Concessões e PPPs: se o Fator D ou IDG se caracterizar como penalidade, a sua aplicação pode ser anulada

Mauricio Portugal Ribeiro*

No presente artigo, eu pretendo explicar porque o mecanismo do Desconto de Reequilíbrio, que atualmente é chamado de Fator D ou de IDG (Índice de Desempenho Geral), pode ter sua aplicação anulada, na via judicial ou arbitral, por inadequação do procedimento jurídico adotado para sua operacionalização, nos casos em que o Fator D ou IDG se caracterizem como uma penalidade.

Isto é, nos casos em que o valor da frustração efetiva de receitas que a sua aplicação cause ao concessionário seja superior ao valor do investimento que o concessionário deveria ter feito para cumprir os indicadores de serviço do contrato vinculados ao Fator D ou ao IDG.[1]

Para isso, vou seguir o seguinte roteiro: primeiro, situarei historicamente a criação do Fator D e do IDG. A seguir, vou explicar que o Fator D e o IDG deveriam ser uma mera compensação pelo não cumprimento do contrato pelo concessionário, e que essa sua natureza compensatória determina o procedimento jurídico que deveria ser aplicado para a sua incidência.

Contudo, em vários casos, o Fator D e o IDG terminam funcionando como uma penalidade. Nesses casos, seria necessário que a agência reguladora ou poder concedente seguissem as exigências de ampla defesa e devido processo legal, próprios do direito administrativo punitivo.

Se, contudo, essas exigências não tiverem sido respeitadas, é nula a aplicação do Fator D e do IDG, e todos as receitas do concessionário frustradas em virtude disso se convertem em créditos do concessionário exigíveis perante o poder concedente.

Para simplificar o texto a seguir, vou me referir apenas ao Fator D. Mas tudo que eu falar sobre ele se aplica também ao IDG.

Em 2005, na condição de diretor do programa federal de PPPs, liderei um processo de experimentação contratual que terminou criando o modelo de contrato de concessão que até o presente está sendo utilizado pelo BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social), Caixa Econômica Federal e seus parceiros como base para os novos contratos de concessão e PPP que modelam.

Essa experimentação se deu no processo de modelagem da parceria público-privada federal, das rodovias BR 324, trecho de Salvador a Feira de Santana, e da BR 116, de Feira de Santana até a divisa entre os Estados da Bahia e Minas Gerais.

Entre outras inovações, desenvolvemos, nessa época:

a) o fluxo de caixa marginal como metodologia para reequilíbrio do contrato;

b) nova relação entre indicadores de desempenho e o sistema de pagamentos, estabelecendo, por exemplo, indicadores precisos para expansão de capacidade da infraestrutura – antes disso, os contratos de concessão de rodovias não estabeleciam gatilhos de tráfego, mas apenas número de horas anuais em dado nível de serviço do HCM (Highway Capacity Manual), coisa que naquela época era inviável de se aferir com precisão;

c) as primeiras regras sobre step in rights de financiadores;

d) o prazo variável de contrato (a depender da receita efetivamente gerada) – essa inovação terminou sendo suprimida, por se entender que não era compatível com a Lei 8.987/1995;

e) novas regras, mais eficientes e precisas que as anteriores, para diversos temas tratados nos contratos, como, por exemplo, seguros e garantias de cumprimento de contrato.

E, por fim, o que interessa especificamente ao presente artigo: criamos o Fator D, para substituir o plano de negócios como instrumento para reequilíbrio pelo atraso no investimento em expansão de capacidade e em cumprimento dos indicadores funcionais de desempenho do pavimento.

Essas inovações foram documentadas no livro de minha autoria intitulado Concessões e PPPs: melhores práticas em licitações e contratos, publicado em 2011, pela Editora Atlas, e cuja íntegra está atualmente disponível neste link.  

Eu já me manifestei diversas vezes no sentido de que esse processo de experimentação deveria ser seguido por uma avaliação permanente dos seus resultados. Vários dos mecanismos mencionados criaram problemas na sua aplicação que deveriam ser corrigidos ou considerados para sua eventual substituição por outros.

