Plano para R$ 30 bi em ferrovias depende de acordo com concessionárias para rever renovações

Dimmi Amora, da Agência iNFRA

O governo federal quer pelo menos R$ 30 bilhões das concessionárias de ferrovias do país para criar um programa de investimentos para o setor. E, para isso, trabalha para rever os contratos assinados de renovação antecipada de quatro delas, num processo que vem sendo tratado em discussões fechadas, descritas como tensas e que são avaliadas como de risco por parte do setor.

Agência iNFRA conversou com oito pessoas, parte delas que participou diretamente das conversas, que pediram para falar sem serem identificadas sobre o tema, que é considerado altamente sensível no governo. O plano, no entanto, foi recentemente explicitado pelo ministro da Casa Civil, Rui Costa, no lançamento do Novo PAC, apesar de ainda não estar com acordos fechados. 

Há dois processos que correm em paralelo, mas têm relação entre eles. O primeiro é um GT (Grupo de Trabalho) criado para rever a política pública de renovações antecipadas de ferrovias, iniciada em 2015 e que renovou entre 2020 e 2022 os contratos de quatro ferrovias. O outro é um pedido de revisão do caderno de encargos da renovação de uma delas, a Rumo Malha Paulista, numa tentativa de acordo que corre no TCU (Tribunal de Contas da União).

Conforme noticiou a Agência iNFRA, a Rumo apresentou a proposta de rever o contrato de renovação antecipada da concessão assinado em 2020, alegando que o projeto aprovado estaria desatualizado e parte dos investimentos tornou-se inviável ou poderia já ter surgido uma solução tecnológica mais moderna.

A empresa tem argumentado que o projeto para os investimentos previstos na renovação foi apresentado em 2015 e a renovação só ocorreu em 2020, cinco anos depois, após um longo processo de escrutínio que envolveu órgãos de controle, agência reguladora e governos. 

Além da renovação da Rumo Malha Paulista, outras duas empresas conseguiram a renovação antecipada de suas concessões ferroviárias: Vale, para as ferrovias EFC (Estrada de Ferro Carajás) e EFVM (Estrada de Ferro Vitória a Minas), e MRS, para a Malha Sudeste.

A ideia da Rumo era deixar de fazer parte dos investimentos previstos e compensar os valores com o pagamento em dinheiro. Não se perderia a capacidade planejada de transportes, o que a empresa assegura que pode fazer porque, mesmo sem obras no prazo, está conseguindo transportar acima do previsto no contrato.

Não se divulgou claramente o que estava se pretendendo mudar, já que o processo corre em sigilo, mas a informação era que a Rumo deixaria de fazer algo em torno de R$ 500 milhões em investimentos previstos na renovação, parte em duplicações de vias, compensando com pagamento em dinheiro.

A empresa pediu para entrar no modelo de conciliação que o TCU criou este ano para tentar um acordo com o Ministério dos Transportes e a ANTT (Agência Nacional de Transportes Terrestres), que concordaram em rediscutir o contrato nesse ambiente.

Praticamente ao mesmo tempo, o Ministério dos Transportes abriu um Grupo de Trabalho para “aprimorar as premissas, parâmetros e metodologias do modelo econômico-financeiro afetos às prorrogações antecipadas de concessões ferroviárias”, segundo a Portaria 287 publicada em 6 de abril de 2023, que dava 45 dias para que os trabalhos fossem encerrados.

O governo está convicto de que as renovações antecipadas de ferrovias na gestão anterior foram feitas em condições muito favoráveis às concessionárias. O grupo de trabalho foi criado para fazer essa análise e propor mudanças.

Os dois principais argumentos são que o WACC estipulado de 11,04% seria incompatível com o nível de risco de uma renovação antecipada, pois a concessionária teria riscos muito menores, já que estava na operação e conhecia todo o negócio. E ainda, à chamada valoração da Base de Ativos, ou seja, o que teria que ser pago à concessionária pelos ativos que são dela e passariam a ser do Estado, caso que envolve especialmente as ferrovias da Vale.

