O uso das águas públicas e seus desafios para a infraestrutura: como regular o espelho d’água?

André Cyrino*

Os setores de infraestrutura do Brasil possuem os mais variados gargalos regulatórios. Problemas de entrada, preço e excessos não faltam. No setor portuário e em todos aqueles que se valem das águas públicas, um desafio importante relaciona-se à regulação do uso do espelho d’água.

E aqui há questão fundamental: saber se e como se deve pagar pelo uso desse bem público imprescindível para o setor. Mais do que isso: saber a quem compete definir o regime financeiro aplicável. A questão pode implicar dois cenários.

De um lado, numa visão tradicional, a hipótese envolveria uma definição simples e isolada de uso de bem público. Tem-se aqui bem da União, conforme a Constituição. E, a teor do art. 18, §2º da Lei 9.636/1998, a cessão sobre o espaço físico em águas públicas da União, de forma gratuita ou mediante condições especiais, dependeria do crivo do Poder Executivo central.

Nesse cenário, dentro da organização da Administração Pública federal, caberia à SPU (Secretaria de Patrimônio da União) definir uma metodologia de cobrança. De outro, numa visão sistêmica, há certas hipóteses que estão submetidas a um regime regulatório especial. É o caso, por exemplo, da exploração da atividade portuária, cuja regulação é de competência da ANTAQ (Agência Nacional de Transportes Aquaviários) por força de lei.

No âmbito da Administração Pública federal, parece prevalecer a primeira visão. Foi assim que a SPU tomou para si essa responsabilidade e editou, primeiro, a Portaria SPU 404/2012 e depois, de forma estruturada e específica para o setor portuário, a Portaria SPU 7.145/2018.

Essa última norma dispõe de forma ampla sobre a destinação dos terrenos e espaços físicos em águas públicas da União que integrem a área do porto organizado, com a previsão de cobrança de preço público a ser definido pela SPU. Mas essa seria a melhor opção?

Do ponto de vista da regulação, entendo que há boas razões para rejeitar esse caminho. Não que a SPU não possa (ou não deva) estar atenta ao patrimônio público. Mas porque numa percepção contemporânea, tem-se que a regulação possui dinâmicas e dimensões que vão muito além de uma simples preocupação arrecadatória – foco natural desse órgão.

Penso que andaria melhor a modelagem do setor se o tema fosse preocupação da ANTAQ. Afinal, é da ANTAQ a capacidade para regular, supervisionar e fiscalizar as atividades de prestação de serviços de transporte aquaviário e de exploração da infraestrutura portuária[1] – e não da SPU, cujas competências, primordialmente de gestão patrimonial, são insuficientes para a compressão abrangente necessária para o setor[2].

É da ANTAQ a missão de avaliar eventuais efeitos sistêmicos no setor regulado. E, por isso, a agência foi criada com a autonomia e a especialização necessárias. Tal o caminho de eficiência regulatória demandada pela literatura[3].

Os agentes econômicos portuários e outros correlatos exigem decisões de complexidade que envolvem diversos agentes econômicos com impactos nacionais e internacionais. A criação de cobranças para determinados agentes acaba afetando a rede como um todo, com impactos que devem ser avaliados por uma agência reguladora dotada de capacidade técnica específica.

Daí a demanda por especialização regulatória holística; o que jamais foi o desígnio da SPU. Seu modelo institucional não permite uma visão ampla a respeito das consequências sistêmicas da criação de cobranças adicionais. A SPU não possui a vocação técnica para decifrar os estímulos ou desestímulos que suas decisões geram no comportamento dos agentes econômicos, ainda mais em um setor de infraestrutura complexo.

Por lidar, cotidianamente, com conflitos relacionados aos bens da União – e não a impactos regulatórios no setor portuário – a SPU carece da capacitação para realizar apreciações macroestruturais. Deve ser da ANTAQ, portanto, a competência para avaliar os desincentivos ou fomentos específicos, realizando diagnósticos e prognósticos sobre os resultados.

Há, ainda, uma questão concreta que justifica a atribuição dessa competência para uma agência reguladora. É que as balizas da operação como a de portos, instalações portuárias e outras que demandam uso das águas públicas costumam ser definidas em instrumentos contratuais firmados com as empresas privadas.