Mas, essas avaliações não tem sido realizadas adequadamente, entre outras razões porque as pessoas que modelam atualmente as concessões e PPPs no país não tem em regra qualquer experiência na gestão desses contratos, que lhes permita desenvolver senso crítico sobre os mecanismos adotados quando da modelagem dos contratos, o que, aliás, é consequência de opção institucional brasileira, que concentrou no BNDES, Caixa Econômica e alguns órgãos multilaterais praticamente toda a atividade de estruturação de novos projetos de desestatização.

O Fator D é um desconto tarifário, aplicado por ocasião do reajuste anual da tarifa, para compensar o usuário pela não realização de investimentos pelo concessionário para cumprimento de indicadores funcionais de desempenho do pavimento e para expansão da capacidade das rodovias.

Ele estabelece descontos na tarifa em função do valor dos investimentos não realizados e que seriam necessários para cumprimento das obrigações contratuais do concessionário.[2]

Trimestralmente, o regulador ou o poder concedente verifica o cumprimento dessas obrigações e, por ocasião do reajuste da tarifa, essas informações são reunidas para calcular o desconto a incidir sobre a tarifa durante o ano seguinte.

Esse desconto tarifário deveria ser proporcional ao custo de investimento que o concessionário teria para cumprir os indicadores de pavimento e de trafegabilidade estipulados no contrato. Dessa forma, em tese o Fator D se configuraria como um desconto na tarifa proporcional ao esforço que o concessionário deveria fazer para realizar o investimento.

Note-se que, apesar de o Fator D ter sido desenvolvido originalmente para as concessões de rodovias, como o BNDES, Caixa Econômica e órgãos multilaterais passaram a usar o modelo de contrato já mencionado e os mecanismos que o integraram para projetos em todos os setores, é possível encontrar o Fator D ou IDG em contratos de concessão ou PPP nos mais diversos setores de infraestrutura no Brasil.[3]

O fundamento jurídico da aplicação do Fator D é a ideia de pagamento proporcional ao serviço efetivamente prestado, ou uma espécie de exceção de não cumprimento do contrato. Sempre que o serviço não for entregue nos níveis previstos no contrato, a agência reguladora ou o poder concedente reduz o pagamento (nesse caso a tarifa) para que ela se torne proporcional ao serviço efetivamente prestado.

Isso diferencia o Fator D das penalidades: enquanto as penalidades só podem ser aplicadas após um processo administrativo punitivo, respeitando o devido processo legal e garantia de ampla defesa, o Fator D pode ser aplicado automaticamente, independentemente, inclusive, de oportunidade de prévia defesa, eis que se trata de ajuste do pagamento ao serviço efetivamente prestado.

Mas, a premissa dessa inaplicabilidade das exigências para a imposição de penalidades, é que o fator D seja, de fato, uma compensação pela não realização dos investimentos do concessionário para cumprir o contrato. Ele perde validade se o Fator D se caracterizar como uma penalidade, isto é, se a perda de receita tarifária do concessionário decorrente da aplicação do Fator D for maior que o custo do investimento necessário para cumprir os indicadores de desempenho de pavimento e de trafegabilidade da rodovia.

O problema é que, como o Fator D foi criado considerando os dados do EVTE  (Estudo de Viabilidade Técnica e Econômica) elaborado pelo poder concedente ou agência reguladora e, particularmente, a relação entre o custo estimado dos investimentos e a curva de demanda, se, por exemplo, o custo do investimento efetivo, for menor do que o estimado no EVTE, e/ou se a demanda efetiva da rodovia for maior que a demanda projetada no EVTE, então a redução efetiva da receita decorrente da aplicação do Fator D será maior que o valor do investimento que o concessionário deixou de fazer.

Nesse cenário, o Fator D será, na prática, uma penalidade, e não apenas uma compensação pela não realização pelo concessionário dos investimentos exigidos no contrato. Haverá, portanto, uma desproporcionalidade entre o valor do investimento não realizado e o valor da receita frustrada por consequência da aplicação do Fator D, o que tornará o Fator D uma penalidade e não apenas uma compensação pela não realização do investimento.

Até aí, tudo bem: apesar de esse não ter sido o seu propósito originário, o Fator D pode, na prática, se configurar como uma penalidade.

Todavia, se o Fator D, na prática, é uma penalidade, então é preciso respeitar na sua aplicação as exigências constitucionais e legais relativas ao devido processo legal e à ampla defesa, que incidem sobre processos administrativos sancionadores. A aplicação de penalidades normalmente exige o cumprimento de regras que não precisam ser seguidas quando se trata de redução de pagamento para compensar o não cumprimento ou cumprimento parcial do objeto do contrato.

