iNFRADebate: Regulação responsiva – uma versão erudita do jeitinho brasileiro

Luiz Afonso dos Santos Senna*

O “jeitinho brasileiro” é uma forma de navegação social plenamente estabelecida no país. Outras expressões também são utilizadas para definir o jeitinho, como jogo de cintura, molejo e capacidade de se dar bem diante de situações difíceis, notadamente em relação ao cumprimento da lei. Para tanto, as pessoas utilizam recursos emocionais (chantagem emocional) e laços emocionais e familiares para a obtenção de favores. Muito embora não seja imediatamente associada à corrupção, fica sempre muito próximo a isso.

Roberto DaMatta1 faz uma comparação da postura dos americanos e dos brasileiros em relação às leis, seu cumprimento e observância. Segundo ele, a atitude formalista, respeitadora e profundamente zelosa dos norte-americanos causa admiração e espanto nos brasileiros, acostumados a violar e a ver violadas as instituições. Para Roberto DaMatta, não se pode creditar a postura brasileira tão somente à ausência de educação adequada; diferentemente dos americanos, as instituições brasileiras foram projetadas para coagir e desarticular o indivíduo. Uma vez incapacitado pelas leis, descaracterizado por uma realidade opressora, o brasileiro deverá utilizar recursos que vençam a dureza da formalidade, se quiser obter o que muitas vezes será necessário à sua mera sobrevivência. Nos Estados Unidos, as leis não admitem permissividade alguma e influenciam fortemente os costumes e a vida privada. Em outras palavras, “pode” ou “não pode”. No Brasil, tudo leva à possibilidade do “pode-e-não-pode”. Se para os indivíduos este é o cenário, do ponto de vista das instituições acontecem fatos e situações semelhantes.

Infraestrutura é a base sobre a qual a economia acontece. Esta opera em redes, tendo como pressupostos os clássicos conceitos de economia de escala, escopo e integridade da rede. O país vem contando crescentemente com a participação privada no provimento de infraestrutura, por meio de privatizações, concessões e PPPs (parcerias público-privadas). Concessões se dão através de licitações e são contratos entre a administração pública e uma SPE (sociedade de propósito específico). Estas operam em seu próprio nome, por sua conta e risco, durante prazo pré-determinado, remuneradas por uma tarifa. Com arranjos financeiros complexos (project finance), os investidores decidem com base na capacidade de geração de recursos do projeto para garantir a remuneração de seu capital. Trata-se da gestão de um fluxo de caixa com deveres (investimentos, manutenção e operação do ativo público em níveis de qualidade pré-fixados) e direitos (tarifa), com base em um ambiente regulatório estável e uma matriz de risos adequadamente estabelecida. O período do contrato supera o período de governos (sete governos, em um contrato de 30 anos). A preocupação primordial é com garantias e proteções contra os riscos a que estarão sujeitos os participantes, que podem influenciar o sucesso de um projeto.

Dado esse quadro geral, algumas questões centrais precisam ser consideradas: O arcabouço jurídico tem sido capaz de propor e acompanhar a velocidade do mundo? A regulação efetivamente materializa a intenção econômica? A lei, seus operadores e intérpretes estão realmente equidistantes das várias partes interessadas para viabilizar economicamente o país no curto, médio e longo prazo? O investidor está confortável?

As respostas para essas questões passam necessariamente por questões contratuais em que segurança jurídica e regulação precisam ser vistas de uma forma ao mesmo tempo holística e pragmática. Sob o ponto de vista do investidor, segurança jurídica significa trabalhar tão somente com os riscos assumidos, materializados nos contratos. Nesse sentido, quanto mais estável for o ambiente político, regulatório e jurídico, maior a disponibilidade do investidor participar do esforço de prover infraestrutura em parceria com o Estado. Em caso contrário, a instabilidade política, a inconstância jurídica e a fragilidade regulatória conduzem à precificação em níveis mais elevados e até mesmo à não participação.

