Opinião – “Tarifa de disponibilidade” não é “consumo mínimo”, nem “preço fixo”.

Juliano Heinen*

Recentemente, as discussões sobre estrutura tarifária são inauguradas pela Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (ANA), sendo este um tema central e essencial para todos: cidadãos, prestadores, Estado, agências. Afinal, o assunto terá ou teria por meta tratar da sustentabilidade do sistema,  subsídio cruzado, subsídio a pessoas vulneráveis, equidade etc.

Para o início, o trabalho de modelagem normativa deveria partir da finalidade da tarifa, que, entre outras, cogita remunerar o custo do serviço e ser um fator modelador das desigualdades sociais (v.g. capacidade contributiva – paga mais quem tem mais condições econômicas). Mas não só, a tarifa se presta a um fator indutivo importante – sim, falo de um mecanismo regulador de comportamentos. Assim, como ocorre com a energia elétrica, a tarifa de saneamento básico poderia travar uma variação de preços por hora do dia, ainda que exista uma complexidade maior na operação, por conta de que a abertura e fechamento de bombas e válvulas não é “tão automático” como no setor elétrico. Mas, a priori, poderiam ser mensurados os horários de pico de demanda de água, momento em que seriam cobrados preços mais altos pela água consumida, induzindo a comportamentos sociais mais sustentáveis.

Existe uma métrica comum que fixa o valor da tarifa, praticada comumente em vários lugares do mundo, consistente em (1) um valor fixo para custear um custo fixo – a redundância é proposital; e (2) um valor adicional que pode deter uma série de métricas. E por que é assim? Imaginemos que exista todo um sistema de captação de águas dos mananciais (bombas, adutoras, canalizações) e um sistema de reservação para horários de maior consumo ou épocas de seca. E vamos imaginar ainda que não exista nenhum usuário conectado e se abastecendo deste sistema. O cenário hipotético dá conta de que ainda assim há um custo de manutenção de estruturas que independe do consumo. Este, por sua vez, pressionará um aumento das despesas com energia elétrica, produtos químicos, pessoal etc., reclamando um pagamento maior.

Então, ficou fácil ver que existe um “custo fixo” que deve ser remunerado por uma “tarifa fixa”, ou “tarifa mínima”, ou “preço mínimo”, ou “preço fixo”, ou “faixa fixa” – tanto faz a nomenclatura.  Por exemplo, a AIRS de Santa Catarina adota no nome de “Tarifa Básica Operacional – TBO” e a ARSAE de Minas Gerais chama de “Tarifa Fixa”. Para dar exatidão ao texto, iremos adotar a expressão “Tarifa fixa”.Para além deste custo fixo, que independe do consumo volumétrico, podem ser atrelados um “consumo mínimo”, uma espécie de “contrato por demanda”, que é opcional em cada prestação. Contudo, a ANA não pode negligenciar que existe este “custo fixo” ou “mínimo”, independentemente do consumo. E esse mínimo deve ser necessariamente visto por economia, não por conexão, conforme recentemente decidido pelo STJ, quando julgou o Tema nº 414 – não cabe aqui revisitarmos o assunto, porque demandaria um trabalho inteiro. O ponto é: há uma segurança jurídica fixada, e seria um ato na contramão da história e do STJ tentar revisitar este assunto.

Segundo: “tarifa fixa”, ou “tarifa mínima”, ou “preço mínimo”, ou “preço fixo” não se confunde e não deve se confundir com “tarifa de disponibilidade”, esta aplicada a quem não está conectado à rede pública de distribuição de água potável. Este conceito surgiu a partir da alteração feita no art. 45, caput, §§ 4º e 5º da Lei nº 14.026/2020, com redação dada pela Lei nº 14.026/2020. A cobrança por disponibilidade é feita para qualquer consumidor tenha rede disponível, ainda que não esteja conectado. E por que não se confunde?

Vimos, antes, que a “tarifa mínima” serve para quitar o custo da estrutura disponível de quem está conectado. Para quem não está conectado, a “tarifa de disponibilidade” deve ser ainda mais custosa, como fator indutor à conexão e dissuasório a permanecer utilizando ilegalmente fontes alternativas de abastecimento – como poços e caminhões-pipa. Logo, a “tarifa de disponibilidade” não pode ser confundida nem conceitual, nem legalmente com o pagamento por “consumo mínimo”, este aplicado a quem está conectado. Em resumo, a tarifa deverá comportar a remuneração de custo total. Então, inclui todos os custos (sejam do passado ou do futuro), operações, manutenção e custos de capital. A forma das estruturas de taxas não tem tanta relevância, desde que todos os custos sejam recuperados.

