentos, para estabelecer um ambiente favorável a competição e realização de novos investimentos, nacionais e estrangeiros. Nesse sentido, o Governo do Estado de São Paulo, por meio da sua agência reguladora (Arsesp), publicou a Deliberação nº 1.061/2020, consolidando as novas regras do mercado livre no estado de São Paulo.
De igual forma, a Agenersa, agência reguladora do estado do Rio de Janeiro, publicou a Deliberação 3.862/2020, reformulando o arcabouço regulatório para autoprodutor, autoimportador e consumidor livre. Os estados de Sergipe e Espírito Santo também divulgaram suas regulamentações locais tratando do mercado livre, respectivamente Resolução AGRESE nº 8, de 26/09/2019 e Resolução nº 004/2011-ASPE. Finalmente, o estado do Amazonas recentemente aprovou o Projeto de Lei nº 108/2021, que prevê o novo marco legal do serviço de distribuição e comercialização de gás natural no estado, visando atrair novos investimentos para o setor, gerar emprego e renda e arrecadação de impostos para o Amazonas.
Diante desse cenário que tem se delineado para o setor, com a aprovação do novo marco legal de gás natural pretende-se implementar um mercado mais moderno, competitivo, líquido e maduro, com regras mais claras e transparentes para os agentes econômicos, estimulando a realização de novos investimentos e a entrada de novos players, com o estabelecimento de regras isonômicas e transparentes, favoráveis a migração gradativa dos contratos take or pay, de longo prazo, por contratos de curto prazo, com maior liquidez e competitividade.
Esse é sem dúvida o principal objetivo do governo federal, uma vez que o almejado crescimento setorial pode trazer inúmeras vantagens ao país, com o incremento da matriz energética ao ampliar a oferta e demanda de gás natural1, e a redução dos preços praticados, conforme podemos depreender do gráfico abaixo:
Estima-se que sejam realizados novos investimentos, que estão relacionados à expansão da oferta de gás natural, que podem chegar a cerca de R$ 95,23 bilhões (EPE, 2020, pág. 244), contemplando empreendimentos previstos e indicados a se realizaram no país até 2030, o que contribuirá sobremaneira com a interiorização da rede de transporte do energético, a criação de novos empregos e o consequente acréscimo da arrecadação pelo Estado.
É sabido, portanto, que a realização de vultosos investimentos no setor depende de segurança jurídica e viabilização econômica dos seus projetos. Assim, o crescimento do setor depende da participação da iniciativa privada e de novos agentes no mercado para a realização dos investimentos estimados e previstos no mercado de gás natural. Dessa maneira, a aprovação do novo marco legal veio em boa hora, pois esta é imprescindível para tornar o ambiente juridicamente mais seguro e favorável a sua realização, contribuindo para a retomada do crescimento econômico do país pós-pandemia.