O professor Almiro do Couto e Silva2 mostra que boa-fé, segurança jurídica e proteção à confiança são ideias que pertencem à mesma constelação de valores. Boa-fé, em relações jurídicas, “significa que as partes envolvidas devem proceder corretamente, com lealdade e lisura, em conformidade com o que se comprometeram e com a palavra empenhada que, em última análise, dá conteúdo ao princípio da segurança jurídica”.  Desta forma, a relação entre o Estado e os indivíduos tem assegurada a tão necessária previsibilidade da ação estatal, bem como a estabilidade das relações jurídicas e coerência na conduta do Estado. Segundo Couto e Silva, segurança jurídica é um conceito ou um princípio jurídico que contempla duas partes, uma de natureza objetiva e outra subjetiva. A parte de natureza objetiva envolve questões relacionadas aos limites à retroatividade dos atos de estado até mesmo quando estes se qualifiquem como atos legislativos. Refere-se à proteção ao direito adquirido, ao ato jurídico perfeito e à coisa julgada. A parte subjetiva refere-se à confiança das pessoas no pertinente aos atos, procedimentos e condutas do Estado, nos mais diferentes aspectos de sua atuação.

Mais recentemente tem sido admitida a existência de dois princípios: da segurança jurídica e da proteção à confiança. A segurança jurídica é quando designam o que prestigia o aspecto da estabilidade das relações jurídicas. A proteção à confiança é que aludem ao que atenta o aspecto subjetivo. Esse princípio, por sua vez, impõe ao Estado limitações na liberdade de alterar sua conduta e de modificar atos que produziriam vantagens para os destinatários, mesmo quando ilegais. Também lhes atribui consequências patrimoniais por essas alterações, sempre em virtude da crença gerada nos benefícios administrativos ou na sociedade em geral de que aqueles atos eram legítimos, tudo fazendo supor que seriam mantidos.

Obviamente, a segurança jurídica e a proteção à confiança não podem ser valores absolutos, no sentido de se constituir em meras formas de manter o status quo, mantendo o futuro refém do passado. As mudanças de interesse público devem ser contempladas, porém não é razoável que o Estado adote permanentemente novas posturas que contradigam suas decisões anteriores, surpreendendo, como diz Couto e Silva, “os que acreditaram nos atos do Poder Público”.

Nos últimos anos a discussão sobre regulação passou a incluir de forma insistente a denominada regulação responsiva, baseada em Braithwaite3, supostamente visando a busca de uma atuação mais efetiva e de melhores índices de conformidade regulatória por parte das agências reguladoras. A regulação responsiva é considerada uma alternativa ao modelo regulatório baseado essencialmente em punições, conhecido como “comando e controle”. Segundo os defensores da ideia, o comando e controle, quando utilizado de forma exclusiva, encontraria limitações, já que não existem incentivos para que o regulado cumpra voluntariamente os requisitos postos pelo regulador. Além disso, as multas, as suspensões e as cassações tenderiam a ser excessivamente pesadas, tanto para o regulador quanto para o regulado que demostra um histórico de colaboração e comprometimento com os objetivos regulatórios.  

Ainda sob o ponto de vista dos defensores da regulação responsiva, a adoção exclusiva de ferramentas de comando e controle pode gerar diversos problemas, como normativos demasiadamente prescritivos, elevado volume de processos sancionadores e de custos administrativos, pouca liberdade do regulador frente à diversidade de comportamentos dos regulados e baixa efetividade das sanções aplicadas. Em consequência disso, cada vez mais os reguladores, dos mais diversos setores, estariam migrando para um modelo de regulação responsiva.

Ora, os editais de licitação e os contratos das concessões devem ser absolutamente claros no que tange às metas e indicadores a serem observados ao longo da vigência do contrato, e as penalidades em caso de não cumprimento também são lá colocadas. Se o contrato for plenamente observado e executado, inexistem razões para a aplicação de penalidades; estas somente são acionadas em caso de descumprimento por parte do concessionário. 