Essas discussões aconteceram, de forma acalorada e com argumentos semelhantes aos que a atual gestão usa, durante as audiências públicas para a renovação das três ferrovias, especialmente na EFC e EFVM, da Vale. A pressão de governos subnacionais, que reverberou no TCU, fez com que a renovação da Vale acontecesse por valor acima da proposta inicial. Elas foram aprovadas pelo plenário do órgão de controle nos parâmetros que o governo atual agora considera inadequados. Houve também revisões a maior nos casos da Rumo e da MRS.

Entre os argumentos favoráveis às concessionárias para que o negócio fosse fechado nos termos que foram é que ainda há riscos na implantação dos projetos que não podem ser desconsiderados; e que, ao longo do contrato, os juros e a inflação no país têm variações significativas, como foi o caso do pico inflacionário de 2022 e os elevados juros atuais, no patamar de 13% ao ano.

Segurança jurídica
O GT de reavaliação das renovações ainda não apresentou nenhum documento público final sobre sua avaliação. Em entrevistas esparsas sobre o tema e apresentações a representantes de empresas e do mercado, o secretário-executivo da pasta, George Santoro, e o secretário de Ferrovias, Leonardo Ribeiro, falaram sobre a necessidade de mudança nos parâmetros do WACC e do cálculo da Base de Ativos.

Reiteraram a todo momento que revisões de políticas públicas são naturais e recomendadas por organizações internacionais, e que vão fazer isso respeitando os contratos, sem mudanças unilaterais, garantindo que não pretendem fazer nenhuma ação que ponha em risco a segurança jurídica do setor. 

No caso do WACC, a ANTT já vinha mudando os parâmetros para futuras concessões, num movimento que é previsto por suas regras, de revisão trienal. Trabalha para, em 2024, ter um parâmetro de WACC semelhante ao que já faz em rodovias, para as quais há diferentes níveis de WACC a depender do risco do projeto (quando mais arriscado, maior o WACC). No entanto, não parece disposta a aceitar revisões para trás.

As discussões entre o ministério e a agência não foram amistosas, segundo quem participou dos encontros. A posição do ministério é considerada de risco para o modelo de concessões, visto que, a depender da forma como for feita, pode configurar uma intervenção no contrato. Mas a indicação é que, ao fim, as posições estão mais próximas e que a pasta não quer por em risco os contratos.

Restituído ao povo brasileiro
Ao longo da atuação do GT instituído pela portaria, o ministro Renan Filho levou informações a membros do governo de que a gestão anterior teria “deixado na mesa” algo na casa dos R$ 70 bilhões com as renovações.

E indicou que pretende obter uma compensação maior pelas renovações antecipadas das ferrovias. Com esses recursos, a ideia é aportar dinheiro num fundo para financiar obras ferroviárias, seja em construção direta, algo que a Infra S.A., estatal do ministério, deve continuar fazendo, e também em modelos de PPP (Parceria Público-Privada) e investimento cruzado.

Esse plano foi explicitado pelo ministro da Casa Civil, Rui Costa, no lançamento do Novo PAC, no dia 11 de agosto.

“O Renan [Filho] está identificando e renegociando todos os contratos [de ferrovias] vencidos e que estão a vencer para que seja restituído ao povo brasileiro o valor devido por essas renovações. A estimativa é que possamos chegar a um pouco mais de R$ 30 bilhões de recursos que serão investidos na malha ferroviária nacional”, disse Costa.

Sem quebra de contrato
Questionado sobre o tema no programa Roda Viva nesta segunda-feira (21), Renan afirmou que a ideia é obter entre R$ 30 bilhões e R$ 40 bilhões para o programa de ferrovias. O ministro garantiu não haver “quebra de contrato” porque estão sendo utilizadas as regras do próprio contrato e a “convite” das concessionárias, segundo ele, com o caso da Rumo já praticamente concluído.

“Estamos em uma ampla discussão. A concessionária Rumo nos convidou para discutir algumas coisas, nós apresentamos outras e estamos fazendo um entendimento. Não há quebra de contrato porque estamos respeitando as regras estabelecidas no próprio contrato e de comum acordo”, disse Renan.

O ministro reiterou que as renovações tiveram problemas. 