Portanto, é possível que em vários contratos de concessão ou PPP: (i) o Fator D se caracterize como uma penalidade (porque o valor efetivo do investimento para cumprir os indicadores é menor do que o originalmente estimado no EVTE, e/ou a demanda pela serviço é maior que a estimada no EVTE); (ii) a aplicação do Fator D esteja sendo realizada pelo poder concedente ou agência reguladora sem seguir as exigências legais para aplicação de penalidades, que são bem mais estritas que as exigências para desconto no pagamento por não cumprimento ou cumprimento parcial do objeto do contrato.

Nos casos em que o Fator D tenha se caracterizado como penalidade e as formalidades para a aplicação de penalidades não tiverem sido seguidas, o desconto tarifário decorrente da aplicação do Fator D é irregular e pode ser anulado. Nesse caso, é possível pleitear na via judicial ou arbitral a imediata suspensão da aplicação do Fator D até que sejam respeitadas as formalidades necessárias à sua incidência.

As receitas frustradas pela aplicação irregular do Fator D nesses casos consubstanciariam créditos a favor do concessionário contra o poder concedente/usuário e podem ser objeto de pleito de reequilíbrio, ou, mediante acordo entre as partes compensado com outras dívidas de natureza regulatória. Portanto, é possível que vários concessionários estejam sofrendo reduções ilícitas nas suas receitas tarifárias em virtude da aplicação do Fator D, IDG ou equivalentes de forma irregular por falha no procedimento. Nesses casos, o concessionário tem direito à restituição dos valores indevidamente cobrados, geralmente por meio dos procedimentos contratualmente estabelecidos para obtenção de compensação decorrente da ocorrência de eventos de desequilíbrio.


[1] Gostaria de agradecer a Gabriela Engler e Eduardo Jordão pela leitura e pelas sugestões de alteração em versões anteriores do presente artigo, e a Vinicius Carneiro por adequar o texto às regras para publicação na Agência Infra. Evidentemente, eventuais equívocos são de minha exclusiva responsabilidade.

[2] Note-se que, em vários contratos de concessão e PPP, seguindo o precedente da PPP da Linha 04, do Metrô de São Paulo – com a preocupação de proteger as receitas destinadas ao pagamento da dívida e cobertura dos custos operacionais – criou-se limite para incidência de descontos sobre a receita do concessionário em virtude do descumprimento de quaisquer indicadores desempenho. Nesses projetos, o fator D ou outros descontos com finalidade semelhante não necessariamente são proporcionais ao esforço para a realização do investimento. Isso porque ao estabelecer limite para que os descontos nas receitas do concessionário preservem a sua capacidade de pagamento de dívida, é provável que o valor do desconto máximo pelo descumprimento de cada item se torne menor que o esforço para a realização do investimento para cumprimento do respectivo indicador de desempenho. 

[3] É importante notar que, após a criação do Fator D, vários projetos, por exemplo, no setor de saneamento evoluíram na direção da criação de IDG – Indicadores Gerais de Serviço, que são instrumentos funcionalmente equivalentes ao Fator D. Assim, como o Fator D, os IDGs funcionam como instrumentos para definir a cada ano, no momento de reajuste da tarifa contra inflação, o desconto tarifário a ser aplicado à tarifa em virtude do descumprimento ao longo do ano dos indicadores de desempenho. Assim como o Fator D, IDG muitas vezes é ajustado na sua criação, com base nos dados do EVTE, para evitar que sua aplicação afete a capacidade de pagamento de dívidas e os custos operacionais do concessionário. Vide sobre esse tema a nota 2.

*Mauricio Portugal Ribeiro é sócio da Portugal Ribeiro Advogados, especializado na estruturação, nos aspectos regulatórios e no equilíbrio econômico-financeiro de contratos de concessões comuns e PPPs. É mestre (LL.M.) pela Harvard Law School e professor da pós-graduação da Faculdade de Direito da FGV (Fundação Getulio Vargas), São Paulo (SP).
As opiniões dos autores não refletem necessariamente o pensamento da Agência iNFRA, sendo de total responsabilidade do autor as informações, juízos de valor e conceitos descritos no texto.

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