Não há razões para alegar desconhecimento que levam ao não cumprimento das metas e indicadores. Ao chamar a iniciativa privada para participar do provimento de infraestrutura, o estado busca preencher duas características principais: capacidade financeira para prover capex e opex, que pode incluir equity, project finance, debêntures, stock options, enfim composições e arranjos financeiros vários; e capacidade de gestão, em que inexiste qualquer dúvida sobre o setor privado ser mais eficiente do que o setor público. 

Por outro lado, ao abrir a possibilidade de que multas e demais penalidades possam ser negociadas, estar-se-á abrindo a possibilidade de discricionariedade por parte das agências. Observe-se que, tanto nos casos de regulação quanto na segurança regulatória, aspectos como governança, accountability e transparência constituem-se em itens fundamentais. Em síntese, o poder discricionário deve ser evitado ou reduzido a níveis mínimos, o que é embasado por uma frase célebre de Rui Barbosa: “Não há outro meio de atalhar o arbítrio, senão dar contornos definidos e inequívocos à condição que o limita“. Trata-se, de fato, da necessidade de redução da discricionariedade, ou atos em que a autoridade que o pratica possui certa iniciativa pessoal no que se refere à conveniência e oportunidade. Em outras palavras, deve ser minimizada a possibilidade que para casos similares existam sentenças diferentes.

Muito embora sejam bem-vindas propostas supostamente inovadoras, é sempre fundamental que sejam observados os contextos sociais, culturais e econômicos em que as propostas foram concebidas. Mas, se a ideia é que se permita o não cumprimento de metas e indicadores, ou do contrato com um todo, a ação menos custosa é simplesmente evidenciar no edital e nos contratos tal possibilidade; em outras palavras, os contratos não contemplariam a previsão de multas e demais penalidades. Obviamente, estou sendo sarcástico… Em vez de fazer cumprir as regras, a proposta da regulação responsiva é “passar a mão por cima”, “aliviar as penalidades”, “ser soft”. Aliás, iniciativas semelhantes têm sido observadas em outros setores, como reduções de penalidades em infrações de trânsito e multas ambientais, entre outras…

As agências precisam ser regidas por regramentos claros, transparentes e inequívocos. A discricionariedade, no nível em que está sendo proposta, não é boa para ninguém (inclusive a quem pretende beneficiar) e fragiliza a previsibilidade, a transparência e a independência, itens fundamentais para uma agência que faça jus a esse nome.

Infraestruturas são utilidades públicas, ou serviços públicos delegados a empresas privadas; os ativos e os serviços continuam sendo públicos. O caso da regulação responsiva, que possui contornos aparentemente eruditos, tão somente reedita e normatiza o famigerado jeitinho brasileiro. Minha proposta alternativa é muito mais simples e direta: que se cumpra a lei, por ser muito mais óbvio e eficiente, em vez de institucionalizar o jeitinho brasileiro.  

1 Roberto DaMatta (1986). O que faz o brasil, Brasil?. 1ªEd.
2 Couto e Silva, Almiro do. (2003). O Princípio da Segurança Jurídica (Proteção à Confiança) no Direito Público Brasileiro e o Direito da Administração Pública de Anular seus Próprios Atos Administrativos: o Prazo Decadencial do Art. 54. da Lei do Processo Administrativo da União (Lei nº 9.784/99). Revista da Procuradoria-Geral do Estado, Porto Alegre, volume 27, nº 57.
3 Braithwaite, John (1999). Crime, shame and reintegration. New York. Cambridge University; e Braithwaite, John (2002). Restorative justice and responsive regulation. New York. Oxford University. Page 209.
*Luiz Afonso dos Santos Senna é PhD em transportes, professor titular da Escola de Engenharia da UFRGS, conselheiro-presidente da AGERGS e ex-diretor da ANTT (Agência Nacional de Transportes Terrestres).
O iNFRADebate é o espaço de artigos da Agência iNFRA com opiniões de seus atores que não refletem necessariamente o pensamento da Agência iNFRA, sendo de total responsabilidade do autor as informações, juízos de valor e conceitos descritos no texto.

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