Como visto, a “tarifa de disponibilidade” tem um efeito econômico indutor e modelador e condutas, com a pretensão de proteger o meio ambiente, dado que se eliminaria o consumo de fontes hídricas não abastecidas pelo sistema coletivo e eventualmente até mesmo não renováveis. Definida claramente, impõe-se ao usuário uma sobretaxa de água. Seu valor dever-se-á ater aos dados do consumo regular de água, sendo fixada qual a faixa em que se supera a média local ou regional.

Ainda que a ANA opte por adotar outras denominações para estes conceitos, entende-se que a Norma de Referência sobre Estrutura Tarifária deve trazer essa distinção de forma clara para evitar controvérsias. Além dessas duas categorias, gostaria de demonstrar que ambos os modelos podem ser parametrizados a partir de valores sazonais em relação ao consumo de água. Eles aumentarão ou diminuirão conforme as condições hídricas e a correspondente demanda.

Nos Estados Unidos, as tarifas de saneamento básico são operadas por meio de quatro principais modelos. Todas elas são permeadas de vantagens e de desvantagens, e por isto que o operador deve decidir cuidadosa e ponderadamente, a equilibrar as necessidades de usuários pequenos e grandes em sua área de serviço. Mas não só: deve pensar a tarifa também em relação à política pública e ao planejamento econômico e ambiental que se quer implementar. Por exemplo: se é o intento do governo atrair novas indústrias, tenderá a estruturar uma tarifa que privilegie grandes consumidores. Mas essa política pode ser feita à custa de pequenos usuários residenciais, por exemplo. A estrutura tarifária será essencial na busca pela maior ou menor conservação dos mananciais de água, adequando-se às políticas públicas de proteção sustentável dos recursos hídricos. Se o sistema não for medido, faz sentido se ter uma tarifa uniforme, com todas as desvantagens que esta modelagem geraria. O plano uniforme de taxa não reclama a instalação de medidores. Esses exemplos retirados do sistema de saneamento norte-americano demonstram que a estrutura tarifária não estará atrelada somente ao OPEX ou ao CAPEX, mas também a uma série de políticas públicas. Portanto, deve-se notar que o sistema norte-americano dimensiona os valores de tarifa a partir de dois principais critérios: (1) natureza do consumidor (se comercial, residencial, industrial ou rural); e (2) quantidade de consumo.

Para concluir, espera-se que a Norma de Referência da ANA contenha diretrizes do tipo:

  • Esteja atrelada à sustentabilidade econômico-financeira – que tem previsão determinativa em uma série de dispositivos do novo marco (tratamos do instituto com detalhamento aqui).
  • Diferencie “tarifa mínima” de “tarifa por disponibilidade”:

(2.1) “Tarifa mínima” – tem por meta pagar pelo custo fixo do sistema operacional e investimentos de quem está conectado;

(2.2) “Tarifa de disponibilidade” – tem por meta, além de pagar pelo custo fixo do sistema operacional e investimentos de quem NÃO está conectado, fixar um valor adicional para incentivar a conexão;

  • Coordenar uma série de subsídios:

(3.1) Sejam cruzados (v.g. serviço de abastecimento de água custeando o serviço de esgotamento sanitário; regiões menos atrativas custeando regiões atrativas);

(3.2) Sejam por categoria de usuário (v.g. capacidade de pagamento);

(3.3) Sejam por regiões (v.g. bairros; rural v. urbana);

  • Coordenar a indução de um consumo racional:

(4.1) Seja por faixa de horários;

(4.2) Seja por sazonalidade.

  • Reflitam as (in)eficiências do prestador, alocando uma metodologia clara para tanto.

Em suma, essas categorias jurídicas ou econômicas de longe são apenas compreensões meramente teóricas, porque fixam pontos cruciais na estrutura da prestação do serviço de saneamento básico e, por consequência, na vida de todos nós.

*Juliano Heinen é Diretor jurídico estatutário da Iguá Saneamento. Doutor e Pós-Doutor em Direito pela UFRGS. Procurador do Estado do RS (licenciado).

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