“A gente entende que algumas questões não poderiam ser levadas da maneira que foi, inclusive pelo próprio contrato”, disse Renan, informando que a discussão está sendo feita de maneira “serena” e “sóbria”. 

O valor de R$ 30 bilhões informado pelo ministro da Casa Civil foi resultado de um cálculo feito com base na aplicação das premissas no processo com a Rumo, que, se forem reproduzidas para as outras concessionárias, levariam a esse valor. Perguntado se a Vale e a MRS pediram a revisão de seus contratos, Renan disse que está conversando com elas.

As informações são que as mudanças nos contratos poderiam fazer a Rumo ter que pagar algo na faixa dos R$ 4 bilhões a mais do que já havia acordado pagar pela renovação assinada em 2020. No caso das outras duas renovações, falava-se números na casa dos R$ 25 bilhões na Vale e R$ 9 bilhões na MRS.

No caso da renovação antecipada do contrato da Rumo Malha Paulista, o governo encontrou na conciliação no TCU o argumento técnico para reiniciar essas discussões. Como foi a empresa quem pediu a revisão do caderno de obras, a indicação é que ela teria que aceitar os novos parâmetros que o governo quer, sem que isso configure quebra de contrato.

A Rumo tem problemas de execução do que está previsto no contrato de renovação da Malha Paulista praticamente desde o início, conforme mostrou reportagem da Agência iNFRA em 2022.

Há cláusula resolutiva no contrato prevendo que, se 100% do plano de investimento não forem executados dentro de um período especificado, a renovação perde eficácia e o bem é devolvido à União. A avaliação do mercado é que a empresa não tem mais tempo para cumprir os 100% se não houver a mudança solicitada na conciliação.

Sem revisão do WACC
Conforme informado pela Agência iNFRA em junho, a situação na mesa de conciliação do TCU era de que havia uma proposta bem encaminhada para um acordo em relação à alteração do caderno de obras e que faltavam detalhes para se levar uma proposta final ao plenário.

Mas, depois que o TCU ampliou o prazo para mais 30 dias de análise, ampliado posteriormente em mais 15 dias, o Ministério dos Transportes apresentou as novas exigências, relacionadas aos temas discutidos no Grupo de Trabalho da Portaria 287.

As negociações com a Rumo seguiram até 4 de agosto, quando se chegou a uma proposta que foi encaminhada ao TCU na semana seguinte. Por essa proposta, o governo toparia rever o caderno de investimentos obrigatório do contrato da Rumo, o que era o pedido original da empresa. Com essa revisão, a empresa teria que indenizar o governo pelo que não será feito. A empresa não aceitou rever os valores do WACC, segundo uma fonte a par do processo. 

No entanto, a Rumo teve que aceitar novos parâmetros para a valoração dos investimentos, o que, segundo estimativas de pelo menos três fontes que tiveram acesso às conversas, deve fazer com que a devolução fique na casa de R$ 1 bilhão a R$ 1,5 bilhão. 

O ato ainda não pode ser considerado definitivo, visto que vai passar pela fase final de avaliação da Secretaria de Consenso do TCU, que apresentará uma proposta, caso concorde com os termos, a um ministro relator. Esse relator submeterá seu parecer ao plenário do órgão, que é quem tem a palavra final, com necessidade de maioria simples dos ministros presentes na votação (são nove no total).

Apesar das duas outras concessionárias terem inicialmente manifestado interesse em fazer uma revisão do seu caderno de encargos, alegando, como a Rumo, a desatualização do projeto que foi aprovado, não houve avanço por parte de nenhuma delas em relação ao tema depois que o processo da Rumo foi iniciado.

Incentivo para devolução
De acordo com especialistas, a situação da Vale e da MRS é diferente pelo fato de elas não terem pedido a revisão de seus contratos formalmente, como fez a Rumo. Uma ação direta do ministério para mudar o contrato, sem solicitação da empresa, poderia ser interpretada como uma intervenção num contrato já assinado.

No entanto, no caso da Vale, as indicações são de que a principal obrigação assumida por ela nas renovações, a construção da Fico I (Ferrovia de Integração Centro-Oeste I), poderia não estar dentro dos prazos do contrato, o que o atual governo chegou a informar no início do ano e a empresa negou. A mesma cláusula da Rumo de devolução da concessão em caso de não cumprimento das obrigações estabelecidas está presente nos outros contratos.