Assim, essas empresas, ao firmarem os respectivos contratos, sabem de antemão quais são as condições financeiras do negócio que estão assumindo, o que lhes confere previsibilidade. O equilíbrio econômico desse contrato é formatado pelo Poder Concedente, ao qual cabe delimitar as hipóteses de cobrança a que o particular contratado estará sujeito para viabilizar o correto uso dos bens públicos que lhes foram cedidos.

Sob outro enfoque, uma regulação bem-informada no setor deve estar atenta à dinamização dos investimentos portuários em infraestrutura – objetivos primordiais da Lei 12.815/2013.

Indevidas sobrecargas instituídas pela União vão de encontro aos objetivos expressos pelo legislador, que busca atrair investimentos privados e garantir a modernização da rede portuária brasileira. Qualquer atividade interventiva estatal deve respeitar as balizas e as intenções fixadas pela lei.

Nesse sentido, uma norma da Secretaria do Patrimônio da União – SPU que exija cobrança pela cessão de uso do espelho d’água não se harmoniza com a política econômica orientada para o setor.

O TRF-1 (Tribunal Regional Federal da 1ª Região) caminhou nesse sentido. Em ação coletiva, a 7ª Turma dessa Corte reconheceu a invalidade dessa cobrança – feita, então, com base na Portaria SPU 404/2012 – e determinou a suspensão dos efeitos da portaria em relação aos membros da ABTP (Associação Brasileira dos Terminais Portuários). Nos termos do voto do relator, “a exploração dos portos é disciplinada por leis especiais, cabendo à ANTAQ e não a SPU a competência dispor sobre a respectiva remuneração pelo uso[4].

A invalidade da cobrança foi posteriormente confirmada em janeiro de 2022. Em sede de reclamação apresentada pela ABTP, o TRF-1 deferiu pedido para suspender os efeitos da Portaria SPU 7.145/2018, que reeditou o dever de pagamento de preço público sobre o uso do espelho d´água[5].

Nos termos dessa nova decisão, o Tribunal “assegurou à reclamante o não pagamento da cobrança de retribuição pela utilização de espaço físico em águas públicas portuárias, instituída por Portaria editada pela Secretaria do Patrimônio da União – SPU, ao concluir que cabe à ANTAQ dispor sobre a exploração da atividade portuária. Portanto, esta Corte declarou a competência exclusiva da ANTAQ, o que implica dizer, qualquer nova portaria ou posicionamento da SPU sobre o mesmo tema constitui violação à decisão proferida na Apelação 0036080-60.2012.4.01.3400”.

Ou seja, o Tribunal entendeu que a existência de um regime regulatório específico deve se sobrepor a iniciativas arrecadatórias mais amplas da SPU. Na disputa de competências institucionais, privilegiou-se a atribuição técnica especializada da ANTAQ.

Em suma: numa tensão entre gestão patrimonial isolada e regulação sistêmica, deve prevalecer, como regra, a segunda. A segurança jurídica e as demandas por racionalidade indicam que o regulador reconheça isso e tome para si a missão de disciplinar a questão. Tal a escolha condizente com abordagens sistêmicas de problemas complexos que demandam especialização, transparência e procedimentos típicos de entidades reguladoras.


[1] V. Lei 10.233/2001, art. 23, I-V e art. 27, XXII.

[2]V. Decreto 11.437/2023, art. 40.

[3] Destaco o levantamento que consta no livro “Direito constitucional regulatório”, de minha autoria, publicado em 2018.

[4] V. Apelação Cível 0036080-60.2012.4.01.3400, julgada pela Sétima Turma do TRF-1 em 15/12/2016. O caso tramita, hoje, no Superior Tribunal de Justiça (ref. Agravo em Recurso Especial nº 2.096.238).

[5] Ref. Reclamação nº 1026943-42.2018.4.01.0000. A decisão foi proferida em 25/01/2022 pela Juíza Federal Convocada Rosimayre Gonçalves de Carvalho. Aguarda-se o julgamento do agravo interno interposto pela União.

*André Cyrino é professor de Direito Administrativo da UERJ (Universidade do Estado do Rio de Janeiro).
As opiniões dos autores não refletem necessariamente o pensamento da Agência iNFRA, sendo de total responsabilidade do autor as informações, juízos de valor e conceitos descritos no texto.

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