Para um especialista que acompanha o setor, as empresas podem ter um incentivo para trocar as obras por obrigações financeiras no momento, até com valores maiores do que os previstos em contrato. De acordo com ele, a precificação das obras foi feita antes da explosão inflacionária do pós-pandemia e sob parâmetros do Sicro, o sistema de preços de obras usado pelo governo.

Todo o mercado tem apontado que esses parâmetros do Sicro estão abaixo dos preços reais de mercado, o que faz com que as empresas gastem mais do que o previsto quando vão executar os serviços. Por isso, fazer essas obras atualmente é muito mais caro do que o que está previsto nos contratos e haveria, portanto, incentivo para devolvê-las, até mesmo por valor maior que o previsto.

Rumo
Em nota, a Rumo informou que “as propostas de atualização do Caderno de Obrigações da Malha Paulista foram debatidas pela Comissão de Solução Consensual (CSC) da Secretaria de Controle Externo de Solução Consensual e Prevenção de Conflitos (SecexConsenso) do Tribunal de Contas da União (TCU)”.

“O debate contou com representantes do TCU e demais envolvidos no processo, entre eles a Rumo, a Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT) e o Ministério dos Transportes. A CSC concluiu suas atividades nesta primeira quinzena de agosto, e abriu prazo para a concessionária e o governo federal se pronunciarem. Após essa etapa, o caso será encaminhado para a validação final do TCU.”

A Vale informou em nota que “o processo de renovação das concessões foi estritamente regular. A Vale assinou os contratos de renovação antecipada das ferrovias EFVM e EFC em 18/12/2020, após 5 anos de discussão com a ANTT e Ministério de Infraestrutura, atual Ministério dos Transportes, e conforme regulamentação da Lei 13.448/17. Dezenas de audiências públicas foram realizadas para debater a renovação antecipada. Os processos também foram apreciados e aprovados por unanimidade pelo plenário do TCU.” 

Ainda segundo a empresa, “a Vale está cumprindo todas as obrigações decorrentes da Renovação, inclusive entregou 100% do compromisso cruzado da FIOL (56 mil t trilhos e 32 mil dormentes) e adquiriu os equipamentos necessários para expansão da oferta de trem de passageiros. As mais de 470 obras de mobilidade urbana e a obra da FICO seguem em implantação”.

Em nota, a MRS informou que em julho de 2022, “assinou o seu aditivo contratual para a prorrogação antecipada de sua concessão por mais 30 anos (2056), após sete anos de discussão com Ministério da Infraestrutura, hoje dos Transportes, e Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT), incluindo um amplo processo de participação social, de profundas análises técnicas e aprovação por parte do Tribunal de Contas da União (TCU)”.

A companhia informou que, “conforme consta no instrumento, a empresa vem executando as entregas previstas em seu Plano de Investimentos. Obras previstas para os próximos anos do contrato já estão, inclusive, em andamento, como os viadutos nos municípios de Conselheiro Lafaiete (MG) e Cubatão (SP), incluindo a implantação de melhorias em cruzamentos rodoferroviários para maior segurança da comunidade e da operação ferroviária ao longo da malha”.

Diz ainda o texto que “o Plano de Investimentos da MRS contempla obras em mais de 60 municípios, com 50% das ações previstas para o curto prazo, totalizando R$ 11 bilhões [data-base maio de 2022] em projetos para aumento de capacidade e atendimento da demanda, mobilidade e segurança nos trechos urbanos, e a implantação de uma rede de Terminais Intermodais integrando os eixos de Minas Gerais, Rio de Janeiro e São Paulo, além das obras para a segregação das linhas de cargas e passageiros na Região Metropolitana de São Paulo”.

A MRS informou que avança conforme planejamento na execução das obras previstas e que “não serão poupados esforços e empenho para que os resultados possam melhorar a eficiência e aumentar a capacidade do modal ferroviário; e para que, principalmente, os ganhos com segurança e mobilidade urbana possam ser observados o mais brevemente, conforme compromissos pactuados junto ao Poder Concedente”.

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